O capitalismo financeiro não liberta as mulheres: análises feministas materialistas e imbricacionistas

Arquivista Radical
Felinismo Radical
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28 min readDec 29, 2018

Por Jules Falquet
Tradução Maria Leonor Loureiro

Desde a época de Marx e da revolução industrial, uma franja importante dos movimentos sociais progressistas está convencida de que a extensão do capitalismo, desenvolvendo as forças produtivas e a classe proletária, vai estender as relações salariais ao conjunto da mão de obra e, acarretando finalmente sua própria superação, conduzir à sociedade sem classes, enfim igualitária. Numa ordem de idéias vizinha, embora sutilmente diferente, muitas feministas estimaram que o acesso das mulheres ao trabalho assalariado e a independência econômica que o acompanhava eram a principal via de acesso à libertação. Apoiando-me nas teorias feministas materialistas francófonas1 e nas da imbricação das relações sociais de sexo, “raça” e classe, mostrarei neste artigo que as coisas estão longe de ser tão simples.

Numa primeira parte, veremos com Colette Guillaumin, depois com Danièle Juteau e Nicole Laurin, que as mulheres consideradas enquanto classe são presas a uma dupla lógica de apropriação e de exploração. Mostraremos em seguida que a globalização neoliberal, em particular ao reorganizar o trabalho de reprodução social antroponômica, prorroga essa mistura de apropriação e de exploração, atraindo para o “trabalho desvalorizado” vastas partes da mão de obra, especialmente feminina, mas não só. Enfim, proporemos pistas de reflexão materialistas e imbricacionistas, em particular a da “desamalgamação conjugal”, para analisar o trabalho das “mulheres globais”,2 e a evolução das relações sociais.

I. A classe das mulheres, entre exploração e apropriação

Seguindo o legado da economia política marxista, dos trabalhos de Braudel (1985) sobre a história do capitalismo e os de Wallerstein sobre o sistema-mundo (1974, 1980, 1989), considero a atual globalização neoliberal como o desenvolvimento contemporâneo do modo de produção capitalista, principalmente ocidental, inscrito numa história longa, desde 1492, em que várias ondas sucessivas de colonização e os sistemas de tráfico e de escravidão desempenharam um papel central. Marcada por um desenvolvimento desenfreado do capitalismo financeiro, a globalização neoliberal consiste, no plano da produção material, em uma reorganização global da divisão do trabalho segundo suas diferentes dimensões: sexual, social e “racial”.

Veremos aqui como a teoria das relações de sexagem (apropriação das mulheres) de Colette Guillaumin (1992 [1978]) permite pensar a dinâmica da imbricação3 das relações sociais de poder de sexo, “raça” e classe, em seguida as análises de Danièle Juteau e Nicole Laurin (1988) sobre as transformações da apropriação nos anos 1980, período em que se começam a sentir os efeitos do neoliberalismo.

A. Colette Guillaumin e a dinâmica das relações sociais

O conceito central de Colette Guillaumin é o das relações de sexagem, que ela define como relações de apropriação física direta, “uma relação de classe geral em que o conjunto de uma está à disposição da outra” (Guillaumin, 1978, p. 21–22). Guillaumin distingue dois componentes: a apropriação individual ou privada e a apropriação coletiva. A apropriação individual ocorre pelo viés do casamento ou de seus avatares, constituindo a instituição matrimonial somente uma das superfícies institucionais possíveis da relação global de apropriação. Para ilustrar a apropriação coletiva, ela se refere explicitamente às prostitutas e às freiras. Deixa entender que as mulheres que dependem do pai e/ou da família também fariam parte do regime de apropriação coletiva. Ela insiste igualmente no fato de que a apropriação coletiva é amiúde ocultada pela instituição matrimonial, na qual se focalizam as críticas feministas.

Guillaumin apresenta quatro expressões concretas da apropriação: a apropriação do tempo, dos produtos do corpo, a obrigação sexual e o encargo físico dos membros do grupo (incluindo os membros válidos masculinos do grupo (Guillaumin, 1992 [1978], p. 19–29). Ela descreve em seguida cinco meios da apropriação da classe das mulheres pela dos homens, que podem ou não, ser específicos das relações de sexagem: o mercado de trabalho; o confinamento no espaço; a demonstração de força (as pancadas); a coação sexual; o arsenal jurídico e o direito consuetudinário (Guillaumin, 1992 [1978], p. 39–45). Finalmente, Guillaumin insiste no fato de que a apropriação se refere à individualidade física completa, ao espírito e ao corpo da pessoa, um corpo pensado como “corpo-máquina de trabalhar”.

