As teorias feministas e a evolução das relações de gênero na sociedade

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Felinismo Radical
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23 min readJan 3, 2019

Por Sandra Puhl dos Santos

A sociedade contemporânea vivencia um ce­nário de transformações que afetam diretamente o sistema econômico e social. As mudanças ocorridas nas últimas décadas modificaram a vida das pessoas e organizações e estabeleceram uma nova forma de relacionamento entre os seres humanos. Dentre as muitas mudanças que influenciaram diretamente o ambiente organizacional, destacam-se a globalização, as mudanças tecnológicas, a diversidade cultu­ral da mão de obra, as mudanças nas exigências dos clientes, a introdução de modelos de gestão cada vez mais sofisticados, a nova concepção do trabalho e as diferentes expectativas da sociedade.

As relações de trabalho ganharam novos signi­ficados e complexidades a partir da inserção femini­na no espaço organizacional. No decorrer da história, observa-se que as mulheres conquistaram alguns di­reitos, mudaram seu modo de pensar e agir, deixaram de ser submissas ao homem para tentar ficar em con­dição de igualdade com ele.

Pesquisas mostram que a força do trabalho feminino está cada vez mais presente na produção econômica e, progressivamente, a mulher vem assu­mindo posição de destaque no mercado de trabalho, mas a discriminação originada pela desigualdade é subjacente mesmo com aplicações das normas im­plementadas contra essa forma de segregação. O reflexo cultural e social como fator determinante da acomodação feminina durante gerações e a capaci­dade criativa do setor empresarial em burlar os pre­ceitos da legislação de proteção à mulher não viabi­lizaram as mudanças necessárias.

A inserção da mão de obra feminina no merca­do de trabalho desperta a discussão de questões que envolvem a interação entre homens e mulheres nesse ambiente. Apesar do discurso de igualdade de condi­ções e oportunidades, há evidências de que existem desigualdades na participação masculina e feminina no mercado de trabalho, seja em relação aos níveis salariais, à possibilidade de crescimento na carreira ou às oportunidades de exercer determinadas fun­ções. Nesse contexto, a teoria das relações de gênero auxilia a compreensão dessas questões, bem como a discussão do processo de construção da identidade da mulher na conjuntura organizacional.

Nas últimas décadas, tem ocorrido um gran­de avanço nas pesquisas sobre gênero e o estudo de questões que envolvem a evolução das mulhe­res nas organizações (CALÁS; SMIRCICH, 1999; BUTLER, 2003; CAPELLE, 2004), a grande maio­ria originada a partir do movimento feminista, época em que as questões relacionadas a gênero se torna­ram mais evidentes e ganharam novos significados.

Assim, os estudos que contemplam a discus­são sobre o tema “Relações de Gênero” apresentam uma variedade de direções. O fato pode ser entendi­do pela análise da evolução dos conceitos de gêne­ro conforme a influência da época. Capelle (2004) argumenta que as abordagens mais remotas sobre o gênero consideravam as características biológicas de cada sexo, atribuindo a esse fato as desigualdades entre eles.

Calás e Smircich (1999) apresentam o concei­to de gênero com base nas teorias feministas que re­sumem diversas abordagens feministas aos estudos organizacionais, buscando descrever como cada es­cola trata do tema de modo diferente, propondo tam­bém diferentes alternativas de análise.

Entretanto, apesar de todo o avanço alcançado ainda se percebe a presença da dominação masculi­na em quase todos os campos das relações sociais. Embora as abordagens recentes sobre os estudos que contemplam a mulher nas organizações tenham au­ferido considerável espaço na literatura e meio aca­dêmico, o tema ainda é predominantemente masculi­no. A teoria organizacional tem se caracterizado por uma “literatura escrita por homens, para os homens e sobre os homens” (CALÁS; SMIRCICH, 1999, p. 281).

Sardenberg (2004, p. 24) compartilha dessa ideia ao afirmar que feministas de todas as épocas “criticaram as pretensões dos grandes esquemas te­óricos, as teorias gerais, argumentando que as su­postas afirmativas universais sempre se mostraram parciais ou triviais.” Assim, argumentavam que o co­nhecimento científico foi produzido a partir de uma perspectiva masculina, de uma visão androcêntrica, portanto era parcial, incompleto e questionável.

Além disso, as metateorias não eram capazes de interpretar a realidade como um todo, pois, ao contrário da imparcialidade que aclamavam, os cien­tistas eram homens que falavam a partir de vivências diferenciadas das experiências das mulheres.

Nesse contexto, faz-se necessário compreen­der essas mudanças a partir de estudos bibliográficos que possam contribuir para a produção de um conhe­cimento crítico, promovendo uma reflexão acerca da evolução da mulher no âmbito organizacional e das relações de gênero, sob o enfoque das teorias femi­nistas.

