O que é feminilidade? Papéis sociais e o feminismo contemporâneo

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22 min readDec 23, 2018

Por Beatriz Beraldo

A feminilidade é um conceito cultural bastante naturalizado, porém ainda muito controverso nos estudos feministas. Definida de maneira arbitraria e hegemônica dentro de uma sociedade patriarcal, esta normatividade sobre o que é ser/parecer mulher tem sido bastante questionada desde as primeiras ondas feministas. Afinal o que é ser feminina: um aspecto natural das mulheres ou uma construção de um imaginário cultural e midiático?

Sabemos que o marco histórico da modernidade definiu os rumos da nossa sociedade e, através das grandes mudanças no estilo de vida — que ali tiveram o seu início, consagrou o nascimento da cultura de consumo. A relação entre os indivíduos foi modificada, mas, principalmente, a relação que entre os indivíduos e os bens de consumo pôde ser reinventada.

A questão da feminilidade aparece neste momento histórico com fator chave da ligação entre a mulher, enquanto sujeito, e a construção da imagem ideal da mulher, baseada nos interesses de uma sociedade regida pela cultura patriarcal. A roupa foi um dos primeiros produtos a denunciar esta acomodação do corpo feminino em padrões definidos por uma estética de feminilidade que Bourdieu (2003) classifica como a arte “se fazer pequena”, pois desde a moda de classe até a atual moda de consumo, as roupas faziam com que as mulheres fossem forçadas a fazerem gestos curtos e delicados, devido ao desconforto que as vestimentas femininas costumavam (e ainda costumam) causar. Além da definição explícita das diferenças de vestuário e das famosas “regras de etiqueta”, a feminilidade também passa a ser construída em padrões estéticos que influenciam na conformação dos corpos, para além das roupas, referindo-se a padrões de beleza para cabelos, unhas, sobrancelhas, cílios, pelos, pele e tudo o mais que puder sofrer intervenções da indústria de cosméticos, algo que ser perpetua até os dias de hoje. Neste artigo, através do olhar da comunicação apoiada nas práticas de consumo, nos propomos a pensar se quais as implicações que o conceito de feminilidade traz para a luta feministas das novas ativistas da Marcha das Vadias de São Paulo3.

Breve contextualização feminista

Ao analisarmos longitudinalmente as perspectivas comuns assumidas historicamente pelos movimentos feministas, podemos localizar aqueles que seriam seus principais enfrentamentos: “os homens (concebidos como grupo biológico), o ‘patriarcado’, a ‘misoginia’, ou ainda ‘a divisão social do trabalho’ em todas as esferas da sociedade” (TRAT, 2009, p. 152) além da consequente repressão sexual feminina.

Na América do Norte, historiadores e feministas distinguiram duas ondas históricas dos movimentos feministas: “a primeira transcorre na segunda metade do século XIX e no começo do século XX; a segunda, qualificada de ‘neofeminismo’, cobre metade dos anos 60 e 70” (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009. p. 145) do século XX. Esta demarcação histórica proposta pelas pesquisadoras estadunidenses foi reproduzida por pesquisadores de países da Europa e também da América Latina. A pesquisadora brasileira Márcia Laranjeira Jácome (2007) destaca ainda algumas diferenças fundamentais entre a primeira e a segunda onda do feminismo no Brasil:

Um olhar mais atento sobre a trajetória do feminismo no Brasil — e em outros países –, permite identificá-lo como um movimento onde o pensamento crítico e a prática política são indissociáveis. E o que diferencia a Primeira da Segunda Onda do Feminismo […] é o fato de que, para esta última, garantir o acesso à cidadania perpassa, necessariamente, por uma análise crítica de como as relações de poder entre homens e mulheres se constroem a partir da percepção das diferenças entre os sexos (relações de gênero) e de como se reproduzem nos diferentes ambientes de sociabilidade. Assim, faz um questionamento profundo à “naturalização” das relações de poder, denunciando que a opressão das mulheres acontece em diferentes dimensões — pessoal e social, mas também política
(JÁCOME, 2007, p. 4)

