A Instituição do Intercurso

Arquivista Radical
Felinismo Radical
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17 min readJan 18, 2018

Por Ti-Grace Atkinson, novembro/1968[1]

Nossa “sociedade”, se não for desviada de seu percurso atual e se a bomba atômica não cair sobre ela, vai trepar e se foder até a morte” [2] — Valerie Solanas

Arte de Michelle Thompson

O debate sobre o orgasmo vaginal não é essencial para o feminismo em geral. A teoria do orgasmo vaginal foi articulada recentemente, para preservar uma das bases de uma instituição social que ameaçava a crescente demanda de liberdade feita pelas mulheres. A instituição política à qual me refiro é a do intercurso. O objetivo, isto é, a função social desta instituição, é assegurar a continuidade da espécie humana.

No passado, a estrutura tradicional do casamento garantia a instituição do intercurso. É ainda verdade que, nos casos em que o casamento é devidamente aceito e protegido em quaisquer de suas variantes, as atividades que definem esta “estrutura” são protegidas, e por consequência, os objetivos da instituição do intercurso também o são.

O substituto teórico do orgasmo vaginal em termos de estrutura não se torna necessário a não ser que o casamento esteja ameaçado. A teoria do orgasmo vaginal foi formulada por um homem, Freud, cujas teorias geralmente colocam as mulheres em um papel inumano de exploração. Dentre essas teorias, a do orgasmo vaginal é o ápice. Essa teoria foi inspirada por suas comparações entre as mulheres, as quais o papel feminino fazia adoecer até a morte; e a teoria lhes reenviava a este papel, ao lhes mostrar que era do interesse de uma mulher, devido à sua natureza (isto é, do interesse de sua vagina) ser desumanizada e explorada. Na medida em que justamente a teoria de Freud é incompatível com a anatomia feminina, ela é uma excelente prova a favor da teoria, ao fazer do conceito do intercurso uma estrutura política reificada em instituição.

A estrutura do orgasmo vaginal torna-se ainda mais necessária quando a instituição do intercurso é ameaçada. Na medida em que as mulheres tornam-se mais livres, mais independentes, mais autônomas, seu interesse pelos homens (isto é, sua necessidade deles) decresce, e seu desejo por essa estrutura do casamento, o que implica ter filhos (isto é, uma família), decresce proporcionalmente ao crescimento de sua autonomia. É o motivo por que a estrutura do orgasmo vaginal começa a ser atacada pelas mulheres “radicais” do movimento feminista (em oposição às feministas radicais), enquanto simultaneamente a estrutura do casamento comece a ser atacada pelas mulheres conservadoras ou liberais do movimento feminista (por exemplo, as McCartistas (Eugene)) ou ainda fundamentalmente apolíticas, como é o caso da maioria das mulheres. Este último grupo é atualmente e potencialmente muito mais importante em número que o primeiro, o que explica que o debate sobre a estrutura casamento-família seja essencial no feminismo em geral e que seu substituto mais recente, o orgasmo vaginal, não o seja.

I

A estrutura do orgasmo vaginal substitui, portanto, a do casamento. Infelizmente para as mulheres que aceitam esta substituição, o orgasmo vaginal como estrutura política apresenta menos vantagens para elas do que o casamento. As mulheres, em razão de sua fragilidade política, introduzem, muito lentamente, compensações nas estruturas políticas em que elas são membros necessários.

É interessante comparar os componentes correlativos dessas duas estruturas políticas (eu não levarei em conta as proteções que foram introduzidas a uma data posterior ao casamento, a fim de comparar as duas estruturas em suas formas originais e definitivas. A característica mais marcante dessas duas estruturas (o casamento e o orgasmo vaginal) é que ambos favorecem os homens, e prejudicam os interesses da mulher; e que ambos foram concebidos por homens, o que não é surpreendente. As duas estruturas limitam as possibilidades humanas da mulher (o duplo status aparece sempre em toda teoria do duplo papel). As duas estruturas se aplicam a fornecer justificativas (ou desculpas?) para o papel assignado às mulheres nas relações sexuais, o que no entanto não atenua em nada a exploração inicial.

