Desigualdades salariais entre homens e mulheres a partir de uma abordagem de economistas feministas

Arquivista Radical
Felinismo Radical
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21 min readDec 22, 2018

Por Marilane Oliveira Teixeira

Os clássicos e os primeiros debates acerca das desigualdades

Os primeiros debates acerca das desigualdades entre homens e mulheres tiveram início entre o século XVIII e XIX, um período de transição e reestruturação da realidade social, ligado ao processo de industrialização. A produção orientada para o mercado estava se dissociando da produção doméstica destinada ao autoconsumo familiar. Tal processo se consolidará posteriormente com a implantação generalizada do capitalismo.

Este contexto contribuiu para que as análises dos pensadores clássicos se concentrassem a produção capitalista, e para que seu instrumental analítico e conceitual tivesse como referência exclusivamente esse tipo de produção. Para estes pensadores, os temas de maior preocupação estavam voltados para a criação de riqueza, por meio do trabalho assalariado e da distribuição de renda entre as classes sociais, e para os aspectos relacionados ao trabalho que envolvem a questão da produtividade, eficiência, salário, divisão do trabalho etc., sempre se referindo ao trabalho como emprego e ignorando a produção realizada no âmbito doméstico.

Portanto, nesse contexto, se produz uma redefinição dos espaços públicos e privados e inicia-se uma tradição que ignora a divisão do trabalho por sexo, ocultando o trabalho familiar doméstico e sua articulação com a reprodução do sistema capitalista (CARRASCO, 2008, p. 5). Para Smith,1 a atividade das mulheres em casa, destinada ao cuidado familiar, era muito importante, principalmente no que se refere às crianças e à educação dos filhos, uma vez que essa influência era indispensável para que eles se transformassem em trabalhadores produtivos e contribuíssem para a criação de riqueza. Para este autor, a obrigação primeira das mulheres era a de ser mãe e esposa, o que se tornaria incompatível com um emprego fora de casa (PUJOL, 1992).

Na análise do trabalho assalariado produzido pelos economistas clássicos, não existia nenhuma discussão em torno das raízes da segregação por sexo e tampouco se questionava o porquê de os salários das mulheres serem mais baixos. Para eles, o emprego feminino era considerado circunstancial e complementar. Smith foi severamente criticado por Priscila Wakefield2 por não integrar em suas análises o trabalho das mulheres — tanto mercantil como doméstico — e por não ter abordado o tema da exclusão das mulheres dos trabalhos mais bem remunerados, forçando-as à pobreza e à prostituição.

Nesse período, prevalecia o entendimento de que o salário das mulheres solteiras deveria ser igual ao que custa o sustento delas, mas não precisaria ser superior. O mínimo para um homem é sempre acima disso, porque para os homens o salário deve ser suficiente para sustentar a si mesmo, uma mulher e um número adequado de filhos (CARRASCO, 2008, p. 8). Na época, considerava-se prejudicial que as mulheres trabalhassem em troca de dinheiro, defendendo-se que elas só deveriam fazê-lo em casa ou em atividades de caridade. Isto não se aplicava às mulheres da classe baixa, que poderiam ter um emprego mal remunerado, uma vez que as condições de emprego e nível salarial não lhes permitiriam acesso a nenhum poder social e econômico. Conclusão: “os homens não se opõem a que as mulheres trabalhem, sim a que ganhem salários” (CARRASCO, 2008).

Já para Stuart Mill,3 quando a eficiência é igual e o salário desigual, a única explicação é o “costume”, fundado em preconceito na estrutura da sociedade que faz da mulher um apêndice do homem. Stuart Mill foi um dos poucos economistas de projeção, na época, que reconhecia o direito das mulheres à independência profissional e social.

As idéias e instituições que fazem do sexo o fundamento para uma desigualdade de direitos legais, e para uma diferença forçada de funções sociais, dentro em breve terão de ser reconhecidas como sendo o maior obstáculo para o aprimoramento moral, social e até intelectual.
(MILL, 1983, p. 260)

A dicotomia público/privado é tema central para as filósofas feministas da segunda metade do século XIX.