Haveria ainda, na visão de alguns teóricos, o surgimento de um feminismo contemporâneo (ou a terceira onda feminista) que, segundo os historiadores:

prolonga as expectativas do feminismo do século XIX, a saber a individualização do sujeito democrático e econômico, da cidadã e da trabalhadora, mas acrescenta fortemente a questão da autonomização da sexualidade feminina; a maternidade não é o único horizonte da mulheres e, mais ainda, o desejo da ‘não maternidade’, após o advento da contracepção feminina — a pílula começa a ser acessível na metade dos anos 60 –, começa a se exprimir de maneira positiva e não mais como uma carência”
(FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009. P. 145)

As lutas feministas tiveram como slogan a ideia de que “o privado é político” e trouxeram para o espaço público questões da vida doméstica, abordando temas como submissão e violência4

. A noção de feminilidade, desenvolvida a partir do marco histórico da modernidade, colocou as mulheres daquela sociedade em um cerco invisível que pretendia adequá-las a um padrão cultural ditado pela supremacia masculina, e que as manteve afastadas da vida pública:

Na aurora da modernidade, o corpo feminino descrito a partir da ênfase nos órgãos reprodutivos, no “cérebro menor”, e na “fragilidade dos nervos” foi utilizado para definir o lugar “naturalmente” inferior das mulheres na esfera da sociedade, justificando a sua permanência no espaço privado
(ÁRAN, 2006, p. 16)

Para Bourdieu (2003), a principal conquista dos movimentos feministas foi conseguir levantar o questionamento sobre a “dominação masculina”, compreendendo-a como uma construção social e, portanto, histórica:

A maior mudança está, sem dúvida, no fato de que a dominação masculina não se impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível. Em razão, sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista que, pelo menos em determinadas áreas do espaço social, conseguiu romper o círculo do reforço generalizado, esta evidência passou a ser vista, em muitas ocasiões, como algo que é preciso defender ou justificar, ou algo de que é preciso se defender ou se justificar
(BOURDIEU, 2003, p. 106)

A célebre máxima de Simone de Beauvoir (1967) “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” atenta para o fato de que as mulheres são ensinadas, nas sociedades capitalistas ocidentais, desde a infância, a cumprir um papel social de submissão. Assunto bastante controverso entre as feministas, a maternidade5, carrega consigo a possibilidade de se resistir a (ou reproduzir) alguns padrões sociais uma vez que meninos e meninas, majoritariamente, aprendem o machismo dentro de casa, pois “é sem dúvida à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas” (BOURDIEU, 2003, p. 102). Dentro deste contexto, Apfelbaum (2009) ressalta a necessidade da cumplicidade e da adesão que o dominado não pode deixar de dar ao dominante:

Assim, institui-se a violência simbólica cujos efeitos e condições de eficácia se inscrevem no corpo de forma duradoura, sob a forma de disposições, de modo que as proibições sociais são naturalizadas e resistem ao processo de conscientização (Bourdieu fala de ‘submissão encantada’, fora do controle da consciência) (APFELBAUM, 2009, p. 79).

A mesma lógica, da adesão, se articula para instaurar a conformação do corpo feminino na sociedade. Isto é, ao reconhecermos que o ‘ser mulher’ dentro da ideia de feminilidade é uma construção social, entenderemos que há uma arbitrariedade nesta construção:

As sociedades humanas, com uma notável monotonia, sobrevalorizam a diferenciação biológica, atribuindo aos dois sexos funções diferentes (divididas, separadas e geralmente hierarquizadas) no corpo social como um todo. Elas lhe aplicam uma ‘gramática’: um gênero (um tipo) ‘feminino’ é culturalmente imposto à fêmea para que se torne uma mulher social, e um gênero ‘masculino’ ao macho, para que se torne um homem social. […]. Outros aspectos do gênero — diferenciação da vestimenta, dos comportamentos e atitudes físicas e psicológicas, desigualdade de acesso aos recursos materiais e mentais, etc. — são marcas ou consequências dessa diferenciação social elementar
(MATHIEU, 2009, p. 223)

Para Bourdieu (2003), ser uma mulher enquanto construção social, ou seja, atuar no papel de mulher na nossa sociedade seria saber “fazer-se pequena”. O autor explica em seu livro A dominação masculina que os gestos, o corpo, e as atitudes da mulher são moldados pela sociedade de modo a parecerem menores (inferiores) às dos homens:

A postura submissa que se impõe às mulheres […] revela-se em alguns imperativos: sorrir, baixar os olhos, aceitar as interrupções etc. […] as pernas que não devem ser afastadas etc. e tantas outras posturas que estão carregadas de uma significação moral (sentar de pernas abertas é vulgar, ter barriga é prova de falta de vontade etc.). Como se a feminilidade se medisse pela arte de “se fazer pequena” […], mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invisível, limitando o território deixado aos movimentos e aos deslocamentos de seu corpo, sobretudo em lugares públicos. Essa espécie de confinamento simbólico é praticamente assegurada por suas roupas (o que é algo mais evidente ainda em épocas mais antigas) e tem por efeito não só dissimular o corpo, chamá-lo continuamente à ordem (tendo a saia uma função semelhante à sotaina dos padres) sem precisar de nada para prescrever ou proibir explicitamente […]: ora com algo que limita de certo modo os movimentos, como os saltos altos ou a bolsa que ocupa permanentemente as mãos, e sobretudo a saia que impede ou desencoraja alguns tipos de atividades (a corrida, algumas formas de se sentar etc.); ora só as permitindo à custa de precauções constantes, como no caso das jovens que puxam seguidamente para baixo uma saia demasiado curta, ou se esforçam por cobrir com o antebraço uma blusa excessivamente decotada, ou têm que fazer verdadeiras acrobacias para apanhar no chão um objeto mantendo as pernas fechadas.. […] E as poses ou as posturas mais relaxadas, como o fato de se balançarem na cadeira, ou de porem os pés sobre a mesa, que são por vezes vistas nos homens — do mais alto escalão — como forma de demonstração de poder, ou, o que dá no mesmo, de afirmação são, para sermos exatos, impensáveis para uma mulher (BOURDIEU, 2003, p. 39–40).

O conceito de feminilidade

No intuito de refletir acerca da vinculação do conceito de feminilidade com as novas formas de ativismo feminista na contemporaneidade, é fundamental, antes, avaliarmos as representações hegemônicas que constroem a figura da mulher na sociedade em que vivemos. Para tanto, o caminho a percorrer é levantar o debate sobre a imagem da mulher nos meios de comunicação massivos, que ajudam a difundir um padrão bastante idiossincrático de “feminilidade”. Assim, ponderamos que

[e]studar as representações da figura feminina na mídia, por si só, não resolve os problemas da busca da igualdade entre homens e mulheres, mas os traz à tona e mostra o quanto ainda há por ser feito e conquistado. Pelo fato de a mídia ser formadora de opinião, [poderá demonstrar] o processo lento e secular de luta contra a discriminação da mulher nas sociedades
(GHILARDI-LUCENA apud ALVES, 2011, p. 299).

Os meios de comunicação de massa já foram objeto de amplos e espinhosos debates no campo da comunicação. Nosso interesse nesta abordagem é verificar de que maneira eles ajudaram a construir a imagem da mulher na nossa sociedade, considerando o fato de que “a mídia não apenas veicula, mas também constrói discursos e produz significados, identidades e sujeitos” (FISCHER, 2001, p. 588). Ademais, dialogando com Everardo Rocha (2001), destacamos que:

os significados produzidos pelos meios de comunicação são públicos, compartilhados, coletivos, sendo difícil, por exemplo, alguém não entender anúncio publicitário, notícia de rádio, programa de televisão ou foto de jornal. Isto indica que o estudo dos significados veiculados através destes materiais é como uma pista para os modelos de existência, desejos e impasses de uma cultura
(ROCHA, 2001, p.18–19).

Representações hegemônicas da mulher e da feminilidade

Como a mídia tem contribuído para a manutenção dessas estruturas hierárquicas entre homens e mulheres? A pesquisadora Ivia Alves (2011) encontrou nos seriados de TV americanos um bom exemplo que pode responder a esta questão:

Detectamos [nas séries analisadas] o apelo muito forte ao casamento como uma forma de estabilidade não só emocional como financeira, um cuidado especial quanto ao ser mãe, com todos os atributos e obrigações que o papel implica e, ainda, uma gama de profissões voltadas para ‘o mundo da mulher’, isto é, moda, design, revistas, profissões variadas mas que giram e circulam em torno da beleza […] e eu acrescentaria, ainda, profissões relacionadas com o cuidado (médicas, enfermeiras) ou que observam e analisam o comportamento humano, como antropólogas, psicólogas, escritoras…
(ALVES, 2011, p. 297–298).