Guillaumin, ao contextualizar suas palavras, permite uma leitura dinâmica das relações sociais de sexo. Efetivamente, ela situa sua teoria nas sociedades ocidentais (sem declarar que não é válida em outros lugares, mas sem afirmar seu caráter universal) e acima de tudo, no plano histórico, construindo seu conceito de sexagem em paralelo com os de servidão e de escravidão. Efetivamente, para Guillaumin “a relação de sexagem [é] ‘a relação na qual é a unidade material produtora da força de trabalho que é concernida e não só a força de trabalho’ (1992 [1978]: 9) [o que] se aparenta à servidão e à escravidão.” (Juteau e Laurin, 1988, p. 190). Certamente, várias feministas, negras norte-americanas notadamente, criticaram os paralelos abusivos frequentemente traçados pelas feministas brancas entre o casamento e a escravidão.4 Mas Guillaumin não faz uma aproximação inútil: ela inicia uma reflexão histórica e dinâmica sobre a imbricação das relações sociais. Guillaumin não fala de qualquer escravidão transhistórica e universal: ela se refere ao modo de produção “de plantação colonial” dos séculos XVIII e XIX e convoca igualmente a servidão feudal que atravessou a Idade Média ocidental.5 Ademais, ela aponta duas grandes semelhanças entre sexagem, escravidão e servidão: (1) o processo ideológico comum de naturalização das relações sociais,6 e (2) sua diferença em comum com o assalariamento, ou caso se prefira, o modo de produção capitalista.

Efetivamente, servidão, escravidão e sexagem são relações sociais que se caracterizam pela não mensuração do que é apropriado e do que é “fornecido em troca”. Guillaumin mostra que uma evolução histórica permitiu a certos grupos sociais e certas pessoas no interior desses grupos sair da apropriação, ao menos parcialmente, desprendendo de seu “corpo-máquina de trabalhar” uma coisa específica chamada “força de trabalho”, mensurável e trocada por contrato por um salário em dinheiro.7 Entretanto, diferentemente de Marx, Guillaumin não afirma que os modos de produção feudal ou escravagista estão destinados a desaparecer com a aparição do modo de produção capitalista. Ela também não os considera como simples sobrevivências enquistadas no atual modo de produção. Ela nos permite, simplesmente, ver que as relações sociais de sexo, de “raça” e o assalariamento (relações sociais de classe) podem perfeitamente funcionar juntas. O esquema seguinte propõe um resumo da análise de Guillaumin sob um ângulo que nos interessa:

Guillaumin analisa a história da coexistência das relações sociais e dos diferentes modos de obtenção do trabalho, mostrando que uma dinâmica nasce de suas contradições. Ela assinala duas: uma interna à sexagem (entre a apropriação individual e a apropriação coletiva), a outra entre a sexagem e o assalariamento:

Estas duas contradições comandam toda análise das relações de classe de sexo, ou caso se prefira, das relações de sexagem. A apropriação coletiva das mulheres (a mais “invisível” hoje) manifesta-se pela e através da apropriação privada (o casamento), que a contradiz. A apropriação social (coletiva e privada) manifesta-se através da venda livre (recente) da força de trabalho, que a contradiz. (Guillaumin, 1992 [1978], p. 48)

Para recapitular, Guillaumin afirma que (1) as relações sociais de sexo e as de “raça”, ambas articuladas em torno da apropriação física global e da naturalização de uma “diferença” suposta, possuem várias lógicas comuns; (2) nos dois casos, a apropriação é ao mesmo tempo individual e coletiva, em proporções recíprocas que variam historicamente; (3) o ingresso nas relações salariais pode permitir um alívio da carga da apropriação, especialmente diminuindo a apropriação privada; (4) as relações de sexo e de “raça” se opõem em sua lógica, mas articulam-se na prática, com o assalariamento ou o sistema capitalista, no que chamo por minha vez de um sistema de “vasos comunicantes”.

B. Juteau e Laurin: repensar a apropriação no fim dos anos 1980

Dez anos mais tarde, na sociedade do Quebec na qual já se vê a emergência de várias tendências neoliberais, Danièle Juteau e Nicole Laurin (1988) fazem trabalhar o conceito de apropriação de Guillaumin. Elas redefinem inicialmente os contornos recíprocos da apropriação privada, da apropriação coletiva e do assalariamento:

Do nosso ponto de vista, a apropriação coletiva realiza-se tanto no contexto de relações particulares, interindividuais, entre os homens e as mulheres quanto no contexto de relações gerais, institucionais. A apropriação coletiva é o poder que a classe dos homens detém em seu conjunto, e portanto cada homem em virtude de seu pertencimento a essa classe, de se servir da classe das mulheres no seu conjunto e igualmente de cada mulher em virtude do pertencimento desta à sua classe de sexo. (Juteau e Laurin, 1988, p. 194).

