Desmascarando o mito do lesbianismo político

Arquivista Radical
Felinismo Radical
Published in
8 min readDec 15, 2018

Por Radicaldykes
Tradução A.M

Lesbianismo político não é uma “identidade”, isso é conversa queer. Lesbianismo político é um processo. Um processo através do qual compreendemos as maneiras nas quais nós, e nossas irmãs, fomos individualmente prejudicadas pelo patriarcado heterossexual. É um reconhecimento de que, em um nível pessoal e político, nós não temos que estar intimamente envolvidas com um sistema que é extremamente prejudicial a nós e que podemos amar outras mulheres de todas as formas, em vez de competir com elas ou desconfiar delas.

Não é puramente sobre a sexualidade (por quem você se sente atraída). Também não é sobre se “apropriar” da palavra lésbica, mantendo todas as aparências heterossexuais e desfrutando dos benefícios heterossexuais, tais como eles existem. Nem vai, por si só, desmantelar o patriarcado, embora seja um passo ao longo do caminho. Muitas mulheres descobriram que é mais fácil ser uma ativista radical sem a carga de dissonância zumbindo em seus ouvidos. Muitas mulheres se libertaram do choque de serem intimamente ligadas a um sistema opressivo tendo uma analise radical, critica sobre o assunto. Muitas mulheres descobriram que elas podem, e devem, amar mulheres, como resultado direto de seu feminismo. A opressão contra as mulheres é a única na qual a oprimida é obrigada a viver intimamente com o opressor. Isso torna difícil, se não impossível, entender o que está acontecendo politicamente quando estamos nessas situações. Nosso julgamento político é inevitavelmente nublado, porque temos de encontrar uma maneira de encobrir verdades pessoais, a fim de continuar a viver de tal maneira. É somente quando nós nos libertamos dos constrangimentos do patriarcado heterossexual que podemos nomear nossas verdades sob esse regime.

A resistência ao lesbianismo político dentro da atual emergência do feminismo radical na esfera virtual; uma resistência a entender e aceitar o lesbianismo político, é extremamente decepcionante para nós que abraçamos esse conceito há muitos anos. É particularmente decepcionante porque essa resistência e essa hostilidade partem de um conjunto de mulheres novas e mais jovens, que estão descobrindo o processo do lesbianismo político. Muitas mulheres que se “assumem” via o processo do lesbianismo político, o fazem porque elas conheceram feministas radicais lésbicas, ou feministas radicais, e se conectaram; politicamente, pessoalmente e emocionalmente. A atividade política virtual raramente, ou nunca, captura o processo de lesbianismo político, porque ele é uma experiência pessoal, real e vivida, provocada por meio da conscientização.

Algumas mulheres novas, mais jovens, têm medo de “sair do armário” ou estão convencidas pela negatividade que seus sentimentos são de alguma forma “irreais”. É fundamental para qualquer lésbica “recém-assumida” que ela se sinta bem-vinda e aceita, e não questionada. Infelizmente, há um conjunto vocal de lésbicas virtuais que se associam com a teoria feminista radical (eu não estou certa se elas se identificam como feministas radicais ou não) que, sem compreender o processo do lesbianismo político, acusam essas mulheres de “apropriação”. Acompanhando essa acusação ofensiva há também a sugestão de que o lesbianismo político é exatamente como o “debate trans — se eu digo que sou uma lésbica, eu sou”. Isso não é somente uma interpretação absurda do processo de lesbianismo político, como também falha em analisar a construção da sexualidade a partir de uma perspectiva feminista radical. O pressuposto subjacente é que há um lesbianismo “autentico” e uma versão que é tão inautêntica que é rotulada como “apropriação”. Isso ignora completamente a analise feminista radical de que a heterossexualidade é uma parte importante da nossa opressão e que escapar a sua colonização trás muitos benefícios para nós enquanto indivíduos e para as mulheres enquanto classe.