Os seriados de TV americanos têm ganhado bastante força através das repetidoras de TV e em razão da possibilidade de se assistir a eles através do site da emissora online ou ainda, alugando-os pela rede de TV a cabo (Net Now ou NetFlix). Desse modo, desde o final dos anos 90, é possível afirmar que eles são aspectos importantes no debate sobre representação midiática da mulher. Ivia Alves (2011) analisou quatro seriados que se apresentavam como “séries para mulheres”: Suddenly Susan, Cashmare Mafia, Lipstick Jungle e Sex and The City. Estes dois últimos foram dublados e exibidos na TV aberta na rede Record e Rede TV!, respectivamente.

Em sua análise, Alves (2011) localizou a presença de um discurso parecido em todas as séries, “partindo da premissa de que toda mulher estaria desestabilizada emocionalmente por ter alcançado sucesso na carreira profissional em detrimento de sua vida afetiva, quase todas as protagonistas estão no topo da carreira, mas não estão contentes” (ALVES, 2011, p.313). Este modelo traz a ideia de que só o casamento pode trazer a plenitude, pois sem um parceiro, a mulher estaria “incompleta”.

A autora percebeu ainda que as representações da mulher nestes seriados apresentam-na como uma figura de aparência frágil (escalando atrizes sempre magras e delicadas) e que está sempre elaborando conversas triviais, com baixa reflexividade. Alves (2011) lembra que essas mulheres são localizadas no século XXI, momento de “efetiva convergência do poder e [da] tecnologia da mídia, através da internet e dos telefones celulares, fatores que se tornam propícios para a entrada dessa sociedade mais voltada para a performance, para a apresentação pessoal e, portanto, menos reflexiva” (ALVES, 2011, p. 307). Nessa perspectiva, a mulher no novo século, que saiu de casa para trabalhar, carregaria consigo

certa ‘memória’ trazida de quando a mulher desempenhava apenas o papel de dona de casa bem como a hostilidade competitiva nas relações de gênero existentes, quando se trata de altos cargos executivos no espaço público, [fatores que] ampliam ainda mais as demonstrações de como essas mulheres estão ‘fora de lugar’
(ALVES, 2011, p. 310).

Este corpo feminino deslocado aparece também nas análises de Cecília Maria Bacellar Sardenberg (2002), antropóloga e feminista brasileira, que conceitua “corpos engendrados” compreendendo “o corpo não como algo dado ‘naturalmente’, mas como produto da história — tanto como objeto quanto produto de representações e práticas sociais diversas, historicamente específicas” (SARDENBERG, 2002, p. 56). Neste contexto também podemos abordar as representações midiáticas deste corpo feminino.

Em perspectiva semelhante, Everardo Rocha (2001) analisou as representações da mulher nas publicidades veiculadas no Brasil, nas revistas de circulação nacional: Nova, Claudia, Playboy, Isto É e Veja. Neste material, levando em consideração que o discurso publicitário, enquanto sistema totêmico, “é uma forma de categorizar, classificar, hierarquizar e ordenar tanto o mundo material quanto as relações entre as pessoas, através do consumo” (ROCHA, 2001, p. 25), o autor constatou que a presença da mulher nestes anúncios é feita, quase sempre, “aos pedaços”. Isto é, a propaganda impressa se baseia em um aspecto iconográfico onde o corpo é a peça chave da representação de um indivíduo. Todavia, o que o autor observou foi que as representações do corpo feminino se dão de forma fragmentada:

O corpo feminino que a publicidade revela […] sofre um processo em que a unidade se perde e as partes prevalecem sobre o todo. A mulher dentro do anúncio existe, sobretudo, aos pedaços — seio, pé, perna, pele, rosto, unha, mão, nádega, olho, lábio, cílio, coxa e o que mais se puder destacar como um quebra cabeças invertido cujas peças desencaixam, escondendo a figura que nunca se forma
(ROCHA, 2001, p. 38).

