Ódio antigo e sua manifestação contemporânea: A tortura de lésbicas — parte I

Arquivista Radical
Felinismo Radical
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15 min readApr 20, 2018

Por Susan Hawthorne
Tradução Monalisa

… nenhuma sessão de treinamento me preparou para esta dor intensa… minha dor… a dor que eu não escolhi… toda esta alienação, esse vácuo vazio…, meu corpo, minha ente, minha dor… isto não está acontecendo… Eu sou uma pequena partícula no universo… que universo?… o mundo não é mais… eu estou… desintegrando… pedacinho por pedacinho… grito por grito… elétrodo por elétrodo… A dor… toda essa dor aqui e ali, abaixo em minha vagina… a agonia… onde estou? Onde está meu eu?
(Rivera-Fuentes e Birke 2001, 655; itálicos e elipses no original {6})

O paradoxo das lésbicas dentro do patriarcado

”Jogo de Rap,” Eminem

Quando eu vejo essa pequena (apagada) lésbica se rebaixando
Apague as luzes, vadia, adios, boa noite (sopre)
Agora coloque isso em sua pequena traqueia e deslize,
Pense por um minuto porque o moderno morreu,
Que eu não subo no escritório oval agora mesmo,
E sacudo qualquer coisa que não está amarrada de cabeça para baixo,
Eu sou totalmente pela América, foda-se o governo,
Diga esse fundilhos de leis, diga isso para chupar um pau

Ele está andando outra vez. Longos passos vagarosos. Ele brinca comigo. Oferece remover o capuz. Diz que eu serei capaz de respirar mais facilmente. Eu quero isso, mas eu não quero ele perto. Eu não quero concordar com coisa alguma. Ele faz uma pausa na minha cabeça. Respira. Dá um passo. Pausa. Respira. Dá um passo. E outro até os lentos passos tomarem um ritmo percuciente próprio. Ele para e outro alguém se move rapidamente do outro lado da sala em minha direção. A corda que amarra a toca afrouxa. Eu posso sentir o ar fresco correndo. Com o ar luz. Luz artificial. Eu relaxo. Abaixo a guarda. Então eu sou chocada com algo forçado à minha boca. Duro. Metal. Eu sufoco e vômito sai da minha garganta. Eu luto e me debato. Isso para. Eu luto para respirar através do vômito. Eles me rolam para todos os lados. Não podem ter você morrendo quando a diversão está apenas começando, vem uma voz aveludada. Ele se volta e anda lentamente. A porta se fecha e eu estou tentando sentir se sobrou alguém no quarto. Está quieto. Muito quieto. Eu não posso mover minhas mãos, então balanço minha cabeça. Sinto o vômito nas minhas bochechas. Sinto asco contra a arma em minha boca. E a excitação dele pelo meu medo. O prazer dele pelo poder. O poder simbólico de uma arma rígida. (Hawthorne 2004d, 43)

Um modo de manter o bondage erótico é perguntar a si mesmo a questão ”Por que essa pessoa está sendo amarrada?”. É porque você quer deixá-la sem reação à tortura? Deixando seu sexo completamente acessível… como uma viagem de dor, ou como uma privação sensorial? (Califia 1988, 55)

Consuelo Rivera-Fuentes foi torturada no Chile durante os anos 70. A questão que ela levanta — Onde está meu eu — é central para as explorações deste artigo. Onde está meu eu lésbico? Que tipo de eu lésbico está refletido nas palavras de Eminem? {7} Que tipo de eu lésbico é negado pelo torturador em The First Songmanuscript [O Primeiro Manuscrito da Canção]? Que tipo de eu lésbico é retratado por Pat (atualmente Patrick) Califia em seu Manual Seguro de S/M Lésbico? Outras questões são onde está a centralidade das experiências de lésbicas registrada e reconhecida? Onde está o reconhecimento de que a violação de lésbicas acontece dia após dia e ninguém fala disso? Nos últimos trinta anos, estudiosas feministas trouxeram à luz muitos aspectos da violência contra a mulher. Mas quando eu começo a dar seguimento sobre a tortura de lésbicas, sou confrontada por uma escassez severa de pesquisas e um excesso de invisibilidade. {8}

O outro lado da moeda é a erotização da tortura como outra qualquer excitação sexual. Nós — pesquisadores — não notamos que ”lésbicas + tortura” digitado em uma pesquisa na internet traz uma enorme quantidade de material pornográfico, mais do que material que lida com a violência e tortura da lésbicas? Está o sadomasoquismo criando aceitação da tortura política? É a pornografia usada para gerar e intensificar a violência contra lésbicas?