Para a elaboração deste estudo, optou-se pela pesquisa bibliográfica, tomando por base material já elaborado, constituído principalmente de livros, artigos científicos publicados em periódicos e anais de eventos, e também documentos disponibilizados em meio eletrônico, pertinentes à temática abordada. Para embasamento teórico, foram citados alguns es­tudiosos do tema: Beauvoir, 1970; Tong, 1998; Calas e Smircich, 1999; Calil, 2000; Butler, 2003; Capelle, 2004.

Teorias feministas

Apesar de sua diversidade, a maior parte das teorias feministas tem alguns pressupostos comuns, notadamente o reconhecimento da dominação mas­culina nos arranjos sociais e o desejo de mudanças nessa forma de dominação.

Outro ponto a ser observado nas teorias fe­ministas é a diferença entre sexo e gênero. Sexo é biologicamente definido, relacionado às diferenças morfológicas entre homens e mulheres. Quanto ao gênero, é “sociologicamente construído, um produto da socialização e vivência” (CALÁS; SMIRCICH, 1999, p. 276).

As diversas abordagens do pensamento femi­nista se conectam com as teorias e as práticas organi­zacionais, enfocando aspectos específicos, ou ques­tões centrais, e ignorando outros.

Calás e Smircich (1999) classificam a teoria feminista em sete diferentes abordagens: liberal, radical, psicanalítica, marxista, socialista, pós-es­truturalista/pós-moderna e multicultural (terceiro-mundista ou pós-colonialista). Cada abordagem ofe­rece formas alternativas para o enfoque da desigual­dade de gênero, enquadrando o problema de forma diferenciada, propondo diferentes caminhos de ação como solução.

A primeira escola analisada é a da teoria femi­nista liberal, originada dos ideais políticos liberais de igualdade, liberdade e fraternidade, durante os sé­culos XVII e XVIII. As mulheres não votavam e não podiam ter propriedades em seu nome. Com a tran­sição de uma forma de produção econômica centra­da no lar para uma economia industrial, elas foram gradativamente se tornando isoladas e dependentes economicamente. Assim, a maior preocupação da abordagem liberal era demonstrar que as mulheres eram tão humanas quanto os homens. O tema central abordado não era a eliminação da desigualdade sexu­al, mas a busca da equidade sexual/justiça de gênero.

Outra abordagem apresentada pelas autoras é a teoria radical, a qual surgiu na década de 1960, com os movimentos feministas contemporâneos. A fun­damentação dessa abordagem consiste na subordi­nação feminina à dominação masculina, ditada pelo sistema de gênero, construído socialmente a partir de diferenças biológicas. Propõe que a sociedade ideal seria aquela livre de distinções de gênero ou de sexo.

Calás e Smircich (1999) destacam que as fe­ministas radicais descobriram e colocaram em prá­tica formas organizacionais que refletem valores feministas, tais como igualdade, comunidade, parti­cipação e integração de forma e conteúdo. Eram re­ativas, procurando rejeitar todos os elementos asso­ciados à forma masculina de poder. As autoras ainda chamam a atenção para o fato de que os estudos das organizações feministas raramente têm aparecido na literatura dominante sobre estudos organizacionais.

Nessa perspectiva, sob a inspiração do fe­minismo radical, alguns estudiosos estão revendo não apenas formas e práticas organizacionais, mas formas e práticas de teorização organizacional, centrada na mulher, baseada em suas vidas e expe­riências, para criar revisões feministas de conceitos organizacionais básicos, tais como trabalho, carreira e gestão.

A principal expoente do feminismo radical foi Simone de Beauvoir. Para essa autora, a mulher é o outro, tendo em vista que ela é definida tendo o homem como parâmetro: “a mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela” (BEAUVOIR, 1970, p.10).

Beauvoir (1970) foi uma teórica da Igualdade que tratou a questão sexo/gênero visualizando o con­ceito de sexo como um dado biológico e o de gênero como construto social. Sua obra foi um marco para o feminismo, pois tratou da “questão de gênero, antes mesmo de termos um termo para identificar esse fe­nômeno da construção social das diferenças e identi­dades sexuais” (SARDENBERG, 2004, p.17).

A seguinte escola abordada é a feminista psi­canalítica, originária da psicanálise freudiana. Essa teoria considera que a natureza humana se desenvol­ve tanto biológica quanto psicologicamente, e que os indivíduos criam sua identidade sexual como parte de seu desenvolvimento psicossexual. O gênero se­ria a estrutura de um sistema social de dominação masculina. A base para a desigualdade entre os gê­neros estaria enraizada numa série de experiências na infância, as quais resultariam não apenas na visão dos homens enquanto sexo masculino e das mulheres enquanto sexo feminino, mas também no ponto de vista das sociedades patriarcais de que o masculino é melhor do que o feminino (TONG, 1998).