*A. As duas estruturas se apóiam em oportunas teorias biológicas, até o momento desconhecidas ou não reconhecidas:

(1) O casamento se apóia na teoria biológica do instinto materno. O argumento biológico do instinto materno assemelha-se, aproximadamente, a isso: as mulheres têm necessidade de ter crianças, faz parte de sua natureza. Não se vê que seu corpo foi feito para isso? Além disso, se as mulheres não gostam de ter crianças, elas não as teriam, o que prova que elas escolhem tê- las. E dado que um número tão grande de mulheres escolhem ter crianças, deve ser natural para elas. É um instinto, o instinto materno.

a. Existe aqui uma confusão de prioridades: a possibilidade de se dedicar a uma atividade qualquer não significa, de nenhuma forma, a necessidade desta; consequentemente , mesmo se os corpos das mulheres fossem feitos para a maternidade, não se deduz necessariamente que elas teriam vontade de ter filhos e, menos ainda, que elas teriam necessidade de crianças. Infelizmente, para as mulheres, a maternidade destrói seus corpos e dificilmente pode ser qualificada como saudável.

1. A gravidez e o parto distendem e rompem as formas corporais naturais das mulheres (em oposição às mães), de maneira que é difícil argumentar que os corpos das mulheres sejam precisamente feitos para a maternidade.

2. Estimativas dignas de confiança indicam que nos E.U.A. o índice de mortalidade das mães é de 29,1 por mil; o índice de mortalidade feminina em 1966 era de 8,1 por mil (U.S. Vital Statistics). A maternidade faz com que o risco de morte para a mulher média seja maior do que o triplo, durante os períodos de gravidez. O índice de mortalidade das mães em todo o mundo em 1966 alcançou ao menos o dobro daquele dos E.U.A.: o que aponta que a mulher média aumenta em seis vezes os riscos de morte quando grávida (números da ONU). Não há em todo o mundo nenhuma atividade legalizada, à exceção da guerra, que tenha um índice de mortalidade tão elevado. (É interessante notar que o índice de mortalidade materna é praticamente nunca tornado público, enquanto o índice de mortalidade infantil seja citado com freqüência; ainda uma outra indicação do pouco valor dado às mulheres).

b. Poderiam me responder agora que se a gravidez é uma atividade privada e sensata, tem-se a prova de que a maternidade seja realmente um instinto: trata-se de uma atividade na qual o sujeito se engaja, ainda que seja contrária a seus interesses.

(É fácil ver que este argumento introduz alegremente a teoria do masoquismo inerente à psicologia feminina. As restrições institucionais que empurram as mulheres à gravidez são aqui voluntariamente negligenciadas, enquanto que são, na verdade, estas instituições que transformam o pretenso instinto materno, que poderia aparecer como um desejo de morte, em instinto de sobrevivência política). Argumenta-se então que as mulheres gostam, ou ao menos desejam ter crianças. A evidência prova o contrário.

1. Quem ousaria dizer que os gritos — que gelam o sangue — os quais ouvimos nas salas de parto sejam na verdade gritos de alegria?

2. Como explicar o fato que dois terços das mulheres que dão à luz sofrem de depressões pós-parto, e que essas depressões se traduzem muito frequentemente pela morte ou abandono das crianças; ou por uma tal interiorização da hostilidade que elas acabam por serem internadas em hospitais psiquiátricos por “depressões nervosas graves” (geralmente um eufemismo para tentativa de suicídio)? Seria preciso ou lançar mão de uma explicação fisiológica qualquer — a qual inegavelmente colocaria em ruínas o argumento de que a maternidade é boa para a saúde das mulheres –, ou deixar de lado a eventual existência de uma teoria segundo a qual ter filhos é uma função natural das mulheres, e assim admitir que um número esmagador de mulheres não gostam de tê-los.

3. Quanto às mulheres que desejam ter filhos, basta pensar que os pais (e sabemos de qual deles se trata) ocupam o segundo lugar na lista de causas de morte infantil (os “acidentes” vêm em primeiro lugar). Se mantivermos a teoria de que as mulheres, por sua natureza, adoram ter ou ocupar-se de crianças, e se admitirmos que isso é considerado como uma grande parte no dito “instinto materno”, parece que o dever dos homens — isto é, a sociedade — seja proteger as crianças dos cuidados das mulheres, precisamente (por) [3] causa desse instinto.

c. Claramente existe uma quantidade enorme de evidências contrárias para que tentemos sustentar uma teoria biológica do instinto materno.

(2) O orgasmo vaginal se apóia na teoria biológica, ao sustentar que a instituição do intercurso é do interesse do instinto sexual da mulher.