Além disso, como vamos lidar com o problema da necessidade das pesquisadoras de ler as entrelinhas dos relatos de tortura para encontrar os dados brutos referentes à tortura de lésbicas? Quem pode se permitir denunciar sua própria tortura quando o ódio às lésbicas persiste mesmo nas sociedades relativamente não conservadoras? Por detrás dessas questões está outra: Por que essas lésbicas são tão raramente mencionadas na literatura sobre tortura?

Um dos elementos definidores da existência lésbica no patriarcado é sua vulnerabilidade às demandas de sigilo, silêncio e não existência. Como outros grupos marginalizados e oprimidos, lésbicas são frequentemente presas em uma ”cultura de silêncio” (Freire 1972, 48). Mas as lésbicas continuam grandemente não reconhecidas quando se trata de sofrer o trauma do desaparecimento e negação, negação do governo quanto ao uso, por parte deles, da tortura. {9} No patriarcado a existência lésbica é negada, ou ilegal. Lésbicas que foram torturadas sofrem múltiplas camadas de silenciamento e negação. Lésbicas aparecem quando a atmosfera política está aberta, e desaparecem de novo durante tempos de repressão ou backlash [repercussão].

Como o povo indígena que teve a cultura negada, e que através de longo ativismo político construiu sustentação social dos mitos e orgulho na comunidade deles, ativistas lésbicas feministas, desde o fim dos anos 60, vêm se engajando em um processo similar. Mas eu continuo escutando as pessoas dizerem que não há cultura lésbica. [10] Como a existência negra no Apartheid, a existência lésbica dentro do território inimigo é uma afronta à ideologia da hipermasculinidade. Quando a conformidade se torna a norma, quando o poder masculino é arraigado, e quando o governo sanciona abusos dos direitos humanos ou usa da tortura, lésbicas estão entre as vítimas.

Para repetir minha questão, por que essas lésbicas são raramente mencionadas na literatura sobre tortura? Uma pista está na afirmação seguinte de uma lésbica peruana:

Quando eu falo do meu direito a minha própria cultura e linguagem como uma mulher indígena, todo mundo concorda com minha autodeterminação. Mas quando eu falo de minha outra identidade, minha identidade lésbica, meu direito a amar, de determinar minha própria sexualidade, ninguém quer ouvir. (ILIS Newsletter 1994,13)

É essa distância do suporte político dos outros, que se julgam eles mesmos progressivos, uma característica da existência lésbica. Lésbicas se uniram a outros grupos para apoiar e lutar por direitos políticos e sociais, mas frequentemente quando lésbicas pedem apoio à própria causa delas, a falta de resposta indica que ”apenas outras lésbicas têm orgulho das lésbicas” (Hanscombe 1992).

Kate Millett, em A Política da Crueldade: Um Ensaio sobre a Literatura do Aprisionamento (1994), escreveu que ”a tortura é um índice de não-liberdade” (307). Parece que nós temos um longo caminho a percorrer na criação de liberdade para as
lésbicas. Talvez seja mesmo o caso da prática da tortura em lésbicas ser a questão limite da liberdade social. Enquanto alguma lésbica for torturada e não houver protesto contra, a sociedade está envolvida e sendo cúmplice nessa violência.