Esta apropriação coletiva passa por um conjunto de instituições que se inclui geralmente na análise das relações de classe — empresa, Estado, Igrejas. Para Juteau e Laurin, essas instituições podem representar simultaneamente interesses de classe social e de classe de sexo:

[As]instituições que organizam os diferentes processos de trabalho, de produção, de reprodução e outros, nos quais as mulheres e os homens estão coletivamente envolvidos [são]: as instituições capitalistas da produção, circulação e consumo de bens e serviços, os Estados, as Igrejas. São instituições (ou aparelhos) de classe de sexo, o que não exclui, bem pelo contrário, que elas representem também os interesses das classes sociais dominantes. (Juteau e Laurin, 1988, p. 194)

Para elas, a apropriação privada não está verdadeiramente em contradição com a apropriação coletiva, ela é, antes, uma condição de atualização desta:

Enfim, elas afirmam que não se deve opor assalariamento e apropriação, na medida em que para as mulheres, o assalariamento (as condições de acesso ao emprego, o tipo de emprego, as condições de trabalho e os salários) está profundamente organizado pela apropriação coletiva:

Considera-se comumente que o assalariamento […] depende da relação geral entre as classes sociais da sociedade capitalista e não da relação entre as classes de sexo. No entanto, a exploração assalariada do trabalho, do início da industrialização até agora, representa também, a nosso ver, um modo particular de apropriação das mulheres pela classe dos homens. O que não impede em nada que esta forma de exploração, de apropriação do trabalho, se pratique igualmente no seio da classe dos homens cuja divisão em classes sociais ela fundamenta: burguesia e proletariado […8
] a relação de classe de sexo no trabalho assalariado organiza-se sobre a base da apropriação coletiva e mais precisamente de uma modalidade institucional […] diferente. Com efeito, as instituições da produção capitalista ou estatal […] permitem à classe dos homens que gere essas instituições tirar proveito da classe das mulheres dessa maneira geral e impessoal que a exploração assalariada do trabalho feminino constitui. O interesse da classe dos homens confunde-se aqui também com o interesse geral da sociedade; […] com o interesse da burguesia enquanto classe econômica e social dominante. (Juteau e Laurin, 1988, p. 197).

Referindo-se às transformações dos anos 1980 no Quebec, Juteau e Laurin constatam sobretudo o considerável declínio do peso das freiras e a aparição progressiva das barrigas de aluguel.9 Elas propõem então distinguir dois modelos de sexagem distintos, um “tradicional”, baseado na especialização e diferenciação funcional das mulheres (mães-esposas/prostitutas-freiras), e outro que começa a se estabelecer, no qual cada mulher deve ser “tudo” sucessivamente ou às vezes mesmo simultaneamente.

A primeira hipótese delas é precisamente que “a divisão do trabalho entre mulheres se dilui e tende a desaparecer enquanto permanecem praticamente idênticas a natureza e a soma de trabalho fornecido globalmente pelas mulheres à classe dos homens.” (Juteau e Laurin, 1988, p. 198). Por diversas razões, há cada vez mais mulheres no mercado de trabalho, inclusive mulheres com filhos pequenos, o que é novo segundo elas.10 No entanto, não se trata de qualquer mercado de trabalho: “as mulheres encontram-se maciçamente no mercado de trabalho chamado secundário, nos empregos precários (contratos a termo, em tempo parcial, temporários), nos empregos desclassificados (pela tecnologia ou de outro modo) e nos outros empregos subalternos, mal pagos, pouco valorizados que elas sempre ocuparam” (Juteau e Laurin, 1988, p. 199). Elas estimam que o Estado e a empresa desempenham um papel importante nessa evolução: “a empresa capitalista e o Estado-patrão precisam, na conjuntura econômica presente, da força de trabalho feminina, barata, pouco qualificada, dócil e mantida por um conjunto de coações” (Juteau e Laurin, 1988, p. 198–199).

Juteau e Laurin acrescentam que

neste contexto, a apropriação privada e coletiva das mulheres não são mais contraditórias mas se tornam claramente solidárias uma em relação à outra. As
condições do assalariamento das mulheres são tais que elas devem, além de trabalhar fora do lar, manter-se a serviço dos homens na família, de maneira a assegurar a subsistência deles e a de seus filhos. Em compensação, o peso dos encargos domésticos e familiares faz delas recrutas ideais para esse mercado de trabalho chamado secundário. (Juteau e Laurin, 1988, p. 199).

As duas estudiosas do Quebec afirmam igualmente que:

Esta última noção [o mercado de trabalho chamado secundário] aliás designa […] uma reestruturação importante da estratificação econômica e social que acarretou a constituição, nas sociedades capitalistas, de um novo proletariado composto em grande parte de mulheres. Encontram-se aí também pessoas idosas, jovens e pessoas que pertencem a grupos étnicos minoritários. (Juteau e Laurin, 1988, p. 199).

De uma maneira geral, Juteau e Laurin estimam que a apropriação coletiva (institucional ou interindividual) progride em relação à apropriação privada. Ora, essa transformação não se pode fazer a não ser com o acompanhamento do Estado. Antecipando as análises da materialista britânica Sylvia Walby a respeito da GrãBretanha (1990) a que voltarei, elas indicam:

A dependência estreita das mulheres e de seus filhos em relação ao Estado é simultaneamente o indício, a condição e a consequência da generalização da apropriação coletiva das mulheres, sob modos múltiplos, institucionais e interindividuais […]. Por intermédio do Estado, protetor e provedor, a classe dos homens compensa em parte as perdas que as novas modalidades da apropriação acarretam para as mulheres. Os seguros-desemprego, as licenças maternidade e todas as outras formas de assistência do Estado fornecem às mulheres e a seus filhos o mínimo vital que nem seus patrões, nem seus pais, nem seus maridos ou amantes lhes asseguram, a longo prazo. Ao mesmo tempo, por meio do Estado — guardião da ordem, legislador, policial — a classe dos homens assegura-se também do controle institucional, ou seja, coletivo, impessoal, da classe das mulheres. (Juteau e Laurin, 1988, p. 201).