O argumento consiste mais ou menos no seguinte: o homem tem um instinto sexual, e nós o sabemos, já que os homens adoram ter relações sexuais. Como o desejo masculino pelo intercurso não é determinado pelo elemento receptor, é a atividade em si que é desejada. Essa atividade é definida essencialmente como a penetração do pênis na vagina. Mas o homem pode ter uma experiência intensa, chamada “orgasmo”, provocada por sua própria atividade no interior desse ambiente particular que é a vagina. A culminação de sua experiência, ou orgasmo, é indicada por alguns sinais, como a ejaculação. A sociedade decidiu que esta experiência é agradável.

O ambiente vaginal é necessário ao intercurso. Ou se força a mulher a fornecer este ambiente, ou é de seu interesse fazê-lo. É ilegal forçá-la: isso se chama estupro. [nota: legalmente não se pode dizer que uma esposa foi “estuprada” por seu marido. Somente se o marido imobilizasse a mulher enquanto outro homem a viola, seria o caso de acusá-lo de estupro. A estrutura do orgasmo vaginal é a coerção que substitui as leis da estrutura do casamento em sua forma original]. Ela tem, portanto, interesse em fornecer este ambiente. Então, supõe-se que ela tenha a mesma experiência que o homem ao praticar a mesma atividade. Vamos chamá-la de “orgasmo vaginal” para distinguí-la da significação principal de “orgasmo”, a saber, o orgasmo masculino. E isso não tem como não ser agradável à mulher. Se a experiência é idêntica àquela do orgasmo masculino, não deveria haver diferenças de intensidade nem de condições de obtenção. Consequentemente, a mulher também tem um instinto sexual.

a. O instinto materno constitui evidentemente um interesse muito indireto para justificar as relações sexuais de uma mulher livre. Convém encontrar uma associação mais direta entre o ato e os interesses da mulher. À medida que a coerção exterior diminui, é preciso que esta coerção seja interiorizada pela vítima.

b. Mesmo considerada como necessidade biológica de segunda ordem para as mulheres, a estrutura do orgasmo vaginal revela-se absurda desde o começo. Primeiro, os animais não conhecem esta necessidade: eles não têm orgasmo vaginal. Toda a razão de ser do orgasmo vaginal é de consolidar a teoria de que a penetração vaginal, condição necessária da instituição do intercurso, é do interesse direto das mulheres. A condição necessária para a existência de uma necessidade biológica é sua generalidade — ou seja, o fato de que os animais não experimentam orgasmo vaginal é um argumento extremamente forte contra sua natureza biológica. Ainda, as mulheres não possuem, em sua vagina, terminações nervosas que poderiam provocar uma reação semelhante a um orgasmo masculino, isto é, ao que é proposto como orgasmo vaginal.

* B. A estrutura do casamento, assim como a do orgasmo vaginal, têm por base teorias psicológicas que servem para justificar para as mulheres a instituição do intercurso. Essas teorias psicológicas são dependentes das teorias fisiológicas sem base biológica. A teoria psicológica, longe de justificar a exploração das mulheres, a revela e a desmascara através da instituição do intercurso.

(1) No casamento, a teoria psicológica é uma análise de pretensos comportamentos inerentes ao instinto materno. Ela varia de acordo com a época, de acordo com os sacrifícios que a sociedade exige dos pais a fim de manter os filhos sob controle, e da necessidade que o sistema político tenha das mulheres ou veja como um risco sua presença no mundo exterior. A constante principal é a idéia que uma mulher, isto é, uma mãe real ou potencial, seja um ser adaptável e generoso. O papel da mulher no casamento é satisfazer as necessidades dos outros e sentir prazer em fazê-lo. Mas no quadro de argumentos em favor da estrutura do casamento, argumenta-se que o papel da mulher seja fruto de sua vontade, e faz-se disso a essência de sua natureza.

(2) A teoria psicológica repousa na idéia de que o orgasmo vaginal possui uma realidade fisiológica, e na idéia suplementar de que o orgasmo é provocado não psicologicamente, mas fisiologicamente, pela penetração do pênis na vagina. Há uma ambiguidade na argumentação a favor dessa teoria; ela vai justo ao ponto o qual havia sido definido por um homem como o orgasmo vaginal é análogo ao orgasmo que os homens experimentam no momento da penetração. É somente através da defesa da existência de uma tal equivalência de reações que podemos justificar a instituição do intercurso entre participantes livres.