Entender o mundo dividido em dois espaços separados, não relacionados e com distinto reconhecimento social, facilitou a exclusão das mulheres do espaço público e reforçou seu confinamento no âmbito privado, junto com a dependência econômica de seus pais e maridos.
(PATEMAN, 1992)

Os temas mais amplamente tratados no século XIX em relação às mulheres foram: a situação social das mulheres e seus maiores níveis de pobreza; a igualdade de direitos, particularmente, o direito ao trabalho/emprego; a igualdade salarial e o reconhecimento do trabalho doméstico. Daubié4 estuda a situação das mulheres francesas durante o século XIX e analisa os problemas sociais e econômicos que conduzem a situações de extrema pobreza. A autora defende a existência de um forte nexo entre a ordem econômica e os códigos morais e civis da época que atentam contra mulheres e crianças. Ela conclui que são necessários três tipos de reformas para modificar a situação das mulheres: equiparar os salários femininos aos masculinos quando ambos realizam trabalhos iguais; abrir novos campos de trabalho para as mulheres para além dos já existentes e eliminar a desigualdade de direitos entre homens e mulheres. É fácil constatar que estas reivindicações defendidas por Daubié no século XIX seguem atuais, inclusive entre as modernas sociedades industrializadas.

Entre os autores clássicos prevalecia o entendimento de que cabe às mulheres o espaço privado (âmbito familiar) e que, aos homens, caberia, portanto, a responsabilidade pelo sustento da família. A presença das mulheres no mercado de trabalho era vista como circunstancial e passageira, uma vez que sua atividade principal é de reprodutora e dona de casa.

Já para os autores marxistas, ao se examinar a natureza de gênero do capitalismo, se evidenciam situações de desigualdade em relação às mulheres. Engels enfatizou o significado da exclusão das mulheres da economia de mercado como causa de sua subordinação no capitalismo: “Já podemos ver a partir disto que emancipar a mulher e fazer dela igual ao homem é e permanece sendo uma impossibilidade enquanto as mulheres ficarem fora do trabalho social produtivo” (ENGELS, 1972, p. 221).
Foram Karl Marx e Friedrich Engels que desenvolveram os fundamentos da economia política marxista para a qual classe é a relação entre grupos de pessoas caracterizados por interesses conflitantes quanto à produção e distribuição da mais valia do produto e da mais-valia do tempo de trabalho.5 No entanto, as primeiras formulações da teoria de classe não aprofundam a relação entre classe e gênero. Para Marx, os indivíduos que estavam fora do processo de produção capitalista, como as donas de casa, se proletarizariam à medida que a acumulação avançasse. Portanto, as diferenças entre os que não possuíam propriedade seriam eliminadas à medida que o trabalho fosse se tornando cada vez mais homogêneo.

As coisas mudaram com a família patriarcal e, ainda mais, com a família individual monogâmica. O governo do lar perdeu seu caráter social. A sociedade já nada mais tinha a ver com ele. O governo do lar se transformou em serviço privado; a mulher converteu-se em primeira criada, sem mais tomar parte na produção social. Só a grande indústria de nossos dias lhe abriu de novo — embora apenas para a proletária — o caminho da produção social. Mas isso se faz de maneira tal que, se a mulher cumpre os seus deveres no serviço privado da família, fica excluída do trabalho social e nada pode ganhar; e, se quer tomar parte na indústria social e ganhar sua vida de maneira independente, lhe é impossível cumprir com as obrigações domésticas. […] Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário. No mundo industrial, entretanto, o caráter específico da opressão econômica que pesa sobre o proletariado não se manifesta em todo o seu rigor senão quando suprimidos todos os privilégios legais da classe dos capitalistas e juridicamente estabelecida a plena igualdade das duas classes […] de igual maneira, o caráter particular do predomínio do homem sobre a mulher na família moderna, assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade social efetiva entre ambos, não se manifestarão com toda a nitidez senão quando homem e mulher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. Então é que se há de ver que a libertação da mulher exige, como primeira condição, a reincorporação de todo sexo feminino à indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão da família individual enquanto unidade econômica da sociedade.
(ENGELS,1972, p. 61)

Para Engels, a opressão das mulheres se originava da necessidade dos homens de garantir que as propriedades ficassem com “legítimos” herdeiros; no entanto, a subordinação presente nas famílias que não possuíam propriedade permaneceu sem resposta pelo autor (ENGELS, 1972).