O contexto em que escrevem Juteau e Laurin (início dos planos de ajuste estruturais e das privatizações) e seu ponto de partida (um país do Norte) incita-as a pensar que “a crise do Estado acarretou também a reconstituição de diversas formas voluntárias de serviços, geridas pelas Igrejas e outros organismos privados, dos quais as mulheres são a mão de obra gratuita e o exército de reserva.” (Juteau e Laurin, 1988, p. 202). Nesse período, o desenvolvimento do setor privado e das migrações femininas para responder à crise da reprodução social apenas se esboça.

II. As mulheres na globalização neoliberal: reorganização da reprodução social, “trabalho considerado como feminino” e “trabalho desvalorizado”

A ruptura do pacto socialista ou social-democrata, ou seja, o abandono pelo Estado de suas funções sociais, constitui justamente uma das grandes transformações neoliberais. Ver-se-á aqui que essa evolução me leva a teorizar a aparição daquilo que chamo “trabalho considerado como feminino” ou “trabalho desvalorizado”. Estes conceitos esclarecem a ideia de que as relações de sexo, “raça” e classe funcionam como vasos comunicantes: a globalização neoliberal, mais do que libertar as mulheres da apropriação, condena-as a navegar entre exploração e apropriação.

A. Reorganização da reprodução social antroponômica

Paralelamente ao envelhecimento da população dos países ricos, o desinvestimento do Estado do trabalho de reprodução social antroponômica11 provoca uma profunda crise e reorganização dessas tarefas. Esse setor foi objeto de pesquisas atentas por parte de instituições como a OCDE e o BIT, a fim de tentar prever as necessidades de mão de obra segundo as modificações do regime do Estado-providência. Trata-se também de um dos primeiros temas trabalhados pelas analistas feministas da globalização.

As teóricas e os movimentos feministas mostraram inicialmente que uma proporção muito grande das pessoas que asseguravam o trabalho de reprodução social no âmbito dos serviços sociais do Estado e perderam brutalmente seu emprego, sobretudo nos países do Sul e do antigo Leste, eram mulheres — frequentemente de classe média baixa ou popular, frequentemente racializadas (Attac, 2003; Wichterich, 1999). Em seguida, elas analisaram as consequências da transferência desse trabalho para o setor “privado”, no duplo sentido empresas-famílias. As empresas apropriam-se das tarefas mais rentáveis, às associações de diversos tipos confia-se uma parte do resto e as famílias são obrigadas a se ocupar das tarefas mais ingratas e da demanda insolvente. Os homens continuando em sua imensa maioria a se autodispensar dessas tarefas, a carga recai sobre as esposas, as mães e as filhas. Ora, presas ao mercado de trabalho assalariado, muitas mulheres não podem se ocupar disso materialmente. O que fazer?

Saskia Sassen (1991) foi a primeira a destacar o que chamou de os novos circuitos da globalização e a mobilidade “por baixo”, muito particularmente o papel das migrantes para realizar as tarefas da reprodução social dos casais “sem esposa” que formam a elite profissional das novas Cidades Globais, engrenagem-chave da globalização. Progressivamente, aparece sob a luz dos projetores a globalização do “trabalho sujo” (por exemplo, Bridget Anderson para a Grã-Bretanha (2000)). Para a Europa, Eleonore Kofman e suas colegas analisam como os próprios Estados chegam a desenvolver políticas migratórias ad-hoc, substituindo as prestações do Estado social pelos serviços fornecidos pela mão de obra migrante (Kofman et al, 2001). Os países do Golfo e o Japão (Ito, 2010) importam muita mão de obra para as tarefas de reprodução. Constata-se então que se desenvolve todo um sistema de legislações migratórias que organizam a mobilidade da mão de obra, ora oficial, ora clandestina, criminalizada e portanto mais barata. Observa-se uma complexa reorganização das estratégias de reprodução dos Estados ricos em detrimento dos Estados empobrecidos, mas também de certos lares em relação a outros, em ligação com as políticas de Estado, migratórias especialmente, como sublinha o trabalho de Laura Oso sobre os lares transnacionais (2008), ou o de Sassen sobre a importância econômica das “remessas” enviadas pelos/as migrantes (2010). A contribuição das mulheres através de seu deslocamento crescente (nacional e internacional) para realizar o trabalho de reprodução social parece constituir um elemento central da globalização neoliberal.