Algumas lésbicas céticas nos perguntam por que nós não podemos “incentivar” mulheres a se tornarem celibatárias então; deixando o universo lésbico somente para as lésbicas “puras”. A questão em si demonstra uma falta de compreensão sobre a construção social da sexualidade. Na maioria das sociedades, a canalização do desejo sexual em uma construção social leva a toda uma série de outros fatores que ditam como as pessoas vivem suas vidas. Muitas mulheres heterossexuais se tornam celibatárias e vivem os seus dias dentro de seus casamentos heterossexuais, com todos os benefícios econômicos que isso traz. Ser celibatária, por si só, não é tão contra-patriarcal quanto se assumir lésbica e viver dentro da cultura e da comunidade lésbica. E, mais uma vez, a ênfase sobre o celibato define todas as relações de atividade sexual, ou a falta dela. A construção social da sexualidade é muito mais complexa do que isso.

Sempre que este assunto vem à tona, algumas lésbicas mais velhas também ficam receosas. Elas estão certas, baseando-se em seus passados, que algumas mulheres heterossexuais se identificam como lésbicas, mas não se sentem sexualmente atraídas por mulheres. As mulheres heterossexuais o fazem como se fosse um tipo de lealdade política equivocada, dizem. Eu não estou ciente dessa definição de “lesbianismo político” ter sido parte, em qualquer momento, das minhas discussões políticas. Não foi algo com que eu esbarrei no passado e me pergunto se não ocorreu em bolsões nos Estados Unidos ou se sequer aconteceu ou se não foi apenas uma má interpretação do processo de lesbianismo político. Quem sabe? Assim como o feminismo radical não pode ficar preso por causa dos mitos que existem sobre ele, nem pode o lesbianismo político se isso significar que mulheres terão medo de se assumir porque não serão aceitas como lésbicas “reais”.

O excesso de ênfase na atividade sexual como uma parte essencial da experiência lésbica é preocupante. A maioria das mulheres heterossexuais tem experimentado a pressão de serem sexualmente ativas. Todas nós fomos condicionadas a acreditarmos que a sexualidade é uma parte importante das relações intimas ou então a relação não é “real”. Poucas pessoas muito idosas, geralmente, têm uma vida sexual ativa. Elas têm outros desafios para enfrentar. Lésbicas não são diferentes, mas elas não deixam de ser lésbicas. Celibatários mais idosos não tem sua sexualidade constantemente questionada; é assumido que eles são heterossexuais. Se a atração sexual é constante ou não, não deveria ser a definição do que é ser uma lésbica. Ser lésbica é uma construção social da intimidade, de comunidades e culturas. Normalmente, inicialmente, isso leva a uma expressão sexual, mas não sempre e durante todo o tempo para muitas lésbicas.

As mulheres heterossexuais tem se dedicado a uma hostilidade virtual ao lesbianismo político de algumas lésbicas. Elas, por sua vez, têm repetido o mantra que o processo de lesbianismo político é apropriação. Por isso, dizem elas, é perfeitamente normal afirmar que, se o mundo fosse uma ilha lésbica, permaneceriam celibatárias, muito obrigada. “Antigamente” lésbicas teriam desafiado tais afirmações, mas hoje em dia estão muito ocupadas “sexualizando” o conceito de lesbianismo para o fazer.

A conversa contemporânea sobre a sexualidade não está atravessada por uma analise feminista radical — ainda que possa consistir em feministas radicais trocando palavras. A premissa ideológica por trás do debate é que a sexualidade é inata e que “nascemos desse jeito” sexualmente. É o único elemento da opressão das mulheres em que há uma aceitação política de que NÃO HÁ ESCAPATÓRIA.