O relatório de Crimes de Ódio da Anistia Internacional conclui com a seguinte afirmação: ”A luta para proteger os direitos humanos da população LGBT deve ser travada por todos” (Crimes de Ódio 2001, 28). Eu concordo, mas eu acredito que é hora de um relato focado especificamente nas lésbicas. {11}

Silêncio após silêncio após silêncio

A ênfase no silêncio não tem como ser exagerada. Lésbicas têm sido submetida ao silêncio, à negação, sido ignoradas no discurso dominante heterossexual. Lésbicas que são torturadas enfrentam múltiplas camadas de silêncio. Em primeiro lugar, há o silêncio acerca da existência lésbica. Em segundo, em muitas jurisdições há o silêncio legal: Punição não é atribuída formalmente, mas ao invés acontece numa base informal, infligida as vezes pelo estado e as vezes por membros da família da mulher ou sua comunidade. Quando isso ocorre é muitas vezes difícil ter essa punição reconhecida como uma violação dos direitos humanos da lésbica e como uma instância de tortura. Nessas circunstâncias, o torturador pode continuar com impunidade, por que “ninguém nunca vai saber, ninguém nunca irá te escutar, ninguém nunca descobrirá” (Millet 1994, 300).

O grito da lésbica torturada na família, nas prisões, nos manicômios permanece não escutado. Ela pode pedir ajuda a outros na sua dor, mas ela não pode ser ouvida por que ninguém parece estar escutando. Poucos ousam escutar. Quase ninguém toma posição. E eu acrescentaria que poucos parecem se importar com a sua tortura, talvez por ela ousar ser uma lésbica. No entanto, lésbicas tem falado a despeito das pressões para permanecerem caladas, e é para as palavras dessas lésbicas que me direciono agora.

Tina Machida é uma lésbica do Zimbábue que mora em Harare. Ela escreve:

“Eles me trancaram em um quarto e traziam ele todo dia para me estuprar, para que eu ficasse grávida e fosse forçada a casar com ele. Eles fizeram isso comigo até eu ficar grávida.” (Machida 1996,123)

O estupro foi instigado pelos pais dela no meio dos anos 1980, em um esforço para “curar” ela de sua existência lésbica.

Perto de Uganda, Christine e Norah foram torturadas pela policia militar, junto com três gays homens ativistas em 1999. A orientação politica da Uganda é de esquerda, mas o Presidente Yoweri Museveni, assim como Mugabe no Zimbábue, não possui tempo para direitos dos homossexuais.

O relatório sobre Christine segue assim:

“Quando retiraram a venda, Christina se encontrou em um centro de detenção secreto. Arrancaram suas roupas, a espancaram e os soldados que a guardavam ameaçaram-na
com estupro. Ela então foi levada para outro centro de detenção, onde foi interrogada acerca do grupo de direitos humanos que amigos haviam organizado e sobre sua sexualidade.” (Crimes de Ódio 2001, 4)

Ela foi depois estuprada por três homens detidos. Nas palavras dela:

“Perto da meia noite, eles disseram, ‘Nós queremos mostrar algo a você.’ Eles tiraram minhas roupas e me estupraram. Eu lembro de ser estuprada por dois deles, e então eu desmaiei.” (Crimes de Ódio 2011, 4)

Existe um duplo perigo para lésbicas que são presas. Elas correm o risco de serem torturadas não apenas pelos guardas, mas também, como a história de Christine indica, por outros presos. [13]

Sua amiga Norah foi levada para outro local, um quartel militar. Sobre sua provação, ela diz:

“Eu também fui espancada, abusada tanto sexualmente como fisicamente. Minhas roupas foram arrancadas. Comentários desagradáveis foram feitos, de que eu deveria ser punida por negar aos homens o que lhes pertencem de direito, e sobre quem eu pensava que era para fazer algo que o presidente considera errado. Eles até sugeriram que deveriam me mostrar o que eu estava perdendo, se revezando em mim.” (Crimes de Ódio 2001, 5)

Eu gostaria de enfatizar o fato de que a tortura contra lésbicas continua.[14] Lésbicas continuam sendo estupradas e assassinadas. No dia 29 de setembro de 2004, Fanny Ann Eddy foi encontrada morta após ser repetidamente estuprada. Ela esteve trabalhando no escritório da Associação de Gays e Lésbicas de Serra Leoa (Human Rights Watch, 4 October 2004, Morgan and Wieringa 2005, 20).