Nos Estados Unidos, Barbara Ehrenreich e Arlie Hochschild destacaram a aparição das “mulheres globais” reunindo três categorias num título de obra destinado a uma grande posteridade: as babás, as diaristas e as “trabalhadoras do sexo” (2003). Para compreender melhor os vínculos entre esses três tipos de atividade, um conceito da
antropóloga italiana e feminista materialista Paola Tabet se revela muito útil: o de “amálgama conjugal”. Trata-se de um conjunto de atividades — trabalho doméstico, procriador, sexual e emocional — que as esposas trocam em bloco e sem medida por uma manutenção in natura (no marco conceitual das relações de apropriação individuais). Para Tabet, sair do casamento, conseguir separar certas atividades e monetarizá-las, ou seja, orientar-se para mais apropriação coletiva, ou mesmo “progredir” até o assalariamento, pode constituir um avanço para as mulheres.12 Para o compreender melhor esse processo, ela desenvolve o conceito de “continuum da troca econômico-sexual”, que vincula as esposas fieis e as prostitutas de rua, passando por um vasto leque de situações nas quais o que é trocado é mais ou menos “des-amalgamado”, medido e fornecido mediante uma remuneração explícita, eventualmente monetária. Tabet permite assim aproximar teoricamente, e não só empiricamente, atividades com frequência estudadas de maneira separada, como por exemplo a prostituição e o trabalho doméstico, ou seja, lançar uma ponte entre as diferentes facetas da atividade feminina — em particular das migrantes, sobretudo sem papeis, produzidas em grande quantidade por um sistema migratório internacional voluntariamente restritivo. Eu chamo o conjunto dessas atividades de “continuum do trabalho considerado como feminino”, ou mais simplesmente de “trabalho considerado como feminino”.

B. “Trabalho considerado como feminino”, “trabalho desvalorizado” e rearticulação das relações sociais

O conceito de “trabalho considerado como feminino” permite-me caracterizar o trabalho de reprodução social antroponômica, mas também seu caráter mais ou menos assalariado, ou seja, seu lugar ambíguo entre as lógicas da apropriação e as da exploração. Para isso, acrescento-lhe o conceito complementar de “trabalho desvalorizado”. Este permite retomar em parte as propostas de Balibar e Wallerstein (a população migrante seria a nova classe exercendo esse trabalho desvalorizado que a classe operária autóctone não quer mais realizar). Ele responde também à questão da proletarização anunciada por Marx e não ocorrida: o “trabalho desvalorizado” constituiria com efeito uma espécie de proletarização ou de liberação da mão de obra (em relação a um estatuto anterior de apropriação), mas que teria dado errado, que não teria chegado a seu termo. Reconhece-se aí o “mercado de trabalho secundário” de Juteau e Laurin, que mistura assalariamento e apropriação coletiva. Pode-se também ver aí um acesso parcial e truncado ao assalariamento, que obriga (as mulheres) a procurar um complemento em outra parte. É bem o que mostra Walby, analisando inicialmente a passagem do patriarcado privado ao patriarcado público durante os trinta gloriosos (Walby, 1990), depois a volta das mulheres a novas formas de apropriação individual que se seguiu ao desmantelamento do Estado-social (Walby, 1997).

O “trabalho desvalorizado” ou “trabalho considerado como feminino”, uma das tendências que se desenvolve com a globalização neoliberal,13 é exercido majoritariamente por mulheres, inclusive brancas, mas também por pessoas racializadas e proletarizadas, inclusive homens. Ele realiza assim o vínculo entre as relações sociais de sexo, “raça” e classe, permitindo entrever a dinâmica de reorganização neoliberal dessas relações dentro do que proponho chamar uma lógica de vasos comunicantes.

A imagem dos vasos comunicantes permite imaginar os reequilíbrios incessantes dos diferentes modos de obtenção do trabalho: exploração, apropriação individual, apropriação coletiva. As relações de sexo e de “raça” (ambas organizadas em torno da apropriação) se reforçam ou se enfraquecem à medida que a apropriação evolui para a exploração (ou seja, as relações de classe) ou se afasta dela, e simultaneamente conforme evolui a apropriação individual em relação à apropriação coletiva. Esta afirmação possui pelo menos três consequências fundamentais: (1) nunca nenhuma das três relações desaparece totalmente; (2) mesmo que se pense poder modificar apenas uma única por vez, sua transformação afeta forçosamente as outras; (3) todas as transformações são reversíveis — o que nem Marx, nem Balibar e Wallerstein, nem Guillaumin haviam considerado explicitamente.

Neste estágio, constata-se que as mulheres não serão libertadas pelo capitalismo neoliberal, e que o enfraquecimento da divisão sexual do trabalho acarreta — se tudo permanecer igual por outro lado — um reforço das relações de “raça” e de classe.