O feminismo psicanalítico, como é aplicado aos estudos organizacionais, considera as consequ­ências do desenvolvimento psicossexual feminino diferenciado em seus papéis na organização e na gerência. Pesquisas recentes têm tratado as diferen­ças das mulheres não como um problema, mas como uma vantagem. A influência de psicólogos e psica­nalistas feministas, assim como a dos feminismos radicais culturais levaram a trabalhos que destacam que os diferentes traços de caráter e a socialização diferenciada dos papeis sexuais não são deficiências a serem superadas, mas vantagens para a efetividade corporativa (CALÁS; SMIRCICH, 1999).

Já a teoria marxista surgiu baseada na crítica marxista da sociedade capitalista e no liberalismo político. Marx (2003) afirma que não é a consciên­cia dos homens que determina sua existência, mas sua existência social que determina sua consciência. De acordo com essa abordagem, a natureza huma­na concebe gênero e identidade de gênero como definições estruturais, históricas e materiais. Nessa perspectiva, Calás e Smircich (1999) asseguram que gênero é classe; os gêneros são, portanto, categorias sociais caracterizadas por relações de dominação e opressão, funcionando como um determinante de pa­drões estruturais. Em suma, o pensamento feminista marxista analisa a dinâmica produtiva e reprodutiva das dinâmicas de gênero na organização capitalista e patriarcal da economia e da sociedade.

Em resposta à insatisfação com o pensamento marxista, segundo o qual a opressão feminina seria menos importante do que a opressão do trabalhador, surge a teoria feminista socialista, na qual o gênero é instituído mediante encontros de sexo, raça, ideolo­gia e opressão, sob os sistemas capitalistas e patriar­cal. Assim, o término da segregação ocorreria com a extinção das classes e a transformação das relações sociais.

Na mesma visão, Jaggar (1983) apud Calás e Smircich (1999) afirma que a divisão social de traba­lho é uma característica básica da sociedade capita­lista que afeta tanto os homens quanto as mulheres. Para o referido autor, o feminismo socialista defende uma sociedade em que masculinidade e feminilidade são socialmente irrelevantes e não existem homens e mulheres como são concebidos atualmente.

Em outro direcionamento, Calás e Smircich (1999) apresentam a teoria estruturalista/pós-moder­na, situada nas críticas pós-estruturalistas francesas contemporâneas do conhecimento e da identidade. Retira do centro o sujeito racional do humanismo: subjetividade e consciência são efeitos discursivos. De acordo com essa abordagem, sexo e gênero são práticas discursivas que constituem subjetividades específicas por meio de poder e resistência na mate­rialidade dos corpos humanos.

Em geral, as teorias feministas pós-modernas/ pós-estruturalistas oferecem uma visão mais pluralis­ta de engajamentos políticos, em que gênero se torna apenas um argumento entre outros. Também oferece visões mais complexas da localização social e das estruturas de opressão. Já a análise desconstrutivista e genealógica prevê uma estratégia importante para demonstrar os limites do discurso organizacional e as estruturas desses limites, que são frequentemente baseadas em distinções de gênero.

Por fim, as autoras abordam a teoria terceiro­-mundista ou pós-colonial, na qual se critica a ge­neralização das questões de gênero apontadas pelas feministas do Primeiro Mundo, cujo caráter totalitá­rio considera as outras mulheres como seres invisí­veis ou quase humanos. Essa teoria critica também as relações de dominação do Primeiro Mundo sobre os outros países, admitidas pela divulgação de um conhecimento tido como absoluto e inquestionável.

Enfim, as teorias feministas possibilitaram compreender as diferentes formas de construção da identidade social e individual da mulher, mas tam­bém refletir sobre as relações de gênero: como se criam, se transformam ou se mantêm os padrões de gênero na sociedade.

A evolução das mulheres numa perspectiva histórica

Os valores masculinos se sobrepõem aos femi­ninos há cerca de dez mil anos; de geração em gera­ção, as mulheres vêm sendo vítimas de preconceito através da história da humanidade.

No Cristianismo, o princípio bíblico da cria­ção já demonstra a fragilidade da mulher diante do homem, em Gênesis (GÊNESIS, 2: 21–22):

Então Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez cres­cer carne em seu lugar. Depois da costela que tirou do homem, Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem.