Na verdade, a sexualidade, enquanto construção social, é muito, muito mais do que simplesmente por quem nós estamos atraídas em qualquer momento de nossas vidas. É moldada, institucionalizada e estruturada para beneficiar os homens enquanto uma classe, e oprimir as mulheres enquanto uma classe. As mulheres são escravas não remuneradas na esfera doméstica e isso inclui o aspecto heterossexual. Muitas feministas radicais contemporâneas têm escrito sobre os perigos do intercurso genital (frequentemente chamado de PIV — em inglês, sigla para pênis na vagina) para as mulheres e as pressões sob as quais as mulheres estão submetidas para aceitarem isso como a única forma de atividade sexual possível ou desejável, as custas do bem-estar e prazer delas. “Pornotituição”¹ (pornografia, mulheres sendo compradas para fins sexuais), os mitos que cercam a violência sexual, assédio sexual, violência doméstica, são todas as formas de pressão e coerção diretas e indiretas que estão levando mulheres a serem sexualizadas, desumanizadas e vistas pelos homens como partes dos corpos objetificados e/ou suas posses. As formas mais sutis de coerção e pressão para escravidão incluem o “mito da princesa de conto de fadas”, que “o homem certo para você está lá fora em algum lugar”, e outras sortidas doutrinações bem conhecidas que ocorrem assim que aprendemos nosso idioma. Submissão sexual forçada e coagida, independentemente de seus desejos e necessidades, são a pedra angular da servidão doméstica, que os homens exigem das mulheres sob o regime do patriarcado heterossexual.

A ideia, por tanto, de que as mulheres não estão vinculadas a essa servidão para sempre por causa de sua sexualidade “born this way” (em português, “nascida desse jeito”), tem sido uma revelação libertadora para muitas feministas ao longo das décadas. A ideia de que a sexualidade, assim como todos os outros aspectos da vida, podem mudar e mudar junto com realizações políticas, é revolucionária em um mundo onde a sexualidade é vista como fixa e inata. Se exigimos que os homens mudem o seu comportamento sexual, como podemos negar que temos o potencial para mudar os nossos desejos sexuais, direcionando-os por um caminho mais libertador?

Há outro mito bastante abundante na internet hoje. Ele ganhou força por causa da prolífica produção literária de uma pequena minoria de crentes. É a ideia de que a lésbica nascidas-desse-jeito (ou a mulher que sempre escolheu o lesbianismo) é, de alguma forma, livre das amarras do patriarcado heterossexual simplesmente porque ela evitou a pressão de ter uma experiência heterossexual. Bom, eu discordo, porque tive relações sexuais com algumas lésbicas nascidas-desse-jeito não feministas. Elas se odiavam e odiavam outras mulheres tanto quanto qualquer outra pessoa — com o fardo de acreditar que não tinham outra escolha senão serem lésbicas. Alguém dizendo “Eu não quero amar você, mas eu não posso fazer nada” não é exatamente encorajador. Elas tentaram imitar muitos dos princípios típicos dentro da heterossexualidade; como o de que alguém te deve sexo se está em um relacionamento contigo, sempre que você quiser. Há muito mais a dizer sobre esse assunto, mas, em última instancia, eu não acredito que qualquer mulher é livre de internalizar o ódio às mulheres. Ter sempre sentido atração sexual por outras mulheres/meninas não é um cartão de “saída da prisão”.

Eu também gostaria de abordar brevemente outro mito. O mito é: Só aquelas que encontraram o lesbianismo através do processo político, opostamente ao desejo puro das lésbicas “nascidas-desse-jeito”, podem se desviar do caminho dourado e “voltar para homens”. Dadas as origens variadas das mulheres que conheci que redefiniram suas heterossexualidades ou bissexualidades, não há nenhuma base para afirmar que o lesbianismo politico é mais provável a resultar em heterossexualidade do que em qualquer outra rota. Na verdade, eu diria que é menos provável, considerando que o lesbianismo político é um processo tão profundamente enraizado. A alegação de que deveríamos valorizar a experiência sexual em detrimento do pensamento político é altamente duvidosa de uma perspectiva feminista radical.

Em resumo, eu peço que lésbicas que não compreendem o lesbianismo político parem de deturpá-lo para depois argumentar contra essa deturpação. Este é um fenômeno que acontece com feministas radicais o tempo todo e eles já devem saber o quão frustrante é. Eu também peço que mulheres heterossexuais parem de usar os argumentos que nós lésbicas temos entre nós mesmas para sustentar suas posições políticas. Você não será prejudicada por se abrir as idéias das lésbicas políticas. Na verdade, muitas mulheres heterossexuais anteriormente sentiram que suas vidas foram enormemente enriquecidas por elas.

Notas

¹ Termo original: Pornstitution. Traduzido livremente.

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