A África, no entanto, não é o único lugar onde a tortura de lésbicas tem aconteceu e continua a acontecer. Na Romênia, Marina Cetiner foi presa em outubro de 1995, por “tentar seduzir outra mulher.” Ela escreve:

“Criminosos são mais bem vistos do que uma relação entre duas mulheres… Então por causa dessa coisa homossexual, lésbica.. Eu fui tratada como a escória da escória.” (Crimes de Ódio 2001, 11)

Durante seu encarceramento, após reclamar sobre o tratamento recebido das autoridades da prisão, Cetiner foi algemada a um aquecedor e obrigada a ficar 11 horas “em uma posição como a de Jesus Cristo” sem comida (Crimes de Ódio 2001, 11).

Equiparar a existência lésbica a distúrbios psiquiátricos não é novidade. É uma forma particular pela qual as famílias lidam com jovens mulheres desobedientes. Alla Pitcherskaia, uma lésbica da Rússia, foi acusada do crime de “vadiagem” (Crimes de Ódio 2001, 20). O resultado final para muitas mulheres jovens pode ser institucionalização forçada por longos períodos [15], e, como no caso de Alla Pitcherskaia, sua namorada foi também “levada a força para uma instituição psiquiátrica” (Crimes de Ódio 2001, 20). O crime de Alla Pitcherskaia consistiu em continuar trabalhando em uma organização de jovens lésbicas.

Gigi Thadani (1996), em sua pesquisa a cerca das condições de lésbicas na Índia, encontrou muitos exemplos de lésbicas cometendo suicídio. Ela cita os casos de Malika e Lalita, ambas com vinte anos, que tentaram suicídio por afogamento juntas quando uma delas não passou em um exame, o que significaria separação para elas; também o caso de Jyotsana e Jayashree, que pularam em frente um trem, pois não conseguiram suportar a separação causada por seus respectivos casamentos; o de Saijamol e Gita, que cometeram suicídio em um envenenamento conjunto; de Gita e Kishori, ambas enfermeiras de 24 anos que se enforcaram em um ventilador de teto em um quarto do hospital (Thadani 1996, 102–104). Apesar da Seção 377 indiana não nomear lesbianismo como crime, tem sido usada para assediar lésbicas e colocar pressão nelas para que entrem em casamentos heterossexuais (Vozes Contra a Seção 377 n.d, 31–32). Quando a pressão para heterossexualizar lésbicas é extrema, lésbicas sofrem e muitas, como indicado pelos exemplos acima, são levadas ao suicídio.

Países ocidentais não estão imunes a participação em tortura. Prisioneiras lésbicas em todo lugar, não importando a razão de seu encarceramento, serão provavelmente sujeitadas à tortura e abuso. Um exemplo é o de Robin Lucas, que foi presa por fraude de cartão de credito em 1995 na Califórnia. Como foi reportado,

“Em uma tarde em setembro de 1995, três homens internos abriram a porta de sua cela, algemara ela e a estupraram. Robin Lucas sofreu ferimentos graves em seu pescoço, braços, costas e nas áreas da vagina e do ânus.” (Crimes de Ódio 2001, 18)

Considere o tratamento dessa lésbica e então leia o que Pat Califa tem a dizer sobre excitação sexual:

“Por reviver a noção de que sexo é sujo, impróprio e nojento, você pode excitar profundamente uma sortuda e exaurida lésbica, transformando-a em uma privada pública ou cadela no cio.” (Califa 1988, 52)

Esse “convite” me atinge como um insulto a todas as lésbicas que já foram torturadas ou violadas, e ignora a realidade da vida de tantas lésbicas em tantos países ao redor do mundo, nos quais ser lésbica é carregar uma sentença de prisão imediata: Argélia, Burkina Faso, Etiópia, Marrocos, Tunísia, Bahamas, Trinidad e Tobago, Antígua e Barbuda, Barbados, Omã e Romênia. Perseguição, no entanto, se extende para países onde teoricamente ser lésbica não é uma infração da lei, mas na realidade permanece sendo. Esse é o caso na Colômbia, Nicarágua, Sri Lanka e Brasil. Em outros, a pena é a morte. Esse é o caso no Afeganistão, Bahrein, Irã, Kuwait, Mauritânia, Qatar, Arábia Saudita, República da Chechênia, Sudão, norte da Nigéria, Taiwan, e Iêmen (Anistia Internacional, 1997, 77–90). No Irã os métodos de execução são cruéis e doloridos: “enforcamento, apedrejamento, ser jogada de um penhasco ou prédio alto, ou encarar um pelotão de fuzilamento” (Reinfelder 1996, 12). Sob regimes fundamentalistas, a tortura de lésbicas pode ser justificada nas bases de que o homem está fazendo seu dever sagrado [16]. É também difícil atribuir a palavra “tortura” ao estupro heterossexual quando esse é visto como normal. De fato, é forma essencial de tortura usada contra lésbicas.