Para Engels, somente através de seu movimento no âmbito da produção capitalista, as mulheres começariam a fazer parte da classe operária. Para os marxistas daquele período, porém, a classe era a diferença econômica e social prioritária, e todos os trabalhadores seriam reduzidos ao trabalho alienado comum, independentemente de gênero ou raça.

Ambos (Marx e Engels) não reconheciam o trabalho doméstico como trabalho que gera valor. É, inclusive, desta tradição de “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo”, formulada por Marx, que surge a noção do trabalho doméstico como “improdutivo”, hierarquicamente inferior ao “produtivo”, e é desta hierarquia que deriva a visão do trabalho das mulheres.

As atividades realizadas pelas mulheres no interior dos domicílios não são menos econômicas que as dos homens. Os bens e serviços produzidos pelas mulheres são consumidos pelos membros da unidade doméstica. Suas tarefas não remuneradas, ainda que de forma indireta, geram renda. Portanto, o papel da mulher é tão econômico quanto o do marido.

Esta afirmação contém uma visão extremamente crítica do que em geral se entende por “atividade econômica”. A atividade que não pode ser “vendida” é, nesta perspectiva, considerada “improdutiva”, categoria em que se enquadram as tarefas domésticas.

Embora se reconheça toda a crítica que o marxismo fez à economia de mercado, a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo foi uma das marcas das linhas de pensamento dele derivadas. No entanto, para as feministas marxistas, colocava-se a questão de como “enquadrar” o trabalho doméstico.

Hartmann sugere que há uma “base material” do patriarcado no capitalismo, e isto não se resume apenas à educação das crianças na família, mas se afirma em todas as estruturas que permitem ao homem controlar o trabalho das mulheres (HARTMANN, 1979, p.12). Por exemplo, no início do século XIX, as mulheres e crianças eram forçadas a trabalhar em empregos de baixa qualidade, seja em minas de carvão, seja na indústria têxtil ou outras. Estes abusos eram tão abertamente opressivos que as leis relativas às fábricas começaram a proibir que a força de trabalho feminina e infantil fosse empregada em tais ocupações. Os homens, então, “procuraram preservar os trabalhos bem pagos para si mesmos e aumentar os salários dos homens em geral” (HARTMANN, 1979, p. 16).

À medida que o capitalismo se desenvolvia, permaneciam os preconceitos patriarcais. As mulheres ficavam em casa, eram encaminhadas a “profissões femininas”, como enfermagem e ensino, o que reforça a crença de que as mulheres, sendo menos capacitadas que os homens, só podem exercer funções extensivas de sua tendência “natural”, isto é, cuidar dos outros (BRANDT, 1995, p. 38).

Segundo Matthael, na primeira metade do século XIX — início da fase industrial do capitalismo –, os capitalistas encontraram dificuldade em atrair os homens a deixar sua produção doméstica e vir trabalhar nas fábricas. Isto levou à política do “salário-família” que beneficiou os homens que queriam salários com os quais pudessem sustentar suas famílias deixando as mulheres e crianças em casa. Portanto, a mudança das normas sociais sobre os papéis de trabalho próprios para homens e mulheres foi um desenvolvimento-chave para as economias capitalistas do século XIX.

Para Marshall, um dos objetivos da política do salário-família era, é óbvio, deter e, se possível, reverter a queda da taxa de natalidade. Outro, e mais duradouro, era sustentar a família, como núcleo vital da ordem social (MARSHALL, [19–], p. 84).

As mulheres podiam ter alguns postos de trabalho que pagavam menos porque elas eram mulheres, o que também as incentivava a ficar em casa cumprindo o papel de mães e esposas. A base material para a opressão dos homens sobre as mulheres, o patriarcado, era assegurada, relegando às mulheres empregos mal pagos, muitas vezes análogos ao trabalho doméstico (HARTMANN, 1979; FOLBRE 1994, p. 95).