Gênesis relata ainda que, após a criação, a mulher foi tentada pela serpente e sucumbiu, deu de comer a Adão o fruto proibido. Então, Deus dis­se à mulher: “Multiplicarei grandemente a dor da tua concepção; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (GÊNESIS, 3: 16). Assim, por causa da “trans­gressão da mulher”, Adão e Eva foram expulsos do Paraíso.

Na simbologia da criação, percebe-se o surgi­mento do ser humano feminino e a criação do ser humano masculino, no intuito de identificar gêneros.

Já no Novo Testamento, na doutrina bíblica, Jesus Cristo tenta resgatar os valores da mulher, ele­vando-a a um nível diferenciado, tentando restituir sua dignidade. Jesus quebrou vários tabus constru­ídos ao longo da história, ao deixar, por exemplo, ungir-lhe os pés uma mulher considerada peca­dora, conforme se lê no Evangelho de São Lucas (LUCAS, 7: 36–50). Beneficiou mulheres, como a sogra de Pedro, curando-a de febre (LUCAS, 4: 38- 39); e, no Evangelho de Mateus, ressuscitou a filha de Jairo, oficial romano (MATEUS, 9: 18–29).

Apesar disso, a Igreja ainda exercia forte pres­são em adestrar a sexualidade feminina, dando auto­nomia ao homem, conforme pode ser lido na primei­ra carta de Paulo de Tarso a Timóteo (I TIMÓTEO, 9: 11–14):

Quanto às mulheres, que elas tenham roupas de­centes, se enfeitem com pudor e modéstia (…). Du­rante a instrução a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Eu não permito que a mulher en­sine ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão.

No entendimento de Vieira (2004), o próprio processo de evangelização, após a morte de Jesus Cristo, fez com que Paulo de Tarso amadurecesse e, exercitando o postulado da doutrina cristã, passasse a reconhecer o valor feminino, documentando-o em suas cartas, por exemplo, quando escreve ao povo de Coríntios (I CORINTIOS, 11: 12): “Em Cristo não há mulher sem homem e nem homem sem mulher; como é verdade que a mulher procede do homem, é também verdade que o homem procede da mulher e tudo vem de Deus”. Assim, através da ascensão da doutrina cristã, a mulher começou a ter reconhecido o seu valor de direito à igualdade com os homens.

Nos estudos mitológicos da história da huma­nidade, há cerca de vinte mil anos, se fazia referên­cia ao feminismo, à mulher como deusa, identifica­da como Terra, “de onde tudo saia e para onde tudo voltava”, daí a existência dos seres. As mais antigas imagens sagradas são de mulheres. Estas governa­vam as sociedades pela “linhagem feminina”. A ori­gem de tal poder se baseava no fato de que tinham o dom de gerar a vida, supunham que pariam deu­ses, ou seja, o poder econômico era o poder de gerar (MURARO; BOFF, 2002).

Para esses autores, essa foi a época em que as atividades humanas viviam em equilíbrio, tanto entre os humanos como com a natureza. O sentido da vida era exclusivamente para atender às necessidades bá­sicas. Não havia competição ou cobiça, nem tampou­co guerras. As mulheres não utilizavam força física para exercer o poder, faziam isso através de persua­são e consenso. Com o passar dos anos, no entanto, a exuberância da natureza foi diminuindo, criando a necessidade de caçar grandes animais, iniciando­-se assim uma nova cultura, baseada em modelos de dominação e autoritarismo.

Desde então, os mais fortes passaram a domi­nar os mais fracos, o povo começa a lutar por seu ter­ritório e iniciam-se as batalhas pela supremacia utili­zando a força física. As guerras passam a ser rotina, bem como a invasão de terras, segundo expressam Muraro e Boff (2002, p.174):

Os princípios feminino e masculino, que governa­vam juntos o mundo até então, se dividem: a mu­lher fica reclusa no domínio da casa — do privado — e o homem assume o domínio público. Agora é a lei do mais forte que consolida o seu poder. Um poder que não é mais um serviço e sim um privilé­gio. Agora a relação que predomina é a do senhor e do escravo. O homem domina e a mulher é a do­minada.

Na Idade Clássica, a vida das mulheres gregas consistia em doar-se ao máximo a seus maridos e fi­lhos e abdicar quase que totalmente de seus interes­ses e vontades. Quando os casamentos tinham pro­blemas, as leis repreendiam severamente a mulher, pois esperavam destas a castidade. Demóstenes (384 a.C. — 322 a.C.), orador e político grego de Atenas, em seus discursos afirmava: “Temos cortesãs para nos dar prazer; temos concubinas para com elas coa­bitarmos diariamente; temos esposas com o propósi­to de termos filhos legítimos e de termos uma guar­diã fiel de tudo o que se refere à casa.” Essa realidade deixa transparecer a desvalorização da mulher.