Avançando em sua pesquisa, Rocha (2001) conclui, então, que o corpo da mulher, uma vez fragmentado, é também silenciado:

o indivíduo mulher, tal como aparece na imagem dos anúncios publicitários, ao existir, principalmente, através de um corpo fragmentado, inviabiliza a construção de um espaço interno e, com ele, a possibilidade de proferir um discurso. A imagem da mulher como silêncio[…] possui um corpo e deve saber usá-lo, mas dispensa a palavra[…] Assim, a palavra da mulher é delegada aos produtos e estes falam por ela, são suas ideias, expressam seu interior sob a forma de necessidades e desejos.
(ROCHA, 2001, p. 37).

Este tipo de construção midiática da “mulher em silêncio” acaba por se tornar uma armadilha difícil de ser desarmada pelo movimento feminista uma vez que compreendemos que “o discurso persuasivo da publicidade não visa tanto a compulsão pela compra, mas a adesão do consumidor ao consenso social anunciado” (CARRASCOZA, 2008, p.218).

A abordagem de Rocha (2001) nos alerta ainda para a visibilidade concedida aos corpos na contemporaneidade. Como também afirma Fischer (2001):

Num tempo como este, em que se elege o corpo como o lugar de todas as identidades, não há como ignorar que a histórica desigualdade nas relações entre homens e mulheres constitui profundamente não só o corpo feminino como também as identidades de gênero
(FISCHER, 2001, p. 592)

A autora acredita que a circulação destes corpos na mídia contribui para as negociações nas relações sociais e, principalmente, espelha a construção do discurso de “ser mulher” na contemporaneidade:

Quando analisamos nos produtos televisivos as regularidades, as frequências, a distribuição dos diferentes elementos das enunciações, a respeito dos vários grupos de mulheres, estamos entendendo que naquele lugar específico há, mais do que indivíduos concretos a falarem, sujeitos sendo constituídos e constituindo-se, […] através dessas figuras (atrizes, personagens, jornalistas mulheres, apresentadoras, entrevistadas), das cenas enunciativas em que mulheres falam e são faladas na mídia, pode-se descrever um pouco dos discursos que nos produzem e que produzimos sobre gênero na sociedade brasileira
(FISCHER, 2001, p. 596).

Ressaltamos que “a palavra, como instrumento de poder e de troca, foi negada durante séculos às mulheres e elas ainda continuam a não ter acesso ao discurso da mesma forma que os homens” (CERQUEIRA; RIBEIRO E CABECINHAS, 2009, p.1), pois, mesmo na internet — espaço de novas interações sociais, persistem sites e blogs que mantém a imagem da mulher submissa, com discursos ligados a comportamento, busca do corpo ideal e questões que parecem ensinar a feminilidade.

Para Alves (2011, p. 307) “o discurso dominante consegue desenvolver uma narrativa para a mulher sobre seus próprios desejos, agregando ainda sua aparência como marca determinante de feminilidade”. Talvez por isso seja fácil notar que na internet

os sites que proliferam na rede dedicados às mulheres e que reproduzem no mundo virtual todos os estereótipos que temos combatido nos meios de comunicação tradicionais, [são estes] que ainda consideram as seções de cozinha, beleza e moda, espaços básicos para o sucesso de uma “publicação feminina”
(MIGUEL E BOIX, 2013, p. 72).

É fundamental enfatizar que “disciplinadas desde a mais tenra infância nessas e outras práticas corporais de gênero, tendemos a encarar tais procedimentos como se fossem ‘naturais’, ou próprios à feminilidade” (SARDENBERG, 2002, p. 60), quando na verdade são frutos de uma construção social trabalhada ao longo da história e sustentada por discursos midiáticos e instituições, como a própria estrutura do consumo que oferece às crianças do sexo feminino produtos que demarcam as diferenças de gênero como fogãozinho, vassouras, lava-louças e outros apetrechos que transformam o trabalho doméstico em brincadeira de criança (WILLIS, 1997), e deixam claro o lugar que se espera que a mulher ocupe na sociedade.