A origem do debate sobre a igualdade salarial

Com o surgimento da escola marginalista — posteriormente, neoclássica — o centro das atenções se desloca da produção para o mercado, institucionalizando-se definitivamente a separação instaurada por Adam Smith entre espaço público e espaço privado, produção mercantil e produção doméstica, relegando-se, desta forma, o trabalho doméstico à marginalidade e à invisibilidade.

Para Picchio, vai-se operar uma substituição das ideias baseadas nas necessidades de subsistência e custos de reprodução da força de trabalho, pela teoria da produtividade marginal (CARRASCO, 2008, p. 8)

Um dos primeiros debates socioeconômicos relacionados ao trabalho das mulheres que têm lugar depois do nascimento da economia neoclássica é “sobre a igualdade salarial”. Embora esta discussão tenha sua origem no final do século XIX, será durante a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) que se manifestará com mais força.

Para Pujol (1992), este debate não se reduziu apenas à questão da igualdade entre homens e mulheres, mas introduziu diversos temas relacionados com a situação das mulheres na sociedade capitalista. Entre eles, pode-se destacar: o acesso das mulheres ao emprego; as desiguais condições de emprego entre os sexos; a concepção das mulheres como mães e esposas; a contribuição das mulheres para o bem-estar, tanto através do trabalho pago como do trabalho não pago; a dependência do capitalismo com o trabalho das mulheres e a relação entre sistemas de classes e de sexo em uma sociedade patriarcal capitalista.

Ao tratar do problema do salário, o debate proporcionou uma discussão conceitual sobre o “salário familiar” pago aos homens. Neste debate, se colocavam duas questões sobre se os salários das mulheres eram adequados ou não. Os salários representavam a contribuição das mulheres à produção ou os salários constituíam um nível de renda de subsistência suficiente.

Nestas posições, estavam implícitos dois conceitos de salário: a ideia de produtividade e a ideia de subsistência. Para algumas mulheres, prevalecia o entendimento de que elas eram menos produtivas, atribuindo esta diferença às menores possibilidades de acesso ao mercado de trabalho em decorrência de menor escolaridade.

Trata-se das primeiras aproximações do que se tornaria conhecido mais tarde como as teorias de segmentação: o mercado de trabalho está estruturado de tal maneira que coexistem grupos de trabalhadores/as que não competem entre si, separados por questões setoriais ou geográficas.

Para Webb, a experiência de trabalho das mulheres que passaram a substituir os homens durante a Primeira Guerra foi fundamental para que o movimento por igualdade de condições de trabalho com os homens ganhasse força (PUJOL, 1992).

As autoras que participam deste debate enfrentam posições que sustentam que os salários mais baixos das mulheres se deve ao fato de suas necessidades de subsistência serem menores (CARRASCO, 2008, p. 9).

Os salários mais baixos eram entendidos como resultado das suas necessidades de subsistência que eram menores, uma vez que não tinham obrigações familiares. Trata-se de uma construção ideológica, já que não havia bases materiais que comprovassem isso. Neste conceito está implícita a ideia de mulher como força de trabalho secundária. Há nitidamente uma separação e uma hierarquização entre as esferas do público e do privado, da produção e da reprodução. Percebe-se uma concepção de família nuclear na qual o homem é o principal ou único provedor, e a mulher, a responsável pela esfera privada. Ou seja, a inserção das mulheres é sempre vista de forma complementar e está condicionada a essa lógica mais geral.

No entanto, o conceito de família mudou muito neste último século. Hoje, não é mais possível se falar de um padrão de família, constituído de pai, mãe e filhos. Novos arranjos familiares se formaram. O elevado número de mulheres chefes de família é uma realidade no mundo inteiro, especialmente nos países mais pobres. No Brasil, as mulheres representam hoje 1/3 dos chefes de família.