Já as mulheres romanas tinham como centro de atuação o âmbito doméstico. As suas funções con­sistiam em rezar com o marido e os filhos, organizar a casa e preparar-se para recepcionar o marido. A educação era privilégio de poucos, aos meninos de famílias abastadas ensinava-se o latim, o grego, cál­culos, literatura e a retórica. As meninas aprendiam os deveres domésticos com suas mães, e as famílias humildes raramente tinham acesso à alfabetização.

Na Idade Média, as ideias e conceitos eram elaborados pelos eclesiásticos. As mulheres eram consideradas pelo clero como seres suscetíveis às tentações demoníacas, por isso deviam ficar sob a tutela do marido. Afinal, todas as mulheres descen­diam de Eva, a culpada pela queda do gênero hu­mano. Eva concentrava em si todos os vícios tidos como femininos: a luxúria, a gula, a sensualidade e a sexualidade. Dessa forma, a maior parte das autori­dades eclesiásticas desse período via a mulher como portadora e disseminadora do mal.

A partir do século XI, com a instituição do ca­samento pela Igreja, a maternidade e o papel dado à esposa passaram a serem exaltados. Criou-se uma forma de salvação feminina a partir basicamente de três modelos: Eva (a pecadora), Maria (o modelo de perfeição e santidade) e Maria Madalena (a pecadora arrependida). No casamento a mulher estaria restri­ta a um só parceiro, que tinha a função de dominá­-la, de educá-la e de fazer com que tivesse uma vida pura e casta.

Maria foi a redentora de Eva, pois veio ao mundo com a missão de liberá-la da maldição da queda. Desenvolveu-se então a ideia de Maria como a mãe da humanidade, de todos os homens e mulhe­res que viviam na graça de Deus. O culto a Maria se baseava em quatro pilares: a maternidade divina, a virgindade, a imaculada concepção e a assunção. Por isso, as mulheres eram encorajadas a se manterem castas até o casamento, se a sua opção fosse o matri­mônio. Porém, a melhor forma de seguir o exemplo de Maria era permanecer virgem e tornar-se esposa de Cristo, com base na ideia recorrente de que Maria era “irmã, esposa e serva do Senhor”. Eva simboliza­va as mulheres reais, e Maria um ideal de santidade que deveria ser seguido por todas as mulheres para alcançarem a graça divina a caminho da salvação. Já com Maria Madalena se estende a possibilidade de salvação a todos que caíssem no erro, mas fossem capazes de se arrepender (PRATAS, 2011).

A escritora francesa Simone de Beauvoir (1970), precursora da frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, em seu livro “O Segundo Sexo” faz uma análise da condição da mulher. Para a au­tora, nas antigas criações do mundo um mesmo ele­mento tem se tornado frequente, uma encarnação, a um tempo, de macho e fêmea. Dizer que a mulher era o outro equivale a dizer que não existia entre os se­xos uma relação de reciprocidade. A sociedade sem­pre foi masculina, e o poder político sempre esteve nas mãos dos homens, ou seja, a sociedade exaltava a superioridade masculina, o que se refletia na edu­cação das moças, já que qualquer ato que fosse de desagrado ou servisse de ameaça à paz social era vis­to por todos com maus olhos.

O semelhante, o outro, que é também o mes­mo, com quem se estabelecem relações recíprocas, é sempre para o homem um indivíduo do sexo mascu­lino. Por isso, ele não partilhava com a mulher sua maneira de trabalhar e de pensar. A mulher sempre esteve destinada a ter dependência do homem, e ja­mais ser seu semelhante. Essa compreensão acorren­tou culturalmente a mulher, moldando sua existência.

Apesar das diversas transformações provo­cadas com o surgimento e o desenvolvimento do capitalismo, as inúmeras culturas são predominan­temente baseadas na supremacia masculina sobre as mulheres. As grandes revoluções do Século XVIII não revolucionaram o poder entre os sexos e não suprimiram a dominação e a violência nas relações com as mulheres. No século XIX, eram explícitos os padrões e condutas que o poder definia como de­sejáveis no comportamento feminino — trabalho e submissão.