III. Novas problematizações a partir das teorias feministas materialistas: o peso da lei, das instituições e das violências preventivas

Examinarei para terminar alguns exemplos da maneira pela qual as teorias feministas materialistas poderiam contribuir para desconstruir certas análises “neofeministas” superficiais da globalização neoliberal, referentes às atividades da mão de obra não privilegiada que se acha no cruzamento das opressões de sexo, “raça” e classe. No caso presente, analisarei alguns discursos muito positivos sobre o trabalho de care por um lado, sobre o trabalho do sexo por outro lado, que constituem exemplos paradigmáticos do “trabalho considerado como feminino”. Longe de estarem ligadas a “inclinações” inatas e a-históricas das mulheres, para as quais elas se voltariam naturalmente por causa da “crise”, estas duas formas de trabalho são modeladas a todo momento por um conjunto de instituições, de leis e de violências específicas (Falquet, 2006a).

A. O care : uma disposição feminina a valorizar?

Derivando de trabalhos de psicologia cognitiva, o conceito de trabalho de care e de sua “crise” (englobando os cuidados prestados às crianças, às pessoas idosas e aos doentes) monopolizam a atenção de muitos/as analistas da globalização na França, em particular das feministas. Ora, ao pôr o acento sobre as competências relacionais e o trabalho emocional, o care tende a esconder as tarefas despersonalizadas de manutenção domiciliar dos/as particulares, nas coletividades, nas empresas, ou o que Juteau e Laurin chamam a apropriação impessoal. Por outro lado, sua conotação positiva afasta-o muito das violências ligadas à longa história do trabalho migrante das mulheres, da colonização e da escravidão, âmbito no qual o care foi por muito tempo realizado (Nakano Glenn, 1992; Moujoud e Falquet, 2010).

Pela atenção dirigida à dependência, ele torna invisível igualmente o ponto capital sublinhado por Guillaumin, que é a obrigação para a classe das mulheres de fornecer cuidados pessoais diretos aos adultos válidos masculinos. Ora esse trabalho é efetivamente fornecido. Mas com o conceito de care, ou se esquece simplesmente de analisá-lo, ou a ideia de solicitude incluída no care vem reforçar insidiosamente a ideologia do amor que uma mulher deve naturalmente dar a um homem e que seria a razão pela qual ela trabalha gratuitamente para ele (o que Wittig começou a analisar como a instituição da heterossexualidade (2007 [1980]) e que Pascale Noizet (1996) dissecou como a ideologia moderna de amor). Ademais, ao chamar toda a atenção para as mulheres como fonte quase natural desse care (mesmo quando se inclui a ideia de que se trata do resultado de uma socialização), evacua-se magicamente o ponto central da divisão sexual do trabalho: a dispensa individual e coletiva da classe dos homens do dever de reprodução social. Dito de outro modo, o conceito de care pode ser analisado como um poderoso instrumento de re-naturalização e de “glamurização” (pois trata-se de uma “nobre” função) da atribuição exclusiva do trabalho de reprodução social à classe das mulheres.

No entanto, como mostrou uma pesquisa de Pascale Molinier (2004) sobre mulheres trabalhando com crianças muito pequenas, a obrigação do care pode fazer nascer um verdadeiro ódio para com os beneficiários desse care — constituindo o caso das irmãs Papin um outro tipo de exemplo, famoso. Uma análise feminista materialista poderia revelar a complexidade dos sentimentos induzidos pela obrigação de fornecer care, assim como poderia sublinhar a vastidão da violência preventiva que deve ser mobilizada para obrigar certos grupos sociais a fornecer care e trabalho de reprodução social, especialmente pela privação legal de direitos — outrora na escravidão, hoje em dia por leis migratórias extremamente restritivas, que atingem muito particularmente as mulheres, inclusive sob pretexto de protegê-las contra a exploração sexual.

B. O continuum da troca econômico-sexual: uma escolha, de verdade?

Paralelamente, vê-se na França multiplicarem-se as análises sobre trabalho do sexo, especialmente por parte de pesquisadores/as muito afastados/as das teorias feministas. Os dois campos de pesquisa do care e da prostituição aparecem isolados um do outro. Porém, Nasima Moujoud (2008) assim como Françoise Guillemaut (2007), para citar apenas estas duas antropólogas tendo trabalhado sobre a migração feminina, mostram bem que empiricamente, existem várias pontes entre trabalho doméstico e trabalho sexual, sobretudo para as mulheres migrantes ilegais, tanto mais que as políticas migratórias que as privam com mais frequência de documentos do que os homens impedem-nas amiúde de aceder ao setor formal. O casamento pode então constituir uma solução para obter documentos e aceder aos direitos, no âmbito profissional especialmente (Moujoud, 2008), o que mostra bastante bem a pertinência do conceito de continuum de troca econômico-social para compreender o trabalho das mulheres não-privilegiadas que se chocam com um conjunto de leis particularmente penalizantes.