II

Até agora, referimo-nos ao intercurso enquanto instituição. Dado que em nossa sociedade não houve jamais uma época na qual a sexualidade (sob todos os aspectos) não fosse um instrumento de exploração, e na qual os relacionamentos baseados em sexo — por exemplo, os relacionamentos homem-mulher –, não fossem extremamente hostis, é difícil compreender como poderíamos manter a prática do intercurso, ou como poderíamos admitir que nossa sociedade tenha o desejo de favorecer os relacionamentos positivos entre indivíduos.

Se quisermos ver exatamente qual é o status do intercurso enquanto prática, a primeira medida a tomar é, certamente, despojá-los de todos seus aspectos institucionais: é preciso eliminar, em primeiro lugar, o aspecto funcional. O intercurso deveria cessar de ser o meio pelo qual a sociedade recorre para renovar a população. Os trabalhos recentes sobre a concepção extra-uterina e inoculação deixam entrever uma mudança bastante acessível[4] . No interior do Movimento de Mulheres, foi com muito custo que conseguimos vislumbrar as possibilidades oferecidas por estas pesquisas, porém é preciso que haja um incentivo para aperfeiçoar o quanto antes os métodos extrauterinos de desenvolvimento pré-natal, e torná-lo uma verdadeira opção.

Esta única medida reduziria o intercurso, em termos de status político, a uma prática. Mas as teorias biológicas, assim como as teorias psicológicas, iriam desmoronar ao mesmo tempo que seus objetivos institucionais: as “pulsões” e as “necessidades” sexuais desapareceriam junto com suas funções. Mas dado que uma prática deve ter uma espécie de estrutura e que, sem função social, o intercurso seria determinado individualmente, e não obedeceria a nenhum modelo social, não constituiria, apesar de tudo, uma prática. É necessário refletir sobre o que viria a ocupar o status ou o lugar do intercurso, uma vez eliminados os aspectos institucionais. Seria necessário imaginar algum projeto, já que essa ideia amedrontaria as pessoas. Em razão das implicações de uma tal mudança, é preciso que as pessoas construam uma ideia possível do futuro. Seria necessário, no entanto, sublinhar que esses projetos partem de uma estimativa hipotética, em razão das numerosas variáveis que poderiam aparecer e as quais ainda não é possível prever.

Destituídas de suas funções políticas, nós certamente descobriremos a natureza das características sensuais humanas, de acordo com o interesse de cada indivíduo, ao invés desse sistema militar de mobilização psicológica que conhecemos atualmente. Assim, as características sexuais humanas teriam talvez o mesmo status que os órgãos dos cinco sentidos: poderíamos de bom grado chamá-las de “sexto sentido”. Este novo órgão dos sentidos, como os outro cinco, receberia os estímulos pela vias cerebrais e pelo contato mais direto, próprio a este sentido. No caso dos órgãos sexuais (os quais provavelmente não chamaríamos mais dessa forma na medida em que o termo “órgãos sexuais” supõe dois sexos: é a função procriadora dos órgãos sexuais que tornava esta distinção em uma propriedade definitiva) os estímulos diretos seriam táteis, e os estímulos indiretos seriam o pensamento em alguém ou em algo que gostaríamos de tocar, ou de quem gostaríamos do contato.

Agora, unicamente pelo prazer da discussão, suponhamos que o estímulo direto seja um ser vivo, um ser humano, e que este ser humano não seja o humano estimulado. Se a função procriadora da atividade é ausente, e se o conceito de atividade está descartado (ou seja, não podemos considerá-la como uma prática já que ela não é uma atividade estruturada), por que este contato tátil com outra pessoa deveria existir? Sendo que chegamos a esse ponto, postulamos que o contato sexual não é uma necessidade biológica, e que em outras épocas era apenas o meio de satisfazer a necessidade social de sobrevivência da espécie.

A resposta que receberíamos seria provavelmente que este contato tátil é agradável. Mas o que exatamente isso quer dizer? Por que seria mais agradável do que o contato com o próprio corpo? Seria do interesse de quem que existisse esse contato físico entre duas pessoas, e quais seriam os motivos desse interesse? Se existem argumentos tão convincentes de que os órgãos sexuais sejam uma espécie de órgão dos sentidos, assim como existem os argumentos da habilidade técnica, da comodidade, do egocentrismo, por quais razões implicaria a participação de outra pessoa? Qual elemento positivo esta pessoa agregaria à experiência?