Silva (2001, p.1) relata a situação de opressão e subordinação vivenciada pelas mulheres:

Várias foram as modificações sofridas na estrutura familiar, tomando por base a família do século pas­sado e suas transformações, até chegar ao modelo da família contemporânea. A família era estrutura­da num regime patriarcal onde a mulher e os filhos deviam inteira submissão ao pai. (…) A família subjugada, sem direito a idéias e vontades próprias, era a forma de manter o equilíbrio social da época, que era voltado para a manutenção do patrimônio e a permanência desta no núcleo familiar formando cidadãos cuja consciência era atrelada aos mesmos valores de seus ancestrais. O pai, senhor supremo, encarregava-se de manter a família dentro dos padrões sociais. A ele competia julgar o certo e o errado, o futuro e o destino de seus filhos, sem­pre levando em conta as necessidades da família e nunca do indivíduo. (…) Toda essa repressão à per­sonalidade própria do indivíduo trouxe à tona o de­sejo de liberdade, o desejo de amar e ser amado, o desejo de realização fosse pessoal ou profissional, desejos esses que sempre existiram, se não aberta­mente ao menos no intimo do individuo.

Durante muitos séculos, a mulher viveu ape­nas para o lar. Com o passar do tempo, as condições sociais do mundo foram transformadas, e as mulhe­res foram aos poucos tomando seu lugar na socie­dade. Passaram, então, a travar as lutas necessárias pelo reconhecimento da igualdade, ganhando o es­paço público e rompendo definitivamente a barreira do silêncio.

No início do século XX, no Brasil, havia uma clara divisão sexual do trabalho nas fábricas: as mu­lheres ocupavam as tarefas menos especializadas e mal remuneradas, e os cargos de direção cabiam aos homens. Devido à falta de legislação trabalhista, as trabalhadoras denunciavam à imprensa operária as péssimas condições de trabalho e higiene, o controle disciplinar a que elas eram submetidas em seus lo­cais de trabalho. Nesse contexto, de forma inédita no Brasil, a Constituição de 1934 assegurou à mulher o direito de voto e da livre concorrência ao funciona­lismo público de forma igualitária.

A partir da Primeira Guerra, evidenciou-se a tendência à presença da mulher nos setores primá­rio, secundário e terciário da economia, ocupando não só o espaço rural, mas também o da indústria e o de serviços. Ao longo do século XX, as novas tecnologias de comunicação e mecanização das tare­fas fizeram acontecer uma revolução administrativa, da qual a mulher participou, e a partir daí ela pôde ampliar seu espaço nesse ramo da economia, passan­do a fazer parte da força de trabalho, em nível de participação no mercado equiparável ao dos homens (QUELHAS, 2011).

Face à necessidade de produzir em igualda­de com os homens, as mulheres passaram a assu­mir nova identificação, transformando seu modo de vestir e de se comportar. Começa a existir um novo modelo feminino. As mulheres percebem que face à grande competitividade organizacional, os métodos mais humanos de governar são mais eficientes, e co­meçam a utilizar um novo modo de governar, com mais objetividade, emoção e inteligência.

A partir da década de 60, várias leis melhora­ram a figura da mulher, como a edição do Estatuto da Mulher Casada, que devolveu a plena capacidade à mulher, que passou a ter a condição de colaboradora e administradora na sociedade conjugal. Outro mar­co significativo foi a aprovação da Lei do Divórcio (1977), que substituiu a palavra desquite por separa­ção judicial e, também, tornou facultativa a adoção do patronímico do marido e estendeu ao homem o direito de pedir pensão. A principal mudança ocorreu com a Constituição Federal de 1988, que instituiu o princípio da igualdade ao igualar homens e mulhe­res nos direitos e deveres e vedar qualquer tipo de preconceito e discriminação. Por isso é importante avaliar o crescimento da mulher na sociedade não apenas no âmbito profissional, mas dentro do con­texto de democracia.

O que elas reivindicam hoje é serem reconhecidas como existentes ao mesmo título que os homens e não de sujeitar a existência à vida, o homem à sua animalidade. Uma perspectiva existencial permitiu-nos, pois, compreender como a situação biológica e econômica das hordas primitivas devia acarretar a supremacia dos machos (BEAUVOIR, 1970, p.86).

Nos últimos 150 anos, o movimento feminista tem sido responsável por diversas conquistas na vida da mulher, no entanto ainda há buscas por melhores condições e respostas eficazes. Hoje, o modo como cada mulher se coloca frente à sociedade se distancia cada vez mais do papel feminino exercido no século XIX; graças a sua influência ela vive nos dias atuais frente ao seu tempo, expondo-se às críticas e lutando para conquistar o espaço quase sempre acirrado.

A inserção da mulher no atual mercado de trabalho

A mulher do século XXI vem ganhando cada vez mais espaço no trabalho, na política, na socie­dade e na economia, com o compromisso de manter o equilíbrio sem perder a sua feminilidade, perante uma nova forma de viver, pensar e agir.