Novos espaços de atuação contra hegemônica

A Marcha das Vadias, objeto empírico deste artigo, inclui em seu bojo de reivindicações o questionamento de padrões estéticos, culturais e comportamentais (ditadura da beleza e da magreza, cirurgias plásticas, estilos de vestir, zelo pela “feminilidade”, demandas por desempenho e capacidade multitarefa etc.) que seriam imputados às mulheres nas contemporâneas sociedades midiáticas e do consumo:

Da ‘falta de homens’ a ‘epidemia de infertilidade’, do ‘estresse feminino’ a ‘prejudicial dupla jornada de trabalho’, estas pretensas crises femininas tiveram sua origem não nas condições reais da vida das mulheres mas sim num sistema fechado que começa e termina na mídia, na cultura popular e na publicidade — um contínuo feedback que perpetua e exagera a sua própria imagem fictícia da feminilidade.
(FALUDI apud ALVES, 2011, p. 305).

Ao longo do ano de 2013, acompanhamos a organização e a divulgação da Marcha das Vadias na cidade de São Paulo. O agrupamento que cuida da organização da marcha e que permanece alimentando o Blog e o Facebook com notícias feministas se autodenomina Coletivo Marcha das Vadias de São Paulo. Quando consultado sobre a existência de uma relação entre feminismo e feminilidade, o Coletivo foi categórico em afirmar que esta relação é forçosa e inventada pela mídia. Para as ativistas o conceito de feminilidade está ligado a uma estrutura machista que padroniza um ideal de beleza — rigoroso e difícil de ser alcançado — para as mulheres e exclui socialmente aquelas que não conseguem ou não querem seguir tais padrões. As ativistas da marcha acreditam ainda que todas essas exigências engendradas e externadas por uma sociedade essencialmente patriarcal contribuem para a manutenção do lugar da mulher como “segundo sexo”, o que podemos confirmar no depoimento abaixo:

Há pouco tempo, eu era exatamente como o patriarcado me ensinou a ser. Magra, cabelos lisos e compridos, loira (quimicamente), depilada, maquilada, unhas feitas, impecável, a típica “bonita”, casada com o cara que me desvirginou, mãe [que abandonou o trabalho e a graduação para se dedicar ao filho, marido e a casa], hétero, monogâmica, com poucas amigas, leitora de Nova, e que achava que sucesso era medido por aprovação social/familiar/masculina. Fui acordada por uma depressão.

Nada do que eu era foi escolhido por mim. Como gado arrebanhado seguia, ao som de um berrante invisível que nos direciona todAs para um mesmo padrão de comportamento e beleza, que já estava estabelecido antes que nascêssemos. Pensava: se estou fazendo tudo “certo”, por que não estou feliz?

Entendi, tempos depois, que aquelas “escolhas” não eram minhas. Eram as que me deram, para ser “mulher” e “feminina”. Feminina era a mulher que se maquila, que tem cabelo tratado, que faz as unhas, que arranca os pelos, que é curvilínea, modela a sobrancelha, tem pele lisa e hidratada, que usa lingerie, salto, é comedida, não grita, cheira a rosas e sândalo, não se embriaga, não coça a xana, é meiga. Mulher é aquela que cuida, que é/quer ser mãe, pensa na família, que agrada ao homem. Com uma simples educação do olhar, vi que, ser mulher e feminina, é ser domesticada. […]

Entendi que ser “feminina”, numa sociedade capitalista, é, além de ser domesticada, consumir. O ideal de beleza é “ideal” exatamente [porque] é difícil de se obter. A indústria da beleza cresce (ava$$aladoramente) em cima da insatisfação com seu corpo, e fomentando modelos “aceitáveis” e não-naturais. Depilação, academia, bronzeamento, hidratação, esteticista, cirurgia, cabeleireira, manicure, pedicure, maquilagens, perfumes, cremes, moda.

Endividamento. E mais insatisfação. Proposital. Repulsa e ódio ao próprio corpo antiestético. Manter suas unhas naturais, seus pelos, os traços do seu rosto, seu cheiro… nada disso dá 1 centavo ao capital. Autoestima fortalecida não dá lucro […] vez por outra, me pego pensando: como pode uma Mulher natural não ser feminina? (Depoimento de uma ativista e organizadora da Marcha das Vadias em São Paulo).