Este pretenso prazer deve ser mútuo, e em caso afirmativo, por quê? O que motiva o desejo de tocar outra pessoa? Sem a função da procriação da sexualidade, qual seria a diferença (para uma pessoa comum) entre tocar uma criança e tocar um adulto por quem se tem um pretenso interesse “sexual”? Queremos fazer uma distinção importante entre contato sexual e contato erótico? Se pudéssemos afirmar que ao tocar alguém, há uma procura por um prazer direto por parte daquele que toca, e não apenas o prazer indireto de ser testemunha do prazer da pessoa tocada, isso constituiria um indicador decisivo para a teoria de que o contato tátil seja um prazer inato. Como podemos sustentar que a ponta dos dedos seja tão sensível quanto as pretensas zonas erógenas do corpo? Ou seria necessário estabelecer um sistema separado, porém igual e sincronizado de estímulos mútuos indiretos/diretos? Mas isso não seria retornar forçosamente a uma prática? E com qual justificativa? Não estaríamos re-institucionalizando a sexualidade ? Dado que a natureza da sexualidade, uma vez que a des-institucionalizamos e que ela não possui mais função social, uma vez que o esforço cooperativo não é mais necessário e que podemos satisfazer apenas as possibilidades físicas deste sentido, por qual motivo iríamos retornar a algo remotamente parecido do que chamaríamos hoje de “intercurso”?

III

Se o sentido do toque fosse o único em discussão, certamente tudo seria menos complicado, pelo simples motivo de que no quadro de nossa discussão, apenas a pessoa, indeterminada (isto é, variável), estaria em causa. E, consideração mais importante do ponto de vista ético, seria indiferente se a pessoa tocada deseja ou não ser tocada (as estruturas do casamento e do orgasmo vaginal, enquanto práticas sobre as quais se apóia a instituição do intercurso, repousam sobre o seguinte postulado: “é sem importância que a pessoa tocada deseja ou não deseja ser tocada”. A estrutura do orgasmo vaginal difere do casamento pelo único fato que o aspecto coercitivo é interiorizado pela mulher).

A distinção importante entre “sentido do toque” e o que nós chamamos aqui de “sexto sentido”, o “o sentido de ser tocado” ou “sentido do sentir” é a junção de um elemento passivo muito forte. Já que aquilo que recebemos não pode ser apenas um aperfeiçoamento técnico ou físico da própria autoexperiência, todo componente externo positivo deve ser um componente psicológico. Deve-se tratar de uma atitude ou de um julgamento que a pessoa tocada inspira naquela que toca, ou a agente. Na maior parte do tempo, essa atitude é prazerosa para a pessoa tocada; em outras ocasiões, ela lhe serve de suporte. Ou, dito de forma mais concisa, temos confiança na pessoa-agente para que ela intensifique, reforce ou prolongue o prazer da experiência sexual.

A contribuição da pessoa-agente é, primeiramente, no sentido literal, alongar a área da experiência sensual ao tocar o corpo receptor e deixando-se tocar por este corpo. Ação a qual tem por efeito reforçar as sensações autoeróticas, ao ampliar os sentimentos de prazer e de bem-estar. A segunda e a mais importante contribuição da pessoa-agente é levar a receptora — a partir de sua atitude de boa vontade e o prazer engendrado por quem toca — a uma espécie de estado psicológico confiante em relação ao mundo exterior e para com a atitude da pessoa-receptora em relação à pessoa-agente. A receptora, ultrapassando assim a intenção primária de seu próprio prazer para acessar as intenções do mundo exterior, testemunha a validade da socialização da experiência sensual.

IV

O componente mais difícil para definir neste ato futuro de cooperação aparentemente gratuito é a atitude psicológica de cada participante em relação ao outro. Qual será a especificidade dessa atitude psicológica formada por duas atitudes reunidas, transmitidas através de diferentes contatos físicos os quais constituem a relação, para que esta experiência entre duas pessoas seja:

1 — pertinente no que se trata, essencialmente, de uma experiência individual, e

2 — um progresso, em comparação àquela experiência independente.

O primeiro passo seria determinar os componentes de uma tal experiência cooperativa: dois indivíduos e suas respectivas sensibilidades eróticas. Como ninguém pode deixar de acrescentar à experiência física da outra pessoa, é preciso que essa contribuição seja mental: que o agente formule alguns conceitos e os transmita sob a forma de declarações ao receptor. Essas declarações ou pensamentos não são traduzíveis verbalmente, mas por gestos (ou ação física). Os gestos são melhor compreendidos quando são recebidos indiretamente, ou seja, no momento do contato físico, pela pessoa à qual eles são destinados. Isso se explica pela natureza da linguagem, a qual em sua origem não é compreendida, mas sentida através do contato físico.