Estudos a respeito da crescente participação da mulher no mercado de trabalho concluem que este está relacionado a fatores culturais, demográficos e econômicos. Há algumas décadas a porcentagem de mulheres economicamente ativas tem aumenta­do consideravelmente. Isso se deve também, entre outros fatores, aos movimentos políticos e sociais ocorridos no mundo entre as décadas de 60 e 70. Essa mudança de padrões culturais impulsionou as mulheres a estudarem mais e a participarem do mer­cado de trabalho de forma consistente. Outro fator de grande relevância para a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho refere-se à es­tagnação econômica, elevada inflação e mudanças na estrutura do emprego vividas pelo Brasil na década de 80.

Os atributos denominados “femininos” co­meçam a ser valorizados. As pessoas qualificadas como inovadoras e intuitivas estarão mais aptas para conquistarem os cargos de chefia e liderança. Calil (2000, p. 70) destaca que:

A partir de agora, o paradigma do empregado que as empresas buscam é pessoa criativa e flexível às mudanças rápidas que varrem o mundo todo, em detrimento da figura do profissional cartesiano tão afeito à produção em série, à hierarquia absoluta e à compartimentação de funções, pois para produzir mecanicamente informações ou tarefas, máquinas fazem isso infinitamente mais rápido e com mais eficiência. Hoje em dia, os departamentos de re­cursos humanos estão buscando uma qualidade que por muito tempo foi ridicularizada por ser con­siderada feminina demais: a intuição. Algo que as máquinas ainda são incapazes de produzir.

As mulheres se destacam em algumas habi­lidades, o que vem possibilitando sua inserção no mercado de trabalho, em especial, pela capacidade empreendedora e de encarar com seriedade os desa­fios que se apresentam a cada dia: motivação, capa­cidade de trabalhar em grupo, intuição, criatividade, administração de conflitos, organização, administra­ção de recursos escassos, administração do tempo, atenção para o detalhe e simultaneidade.

Com essas características as mulheres estão conseguindo, cada vez mais, conciliar os trabalhos da vida pessoal com a profissional. O que antes era considerado um obstáculo, atualmente é considerado como um grande desafio. A participação da mulher no mundo dos negócios e a sua independência finan­ceira vêm mudando a forma como os produtos e ser­viços são desenvolvidos e comercializados.

A mulher está cada vez mais assumindo cargos estratégicos nas organizações, além de atuar como administradora do lar e educadora dos filhos. Para Capelle (2004), as grandes transformações percebi­das na sociedade refletem-se no campo organizacio­nal, apontando para um cenário de intensa competi­ção e discriminação, principalmente para o universo feminino, que absorve as responsabilidades profis­sionais, conciliando as responsabilidades também com a família. A conciliação entre vida profissional e vida familiar, principalmente em relação à dupla jornada e à maternidade, é fator de conflito vivencia­do pelas mulheres, deixando clara a diferenciação da condição da mulher em relação ao homem no merca­do de trabalho.

Nessa perspectiva, na opinião da autora, as di­ferenças entre o gênero feminino e o masculino são hierarquizadas de maneira diferente, e o trabalho da mulher acaba sendo colocado numa posição inferior ao trabalho masculino. Vários estudos evidenciam que o aumento da participação das mulheres no mer­cado de trabalho não correspondeu a uma diminui­ção da discriminação. Embora se tenha verificado mudanças importantes, a discriminação da mulher permanece, pois os homens continuam ocupando os mais altos cargos e ganhando maiores salários. Os trabalhos considerados mais formais e estáveis, prin­cipalmente vinculados a cargos de chefia, são nor­malmente ocupados por homens, enquanto os traba­lhos com menores atribuições de responsabilidades, ou aqueles na função de atendimento, são relegados às mulheres.

A forma de desenvolvimento capitalista pro­duziu historicamente uma vida cotidiana na qual o tempo que conta e que tem valor é aquele empre­gado na produção, aquele que gera mais valia. O período dedicado ao descanso, ao lazer, à reposição de energia, de se reconstituir física e mentalmente é aquele que sobra das atividades produtivas. O tra­balho doméstico, base material de sustentação das necessidades cotidianas, é inteiramente destituído de valor social no sistema capitalista. Um trabalho considerado sem valor leva a uma situação em que o tempo empregado na sua realização não é medido nem visibilizado.

No entanto, após trinta anos de movimentos feministas, o perfil do mercado brasileiro apresenta mudanças relativas a gênero. Se, antes, os serviços domésticos eram realizados apenas pelas mulheres, hoje os homens também disputam esse mercado, uma necessidade imposta pela falta de qualificação. Por outro lado, é cada vez maior o número de mu­lheres que precisam trabalhar para sustentar sozinhas suas famílias e não têm com quem deixar seus filhos.