Estupro, espancamentos, humilhação, gravidez forçada, inflição de dor física e mental, diagnóstico falso de doença mental, confinamento e detenção forçada e morte são evidentemente abusos que têm implicação imediata e a longo prazo para a lésbicas afetadas. Ainda mais, a promoção de sadomasoquismo por Califa (1988), Weiss (2005) e outras, contribui para o aumento da violência e aceitação social dela sob o lema da “escolha livre.” Carole Moschetti (2006) nomeia esse conluio de “relativismo sexual.” O relativismo sexual desculpa e invisibiliza a violência sexual contra mulher nas bases de uma “naturalidade” e no “direito ao sexo dos homens”, ou na noção de que homens têm inerentemente o direito de acesso sexual às mulheres. No contexto da tortura de lésbicas, pode ser observada como a extrema violação de lésbicas por causa de sua resistência à heterossexualidade e ao modelo do direito masculino ao sexo. O sadomasoquismo por lésbicas complica a questão, mas dominação, uma parte integral das práticas do direito masculino ao sexo, é o modelo para o sadomasoquismo lésbico.

As implicações de atos de violência para a saúde da matriz sexual a longo prazo são também significantes. Quando uma sociedade permite ou autoriza a violência contra um grupo de seus membros, há um impacto na saúde social. Tal violência gera medo e desconfiança. Promove desconexões sociais. Faz apologia a violência. Pede por bodes expiatórios e cria o que nós estamos vendo agora no mundo ocidental, um novo tipo de fascismo: fascismo pós-moderno, escorregadio como uma enguia, multifacetado, disperso, e quase sempre difícil de localizar com precisão. Num sentindo social, é como a experiência de dor no corpo. É difícil de falar sobre, mesmo que muitas de nós sintam a aflição e o desconforto. [17]

Deixe-me explicar uma apresentação feita numa conferência por Margot Weiss (2005)[18]. Em seu trabalho Weiss discute a participação em um curso de BDSM [19] (*N.T.: BDSM é um acrónimo para a expressão “Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo. Fonte: Wikipedia) na Califórnia, no qual duas pessoas — uma mulher e um homem — apresentaram “cenas” de BDSM, em voltas do uso de uma “espiã.” A “espiã” — uma mulher — é penetrada com um cabo de martelo. O uso de camisinha pareceu legitimizar essa ação nos olhos do apresentador. Um aparelho de choque é usado na “espiã” — nesse ponto eu estava incomodada demais para ouvir o terceiro elemento na “brincadeira de tortura.” Weiss disse especificamente que BDSM não é tortura; de fato, ela descreveu como “consensual.” Ela seguiu dizendo que classes de BDSM são “brincadeiras não-consentidas consentidas” e documentos da Anistia Internacional são fontes úteis de ideias para criar cenas de interrogação. Depois, na “brincadeira de tortura”, um dos participantes segura uma faca no pescoço da “espiã” e, então, uma arma descarregada é a apontada para ela. As roupas são arrancadas do corpo da “espiã”, que está deitada de bruços com as pernas abertas no chão. A “espiã” então tenta chutar os “jogadores da tortura.” A “espiã” pode parar o “consentimento não-consentido” usando a palavra “Rumsfeld.” Weiss questiona no fim de sua descrição da “brincadeira de tortura”, “O que essa performance nos diz acerca dos fotógrafos de Abu Ghraib?” Abu Gharaib, ela defende, é apenas uma cena, um espetáculo. E sadomasoquismo serve como uma critica, já que perturba a forma como as pessoas entendem o mundo. E mais além, que pelas cenas serem “paródias”, elas se tornam uma re-encenação criativa sobre a falta de poder em relação a guerra. Mas a coisa sobre a tortura é que você não sabe se estará viva no final do dia. Você não sabe quando irá terminar. É mais do que apenas “falta de poder” é subjugação, degradação, abandono e desumanização. Defender tais atos como “performativos” é uma instância de negligência moral.