Para Rathbone (1917), o principal obstáculo para a igualdade salarial é precisamente o pressuposto, aceito socialmente, de que os homens são os encarregados do salário familiar. Sendo assim, se as mulheres ocuparem os postos de trabalho considerados masculinos, estarão contribuindo para reduzir o salário familiar. A autora defende, então, um sistema de pagamento público com caráter familiar para as mulheres.

A Nova Economia Doméstica

É a partir da abordagem da Nova Economia Doméstica que a teoria neoclássica buscará conciliar o seu individualismo metodológico, com a análise econômica da família. Segundo esta abordagem, é o chefe de família que redistribui a renda familiar
e toma decisões sobre consumo para todos os membros da família. O chefe da família é um altruísta, zela pelo bem-estar da família e é capaz de transferir o poder de compra para eles (BECKER, 1981). Embora o chefe não seja explicitamente definido com um homem, esta concepção de família espelha um ideal patriarcal vitoriano. Trata a família como uma unidade de interesses coesos e usa os princípios da teoria da escolha racional para explicar as escolhas de gênero e resultados. A suposta inclinação natural feminina para as atividades domésticas resulta na crença de que a divisão sexual do trabalho é reciprocamente benéfica, tanto para os homens como para as mulheres (BARKER, 1999, p. 574).

As desigualdades na distribuição do trabalho doméstico e as assimetrias na divisão do trabalho são explicadas como consequência das escolhas que maximizam a utilidade individual (BENERIA, 1995). Esta análise desconsidera importantes questões sobre alocações iniciais de recursos entre indivíduos, incluindo habilidades de gênero e não problematiza as diferenças entre autonomia e poder. A Nova Economia Doméstica não traz propostas para diminuir e transformar as relações de gênero.

A teoria neoclássica e a segregação profissional A segregação profissional por gênero refere-se à desigualdade na distribuição de homens e mulheres nas diferentes categorias profissionais. É um conceito usado para demonstrar que homens e mulheres têm empregos diferentes. Há justificativas práticas e filosóficas para as análises de segregação profissional. Na prática, esta segregação é um importante fator de desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Sua existência é um sintoma de que as mulheres não têm acesso irrestrito às oportunidades do mercado de trabalho.

A segregação também tem importantes implicações para o descompasso salarial entre homens e mulheres, assim como por oportunidades de promoção no mercado de trabalho. Compreender as causas e consequências da segregação profissional é decisivo para a formulação de políticas para o mercado de trabalho. As políticas de ação afirmativa, por exemplo, podem ser interpretadas como uma tentativa de reduzir a segregação profissional e as políticas para igualar os salários podem ser vistas, em parte, como um esforço para reduzir as diferenças de renda que a segregação pode causar.

Para a teoria neoclássica há duas explicações para a segregação profissional: a teoria do capital humano e as teorias da discriminação. Para a teoria do capital humano a segregação é resultado de decisões racionais das mulheres de investir em quantidades e qualidades diferentes de educação e treinamento. O pressuposto desta teoria é o de que as mulheres adotam decisões diferentes de investimento, supondo que a participação feminina na força de trabalho não é contínua e que as habilidades adquiridas por investimento em capital humano vão-se perder.

Em oposição à teoria do capital humano, as teorias da discriminação no mercado de trabalho concentram-se no lado da demanda do mercado, isto é, o empregador, ao explicar a segregação profissional. Para Becker, os empregadores apresentam resistência à contratação de mulheres para certas ocupações; portanto, as mulheres tenderão a se concentrar em profissões para as quais a discriminação é relativamente pequena ou inexistente.

A teoria da discriminação estatística é também usada como um meio de explicação para a segregação ocupacional. Para os teóricos da segregação ocupacional (PHELPS, 1972), os empregadores adotam decisões de contratar com base em informações imperfeitas sobre o futuro da produtividade de trabalhadores. Já que há custos associados com contratação e treinamento, empregadores tentam reduzir tais custos atribuindo ao candidato qualidades relativas ao grupo social. Se as mulheres são coletivamente vistas como pouco comprometidas com o trabalho, ou se lhes impomos certas características, então serão contratadas para certos postos de trabalho. O resultado é a segregação profissional.