Mesmo em presença dessa circunstância de in­ferioridade, a partir da inclusão feminina no espaço organizacional as relações de trabalho ganharam no­vos significados, pois homens e mulheres passaram a concorrer por oportunidades de cargos, posições hie­rárquicas, destaque e reconhecimento profissional.

A participação das mulheres no mundo do tra­balho impõe, também, sua presença nos espaços de luta política. Elas conquistaram o direito de partici­par dos sindicatos, na condição de filiadas, na luta por igualdade no trabalho; e no plano da participação política, o direito de votar e de serem votadas, na busca de seu pleno reconhecimento como mulheres e como cidadãs.

Assim, observando e fazendo uma análise histórica da evolução das mulheres no contexto or­ganizacional, social e familiar, notamos uma dinâ­mica constante de desenvolvimento, crescimento e conquistas. Entretanto, com foco nas organizações, mediante a ascensão e o crescente aumento das mu­lheres no mercado profissional, surgiram novos tipos de contradições nos espaços de interação social. Em grande parte das organizações, a sua lógica é calcada em valores “masculinos”, e tal lógica continua ainda a ser um obstáculo para as mulheres. Nesse contexto, as relações de gênero demandam discussão e análi­ses.

Considerações finais

Ao longo do século XX, o movimento femi­nista passou por diferentes momentos. Assim como outros movimentos de minorias sociais, este se ca­racterizou no decorrer da história pela sua especifici­dade: a luta pela conquista dos direitos das mulheres.

Porém, o movimento feminista não visava só garantir a participação da mulher na sociedade de forma equivalente à do homem e conquistar a igualdade em todos os direitos. O movimento abor­da, também, temas como o trabalho, a violência, a sexualidade, os estereótipos da mulher, entre outros, de forma única e revolucionária. “Uma vez que a opressão da mulher é a forma primordial e mais glo­bal de dominação, o movimento feminista trazia em si todo o potencial revolucionário das outras lutas” (GARAUDY, 1982, p. 68).

Nesse sentido, constatamos que nas últimas décadas o movimento pela “libertação das mulheres” obteve consideráveis ganhos sociais, políticos e eco­nômicos, melhorando a situação de muitas mulheres. Concomitantemente, os movimentos feministas con­tribuíram fortemente para a análise cultural contem­porânea.

Igualmente, as pesquisas antropológicas re­alizadas por teóricos do tema demonstraram que há uma enorme diversidade de condutas dos gêneros, embora houvesse uma aparente universalidade quan­to à subordinação das mulheres, pois independen­temente das tarefas a elas designadas em diferentes culturas, as mulheres eram consideradas inferiores aos homens.

Desse modo, as teorias feministas possibili­taram não só compreender as diferentes formas de construção da identidade social e individual da mu­lher, mas também refletir sobre as relações de gêne­ro: como se criam, se transformam ou se mantêm os padrões de gênero na sociedade, ou seja, para além desse sujeito “mulher”, universal, visualizando no­vos sujeitos.

Nesse contexto, a história evidencia que as pri­meiras conquistas específicas das mulheres se deram não só por meio da luta pela igualdade legal e contra as restrições dos seus direitos, mas também por meio da luta pela eliminação das barreiras que lhes impe­diam o desenvolvimento como pessoas. E, se assim foi, é porque aspiravam à substituição da dupla mo­ral por um só valor e exigiam o direito ao voto, ao sufrágio universal, ao acesso à educação formal e à formação profissional.

Ao longo do tempo, a experiência demonstrou à sociedade e, em particular, às mulheres, que em qualquer situação, e desde que tenham oportunida­des, a capacidade de desempenho delas é igual a dos homens. A evolução das mulheres no mundo do tra­balho fez com que suas características fossem se al­terando, e elas passaram a ocupar postos de trabalho tidos como masculinos. Além das dificuldades eco­nômicas e da decorrente necessidade de contribuir para o orçamento familiar, a elevação do seu nível educacional e a redução do tamanho da família fize­ ram da mulher um elemento fundamental no desen­volvimento das nações.

Constatamos que a mulher deixou de ser uma personagem passiva na sociedade familiar e social para ser um agente ativo, defensora de ações e argu­mentos em prol de sua postura: planejar, organizar, dirigir, controlar e realizar.

Portanto, é fundamental a compreensão de que a presença da mulher no ambiente organizacional modifica e transforma padrões, conceitos e crenças. Mas esse é um processo dinâmico que ainda se en­contra em construção, no qual os papéis de homem e mulher estão sendo redefinidos de acordo com uma visão que considera os seres humanos em sua globa­lidade e os liberta de padrões rígidos de comporta­mento.

Referências

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