Essa experiência fez com que eu fizesse perguntas difíceis a mim sobre cumplicidade, sobre as formas sutis e não tão sutis pelas quais nós agimos de acordo a pressões sociais. Quando está tudo bem fazer isso e quando não está? Graham, Rawlings e Rigsby (1994) defendem que a relação social das mulheres com os homens sugere uma forma social de Síndrome de Estocolmo, isto é, que a instituição da heterossexualidade e os indivíduos que a mantêm — homens e apologistas do poder masculino — agem como se mulheres fossem reféns dos homens. A cativa percebe esse comportamento dos captores como indo de extrema violência a benevolência. A benevolência cria uma crença de que há segurança em meio à violência e ao abuso. É esse aspecto que considero interessante a luz das defesas de BDSM e sexualidade performativa no feminismo pós-moderno. [20] A defesa de BDSM — inclusive em um cenário apenas com mulheres — não é nada melhor que a defesa feita por pornógrafos, os clientes de prostitutas e de quem faz apologia a torturadores.

Em relação ao “performativo” e à paródia, acho que esse deslize de responsabilidade, o movimento de tirar o foco da vitima da tortura e colocar na audiência da tortura — sejam participantes de um curso de BDSM ou aqueles que olham fotos de Abu Ghraib — profundamente perturbador. A aceitação acadêmica — até mesmo a aparente aceitação “feminista” — da tortura como um jogo é profundamente ofensiva. É apropriativa das pessoas vivendo sob regimes totalitários que não têm o “luxo” de dizer “Não,” ou dizer “Rumsfeld” como uma parodia. Esse movimento pós-moderno para uma análise centrada na audiência e na performance terá terríveis consequências para todas as vitimas de tortura, e adicionará uma deturpação significativa à tortura de lésbicas, que já são abandonas como invisíveis e um grupo marginalizado que não precisa de campanhas de direitos humanos.

Cumplicidade é o produto do medo. É como o fascismo aprofunda suas raízes. Isso me faz lembrar de outros debates entre feministas. Temos de um lado teóricas/os “feministas” pós-modernas defendendo o poder curativo o valor performativo da tortura, enquanto do outro lado temos teóricos jurídicos — incluindo mulheres — defendendo a legalização da tortura por que assim será mais segura. Isso se parece muito com as alianças feitas acerca da prostituição (Sullivan 2004, 2006). Ambas são instâncias libertárias e perigosas para o feminismo. Annie McCombs aponta que “quando um homem é torturado até a morte em qualquer lugar, as pessoas veem isso como perseguição politica; quando a mesma coisa acontece com uma mulher, as mesmas pessoas enxergam sexo” (1985, 86). Quando representações de lésbicas são vendidas como pornografia, um mesmo deslize ocorre.

D. A. Clarke defende que o uso de “pornô menina/menina” (2004, 198) como um empreendimento comercial lucrativo é baseado no fato de que a atos privados serem transformados em fantasias públicas — de outra forma inacessíveis aos homens — é sexualmente excitante por que no processo lésbicas foram humilhadas. Como lésbicas, elas são humilhadas quando o intimo é feito público; ou se são mulheres heterossexuais posando como lésbicas, os atos sexuais são percebidos como humilhantes. Além disso, ela defende que lésbicas, juntamente com os homens árabes nas imagens de tortura de Abu Ghraib, representam a imagem ameaçadora do “Insolente Outro” (2004, 1998). O erotizado “quadro sugestivamente homossexual” é humilhantes para os prisioneiros de Abu Ghraib. Eles são os corpos feminizados do inimigo. A pornografia que utiliza as supostas imagens lésbicas, representam uma lésbica feminilizada, uma lésbica que foi movida de volta para a categoria mulher, como descrita por Monique Wittig [21].

Através da pornografia, a lésbica volta para o controle patriarcal do quadro de mulheres e homens naturalizados.

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