Mesmo sem serem migrantes, as mulheres parecem cada vez mais impelidas a se deslocar no continuum da troca econômico-sexual. É o que já indicam Juteau e Laurin
para o Quebec do fim dos anos 80. Elas sublinham a transformação da apropriação privada, que “permanece próspera e suas práticas diversificaram-se: ao casamento e à família convencional juntam-se o concubinato, o amor livre, a família reconstituída, a família monoparental, etc.” (Juteau e Laurin, 1988, p. 199). No entanto, a apropriação privada tende a tornar-se limitada no tempo, serial — o que a torna menos segura para as mulheres.14 Elas acrescentam: “A estrutura dessa apropriação privada serial aproxima-se cada vez mais, do ponto de vista da teoria, daquela da apropriação coletiva em contexto de interação individual e não institucional, aquele que se encontra na prostituição.” (Juteau e Laurin, 1988, p. 200). Concluem: “todas nós somos agora freiras; ademais, somos todas ao mesmo tempo esposas, amantes, mães, domésticas, trabalhadoras voluntárias, trabalhadoras assalariadas. E permitir-nos-ão acrescentar que somos todas, num sentido, prostitutas? Não é essa, efetivamente, a mensagem que a pornografia e a publicidade […] veiculam?” (Juteau e Laurin, 1988, p. 202).

É interessante analisar o discurso de liberdade (libertação?) individual associado a essas transformações. Para Juteau e Laurin:

Por um lado, a apropriação coletiva, em particular a que se efetua por intermédio das instituições, não é sentida como uma exploração ou uma dominação de classe, o que ela é no entanto, por causa da invisibilidade e do anonimato que ela assegura aos dominantes. Os homens, individual ou coletivamente, dão cada vez menos a impressão de serem responsáveis pelo destino das mulheres e pelas coações que pesam sobre elas. Por outro lado, a apropriação privada é vivida segundo o modo da liberdade: liberdade de escolher seu parceiro, o gênero de união com esse parceiro, ter ou não filhos com esse parceiro, romper, divorciar-se, viver sozinha, recomeçar…” (Juteau e Laurin, 1988, p. 202–203).

Quanto ao trabalho do sexo, os discursos atuais que o apresentam como uma escolha minimizam amiúde o caráter forçado dessa escolha, contentando-se em opô-lo a outras maneiras de ganhar a vida, cada uma menos invejável que a outra. É bom não esquecer do caráter mais estrutural da coação, tal qual o descreve Tabet (2004): desigual acesso aos recursos e aos meios de produção, desigual acesso ao saber e violência são os três grandes traços do quadro das relações sociais de sexo no qual se inscreve a troca econômico-social.

Vale a pena interrogar-se sobre a maneira pela qual a “liberdade individual” se tornou a medida de todas as coisas na lógica neoliberal. O caso da barriga de aluguel, novo campo de atividade econômica “des-amalgamada” em pleno crescimento, é igualmente revelador. Trata-se de outro exemplo do fato de que certos homens e uma fração das mulheres privilegiadas encontram vantagem na des-amalgamação conjugal, que lhes permite aceder a certos “serviços” sem passar pelo casamento nem dever assumir a manutenção durável de uma esposa. As lésbicas e os gays fazem logicamente parte dos primeiros setores mobilizados ou apontados como exemplo para legitimar esses desenvolvimentos, assim como os trabalhadores imigrantes ou os deficientes são às vezes utilizados para justificar a prostituição, e as pessoas idosas, os doentes e as crianças, para fazer compreender a necessidade do trabalho de care. Vale portanto a
pena olhar mais adiante em termos de classe, “raça” e sexo, quem são os principais beneficiários destas diferentes formas de trabalho, quais setores conseguem ficar livres delas, e quem se apodera da mais-valia quando essas atividades se tornam remuneradas.

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As análises materialistas e imbricacionistas nos levam a concluir que o capitalismo neoliberal, longe de libertar as mulheres, reorganiza simplesmente o equilíbrio entre apropriação e exploração, segundo uma lógica de vasos comunicantes. Além disso, querer melhorar somente a situação das mulheres implicaria reforçar as lógicas racistas e de classe. A perspectiva da desamalgamação conjugal, assim como a hipótese de uma evolução rumo a mais apropriação coletiva do que privada, ou ainda o desenvolvimento de uma nova forma de trabalho, uma espécie de assalariamento inconcluso, o “trabalho considerado como feminino” ou “trabalho desvalorizado”, permitem olhar sob outra luz as atividades atualmente confiadas maciçamente às mulheres racializadas e empobrecidas, na área do care, do sexo e da procriação especialmente. Elas permitem igualmente lembrar que não é uma “natureza” qualquer que impele a mão de obra para tal ou qual tipo de emprego, mas um conjunto de leis (sobre a mobilidade em particular), de instituições (a heterossexualidade, por exemplo) e o exercício de uma violência calculada, que permitem orientá-la para onde ela é necessária, ou deixá-la debater-se dentro de um sistema em circuito fechado entre exploração e apropriação, só com a cabeça fora d’água, mas com a apaziguante impressão de escolher.