As três teorias receberam críticas generalizadas. No caso da teoria do capital humano, não se considera o grau de mediação destas escolhas pela percepção de discriminação que barra a entrada de certas trabalhadoras no mercado de trabalho e que pode determinar que escolhas profissionais são as mais adequadas. Além disso, a participação intermitente da mulher na força de trabalho é vista pela teoria como uma verdade, desconsiderando as forças socioeconômicas que podem afetar sua permanência ali.

Tais teorias não explicam as origens do preconceito no mercado de trabalho, mas simplesmente assumem que ele existe (BURNELL, 1999, p. 578–583). Para Bergmann, a discriminação no recrutamento causa não só a segregação profissional,6 mas também baixos salários para as mulheres. A discriminação concentra grande número de mulheres em ocupações femininas, o que aumenta a oferta de trabalho e diminui os salários. Para a autora, esse estado de coisas injusto e discriminatório tem como consequência uma segregação por gênero no mercado de trabalho, institucionalizada por normas e práticas sociais contemporâneas.

Para algumas pesquisadoras feministas, os modelos da economia institucional de mercado de trabalho segmentados são mais consistentes e mais promissores para analisar as causas e consequências da segregação profissional (WOODBURY,1987).

As novas percepções do processo de segregação profissional podem ser mais facilmente incorporadas aos modelos de mercado de trabalho segmentados por dois motivos. Primeiro, eles enfatizam que a segregação não é simplesmente o resultado das escolhas racionais e livres como manifestado na teoria neoclássica. O papel das limitações do comportamento na determinação do processo de mercado de trabalho é explicitamente reconhecido. Segundo, tais modelos não veem os mercados de trabalho isolados do resto da sociedade. A segregação profissional é explicada por teorias de mercado segmentadas, em parte como resultado da transferência de trabalhadores para mercados de trabalho primários e secundários (RUBERY, 1986).

Assim, a segregação das mulheres em poucas profissões não ocorre como consequência de escolhas racionais e voluntárias dos trabalhadores, mas por influência de estereótipos e da discriminação estatística dos empregadores. Uma vez situados em um específico segmento do mercado de trabalho, os trabalhadores passam a adquirir as características de seus postos, reforçando, desta forma, os padrões de segregação profissional.

As teorias de mercado de trabalho também explicam a segregação profissional como resultado de um contexto social mais amplo, dentro do qual operam os mercados de trabalho. Estes são vistos como instituições culturais tanto quanto econômicas e, como tais, as regras que governam sua operação — e os postos que homens e mulheres ocupam — refletem as normas e papéis desempenhados na sociedade como um todo.

O trabalho produtivo e reprodutivo

As pioneiras no estudo do reconhecimento da atividade doméstica como trabalho foram Campbell e Gilman (1898/1994 apud VARA, 2008). Campbell analisa a relação entre a economia individual e a economia social, reconhecendo a casa como centro de produção. Ela sustenta que este aspecto precisa ser estudado pelos economistas.

Para a autora, as condições em que é realizada a produção doméstica — diferentemente da produção industrial — não havia evoluído, mantendo-se, portanto, uma estrutura antiga e pouco produtiva. Conclui que seria necessário transferir uma série de atividades realizadas em casa para o mercado. Isto reduziria os custos domésticos, e as mulheres passariam a dispor de mais tempo para dedicar-se ao trabalho no mercado.

Reid (1934) produziu uma obra pioneira sobre a produção doméstica. A autora reconhece a dificuldade conceitual para diferenciar consumo de produção em casa e propõe uma definição de produção doméstica que tenha como referência a produção de mercado. Ela apresenta diversos métodos para dar um valor monetário ao trabalho realizado em casa. A autora continua sendo uma das principais referências para os estudos de valorização do trabalho doméstico e o desenvolvimento das contas nacionais e a produção doméstica.

Nos anos 1960, desenvolveu-se um grande interesse pelos estudos da produção doméstica, mas com enfoques teóricos absolutamente distintos. O paradigma neoclássico estuda o comportamento das famílias tendo como referência a microeconomia. As famílias são unidades de decisão que maximizam uma função de utilidade submetida a restrições (BECKER, 1981).