A explicação mais plausível de uma teoria das experiências sensuais é aquela fornecida por uma teoria da linguagem física, ou seja, uma mímica a qual expressaria a atitude da pessoa-agente em relação à pessoa-receptora, transcrita em gestos apropriados à experiência particular em questão. (Lembremos que este é apenas um esboço de algumas alternativas à sexualidade institucionalizada).

Seria preciso dar algumas explicações sobre esta linguagem, a qual seria comum a diferentes linguagens culturais. Explicar, por exemplo, que é emotiva, que se expressa por algumas explicações sobre sua estrutura, designar se algumas atitudes são necessárias ou não o são, se algumas emoções devem ser expressadas antes que estejamos no direito de reinvidicar o recurso a esta linguagem. Também seria necessário fornecer algumas explicações sobre a pertinência do conceito de estilo para a linguagem, por exemplo, determinar quando começa um dialeto, e o que poderia passar por uma metáfora.

A pessoa agente está ali para transmitir alguns sentimentos. Se a relação é boa, podemos arriscar dizer que o sentimento será positivo para a pessoa receptora. Mas o que quer dizer “positivo”? A pessoa receptora deve estar satisfeita já que é ela quem recebe e simultaneamente interpreta o gesto. Mas por que esses sentimentos deveriam ser manifestos principalmente pelo toque ao invés de expressados verbalmente? O que existe de significativo na relação entre algumas emoções e o sentido do toque? Ainda mais importante: qual é a significação desta combinação para a pessoa receptora? Como a expressão de aprovação é próxima da experiência sensual? Deve haver nesta relação uma união entre elementos públicos (a aprovação ser um julgamento convencional) e privados (o auto-erotismo). Esta mímica deve ter um aspecto simbólico, e neste ato essencialmente privado, o participante exterior deve expressar, por sua presença, uma identificação com os sentimentos que a pessoa-receptora nutre em relação a si mesma. Poderíamos ver nesta dinâmica um ato cuja tendência seria reforçar o ego e a generalizar a atitude da pessoa-agente (em relação à receptora) em uma atitude do público, tomada em seu conjunto (também em relação à receptora).

Estas são apenas sugestões. Nossa compreensão da faculdade de percepção, ou intuição, é quase inexistente e é provável que poucas pessoas se dêem conta de que seja um sentido. Tudo se passa como se nossa compreensão do sentido da visão fosse modelada através da experiência de um soco no olho, ao invés de uma experiência de contemplação de uma aquarela tunisiana de Paul Klee. Podemos inferir a possibilidade da agressão a partir da experiência artística, mas não a possibilidade da experiência artística a partir da agressão. Infelizmente estamos nesse ponto e não é a instituição do intercurso que nos ajudará a compreender o sentido do toque.

Seria necessário percorrer outro caminho para chegar a essa compreensão. Tentei aqui descrever uma das aproximações possíveis.

NOTAS

1 Título original: “Institution of Sexual Intercourse”. Texto traduzido da versão francesa, cujo título, “L’Institution des rapports sexuels”, utiliza a expressão “relações sexuais” ao invés de “intercurso”. Esta versão em português preferiu utilizar o termo “intercurso”, tanto para se aproximar do termo original quanto pelo acúmulo que feministas produziram a respeito do intercurso e suas implicações políticas no patriarcado. (N. da T.)

2 “(…) our “society”, which, if it’s not deflected from its present course and if the Bomb doesn’t drop on it, will hump itself to death” — “hump” tem o duplo sentido de carregar algo com dificuldade, e ser uma gíria para relação sexual. (N. da T.)

3 Na versão em francês, houve um erro de digitação, o que deixou uma lacuna nesse ponto. A sugestão entre parênteses é da provável palavra faltante (N. da T.)

4 Posteriormente, houve divergências das feministas quanto à concepção extra-uterina, dado a apropriação da indústria farmacêutica, os altos riscos à saúde das mulheres e as questões sexistas, racistas e de classe que permeiam todo o processo das tecnologias reprodutivas (cf. FINNRAGE — Feminist International Network of Resistance to Reproductive and Genetic Engineering). De toda forma, esse argumento não invalida a análise e resistência ao controle das mulheres através do intercurso e heterossexualidade compulsória, assim como o enfrentamento à maternidade compulsória enquanto instituição patriarcal. (N. da T.)

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