Notas

2 Segundo o título do livro de Ehrenreich e Hochschild (2003), que designa as migrantes que procuram trabalho nos serviços (“babás, empregadas domésticas e trabalhadoras do sexo”), mas também na indústria e na agricultura.
3 Conceito que prefiro ao de interseccionalidade e que retomo da Declaração Feminista Negra do Combahee River Collective (2006) (Falquet, 2006b).
4 Essas críticas têm pelo menos três bases. Primeiramente, esse paralelismo raramente se sustenta, a não ser pela ideia de um sofrimento causado, de uma injustiça e de uma indignidade comum. Em seguida, esse paralelo impede de ver a situação dos escravos que são ao mesmo tempo mulheres, e a das mulheres que são ao mesmo tempo escravas. Enfim, esse paralelo pode ter por simples objetivo a “recuperação” da legitimidade da luta antiescravagista, depois antirracista, pelas feministas brancas.
5 Guillaumin precisa na p.39 que existe uma diferença importante entre a servidão da Idade Média por um lado, e a escravidão de plantação e a sexagem atual, por outro lado: na primeira, é na realidade a terra que é apropriada e as servas e servos são apropriados indiretamente porque vinculados à terra. As mulheres e os escravos são, ao contrário, apropriados diretamente enquanto tais.
6 O conceito de naturalização e a ideologia naturalista estão no centro do trabalho de Guillaumin desde 1972 na sua tese sobre o racismo (2002 [1972]). A naturalização é o mecanismo que mascara os fundamentos jurídicos, políticos e históricos concretos das relações sociais de “raça” como de sexo. Entre as consequências da naturalização e da apropriação, estão, para as pessoas apropriadas, a redução ao estado de coisa e a impossibilidade jurídica, devido a isso especialmente, de “firmar contratos”.
7 No processo histórico de libertação da apropriação, Guillaumin menciona: “o movimento popular que no momento do nascimento das comunidades soltou alguns indivíduos das amarras da terra feudal [… e] aquele que faz escapar hoje um número pequeno, mas crescente, de mulheres das instituições patriarcais e sexistas (casamento, pai, religião, que são as obrigações da classe de sexo.” (Guillaumin, 1992 [1978], p. 38). Ver-se-ão igualmente as notas 21 e 22 desta mesma página 38.
8 Para facilitar a leitura, cortei a parte seguinte: “A burguesia, proprietária e administradora dos meios de produção, tem um sexo: o masculino. Quanto ao proletariado, entendido no sentido amplo dos agentes assalariados da produção e dos processos que daí derivam, tem dois sexos, o masculino e o feminino. As mulheres formam uma classe no seio do proletariado não só por causa da separação entre trabalho
assalariado e trabalho doméstico mas também por causa da diferenciação no próprio seio do trabalho assalariado, das tarefas e das condições de trabalho que são impostas às mulheres e das tarefas e das condições de trabalho que são impostas aos homens. Nesse sentido, pode-se dizer que as trabalhadoras assalariadas sofrem uma dupla opressão de classe.”
9 Elas fazem explicitamente referência aos trabalhos de Paola Tabet (1985). 10 Para além do Quebec e do período atual, este fenômeno observa-se há relativamente muito tempo para as mulheres racializadas e de classe popular.
11 Para retomar e adaptar o conceito original de Bertaux (1977). Resumidamente: cuidados-educação das crianças, das pessoas idosas e dos doentes, manutenção material dos lares, dos lugares de estudo, de trabalho e de vida social.
12 No entanto, ela lembra que a troca econômico-sexual está baseada em relações sociais de sexo desiguais, estruturadas em particular em torno de três pontos: desigual acesso aos recursos e aos meios de produção, desigual acesso aos conhecimentos, violência. O que equivale a dizer que se certas formas de casamento ou de trabalho sexual podem revelar-se satisfatórias, para a maioria das mulheres as condições para se realizar, em qualquer lugar que seja do continuum da troca econômico-sexual, estão raramente reunidas. Mesmo quando as trabalhadoras do sexo exercem sua atividade em boas condições, a troca econômico-sexual permanece inserida no que ela chamou “o grande embuste” (Tabet, 2004).
13 Não se trata realmente de uma novidade, mas tampouco de um estrito retorno a antigas formas de obtenção do trabalho, como o modo de produção escravagista sobretudo. Falar de escravidão moderna é, neste sentido, simultaneamente impactante e enganador. É justamente o que a ideia de “vasos comunicantes” permite apreender melhor: existem transformações permanentes que, embora evocando uma “volta ao passado”, nunca são inteiramente semelhantes às disposições anteriores.
14 Simultaneamente, “a coação à maternidade, apesar do que se seria levado a crer, é mais forte do que nunca” (Juteau e Laurin, 1988, p. 200). É certo que no conjunto as mulheres têm menos filhos, mas quase todas, doravante, têm ao menos um. Com efeito, diante do que Juteau e Laurin chamam o desenvolvimento da apropriação individual serial, esse filho permite “estabelecer com outra pessoa uma relação afetiva, a única da qual se tem a segurança de que possa durar.” (Juteau e Laurin, 1988, p. 201).

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