O debate de tradição marxista e feminista centra-se fundamentalmente no reconhecimento da atividade doméstica como “trabalho” e nas relações que mantêm com a produção capitalista, além dos principais beneficiados por este tipo de trabalho.

Articular produção e reprodução é necessário, mas não suficiente, é preciso pensar em termos de relações sociais (as práticas sociais). Para Daniele Kergoat (1986), trazer a contradição e o antagonismo entre grupos sociais para o centro da análise significa articular produção e reprodução e trabalhar simultaneamente grupos de relações sociais — relação entre sexos e relação de classe.

No entanto, para Picchio, a única maneira de compreender as características gerais e persistentes do trabalho assalariado é estudar o lado obscuro e oculto do trabalho das mulheres, o trabalho de reprodução, habitualmente definido como “trabalho doméstico”. A insuficiência teórica que impede que se veja o trabalho de reprodução em termos analíticos deu lugar a uma invisibilidade social deste trabalho e, em certo sentido, das pessoas que o realizam. Na verdade, o ocultamento se dá em relação à produção-reprodução que caracteriza o sistema capitalista.

Para além de uma ampliação da definição do termo trabalho incorporando o trabalho doméstico, é necessário, também, especificar a relação entre produção e reprodução e entre mercado e reprodução. Para a autora, o trabalho doméstico não é simplesmente a combinação de tarefas necessárias para a reprodução cotidiana do núcleo familiar e para a satisfação das necessidades físicas e psicológicas de seus membros. O verdadeiro papel do trabalho doméstico é reconstruir uma relação entre produção e reprodução que tenha sentido para as pessoas. Espera-se que, graças ao trabalho das mulheres, a relação alienada que estrutura o sistema de produção e o sistema social se inverta para o seio da família ou, ao menos, que esta absorva os seus conflitos. O trabalho doméstico tem como objetivo o bem-estar das pessoas, enquanto produção de mercadorias objetiva
a acumulação de benefícios. O processo de acumulação utiliza a energia humana como mercadoria, e a tarefa do trabalho doméstico é reproduzir essas energias como parte integrante das pessoas, tarefa que, sem dúvida, deve desenvolver-se dentro dos limites de sua reprodução como mercadoria (PICCHIO, 1994).

É impossível estabelecer uma fronteira entre tarefas materiais e cuidados como parte do trabalho de reprodução (FINCH; GROVES, 2008). A diferença de gênero se manifesta, entre outras coisas, nesta enorme quantidade de energia que as mulheres dedicam a outras pessoas em um sistema que trata a todos como mercadorias. O trabalho de reprodução foi confiado historicamente às mulheres. Isto significa que delas se exige que compensem as insuficiências dos serviços públicos e os efeitos destrutivos do mercado de trabalho (FINCH; GROVES, 2008).

Para evidenciar a estrutura do mercado de trabalho a partir do trabalho de reprodução das mulheres, Picchio utilizará a teoria clássica do excedente. O preço natural do trabalho é definido como o preço que reflete o custo de reprodução historicamente dado pela população trabalhadora. Na teoria clássica de determinação dos salários, este não vem determinado, em termos gerais, pela produtividade do trabalhador individual na fábrica, mas reflete o processo de reprodução social do trabalhador, de sua família e da “raça” trabalhadora em seu conjunto.

Notas

1 Adam Smith, filósofo inglês que viveu no século XVIII autor do livro A riqueza das nações, considerada uma das obras econômicas mais importantes.
2 Ver Dimand; Dimand; Forget (2000)
3 Stuart Mill, filósofo e economista inglês que viveu no século XIX. É um dos principais pensadores econômicos.
4 Ver Dimand y Forget, 2000.
5 Entende-se como mais-valia do tempo de trabalho a parte da produção social acima e além do que é necessário para a reprodução da sociedade em seu atual nível de produção e o tempo necessário para produzi-la.
6 A segregação profissional por gênero refere-se à desigualdade na distribuição de homens e mulheres nas diferentes categorias profissionais. É um conceito usado para demonstrar que homens e mulheres têm empregos diferentes.

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