Tais adequações dos corpos femininos estariam, na concepção das ativistas, perpetuando e legitimando os estereótipos de submissão. Portanto, várias das ativistas com as quais pudemos conviver durante esta pesquisa demonstraram em diferentes nuances algum tipo de resistência a este padrão de feminilidade que visa “desnaturalizar” o corpo feminino em função de adequações socioculturais. Nesse contexto, destacaram-se os debates em torno da recusa de algumas das participantes da Marcha das Vadias em fazer a depilação das axilas, padrão comumente encontrado entre as mulheres destacadas pela mídia. Além deste tipo de resistência, podemos citar também as tatuagens feministas que muitas carregam sobre o corpo e o não uso de maquiagem que muitas delas praticam como forma de combate a essa força sociocultural, que nas palavras das ativistas, busca mantê-las dentro de um padrão arbitrário de beleza, a tal feminilidade. O esforço que a “adequação ao padrão estético” demanda das mulheres é considerado pela Marcha das Vadias de São Paulo um atraso para o avanço da luta feminista, no sentido ser uma nova maneira de manter a mulher afastada da vida política, como podemos ver nesta declaração:

[a mulher] gasta horas se depilando, gasta horas cuidando do cabelo, gasta horas escolhendo uma cor de base e não tô sendo contra se depilar, contra maquiagem, contra nada disso… a questão que eu tô querendo colocar é como a feminilidade é uma… não queria dizer uma arma assim… mas é um instrumento contra o avanço da luta feminista. Pensando em quanto tempo essa mulher gasta pra cumprir essa feminilidade hoje, que tá ligada estritamente a essa imagem, essa coisa da beleza, e até “o consumir”, sabe? Porque “se você é mulher de verdade, você tem que pelo menos uma vez por mês, gastar um dia inteiro, procurando coisas pra comprar”, sabe? E quando… se você pensar na mulher lá de 1800, vamos dizer, século XIX, ela tinha um nível de tarefa doméstica que ocupava completamente o tempo dela. E aí a gente pode falar inclusive dos eletrodomésticos. […] Naquela época […], ela passava uma tarde inteira, dois dias inteiros só pra lavar a roupa. E aí, o que a gente gasta hoje, por exemplo, pra seguir isso que se diz feminilidade, temos que gastar horas comprando, horas preocupadas com os cílios, com a sobrancelha, com os joelhos, com o pé, com o culote, com o seio, com a hidratação da pele, do cabelo e tudo mais. E aí, eu coloco essa posição de feminilidade como instrumento contra o avanço feminista nesse sentido de minar o tempo da mulher. Porque se a mulher ganhou o tempo porque ela saiu de casa, porque ela deixou de ter essas obrigações domésticas, por que ela nega isso… por outro lado, vai se impondo, se colocando mais “n” coisas nesse padrão, vai se transformando esse padrão de feminilidade num ponto em que a mulher continua com o tempo minado, sem tempo pra refletir, talvez, pra pensar, pra parar e ver o que é tudo isso que ela tá fazendo. […]A gente está num embate: a feminilidade empurra pra trás e o feminismo empurra pra frente.
(Entrevista concedida em 01 de dezembro de 2013).

O padrão de feminilidade, desse modo, estaria associado ao que elas identificam como as armadilhas que a sociedade patriarcal constrói para minar a capacidade reflexiva das mulheres, a fim de mantê-las sob a dominação masculina. Ao atender as mais variadas demandas do estereótipo de beleza, as mulheres estariam, na realidade, se sujeitando ainda a uma dominação patriarcal, pois o mercado de produção de conteúdos publicitários ainda é dominado por homens e mulheres machistas, que preferem manter o status quo:

Más notícias nesta entrada do século XXI: as mulheres continuam submissas! De nada adiantaram a propalada revolução sexual, a queima de soutiens em praça pública, a difusão da pílula. […] Mudamos muito, mas mudamos para continuarmos as mesmas. […] Trocamos a dominação de pais, maridos e patrões por outra, invisível e, por isso mesmo, mais perigosa. A dominação da mídia e da publicidade
(DEL PRIORE, 2000, p. 99).

Considerações Finais

Ao refletir acerca do fato de vivermos em “uma sociedade, sem sombra de dúvida, centralizada na comunicação e nas práticas de consumo” (ROCHA, 2011, p.18), buscamos demonstrar como conceitos tão naturalizados como o de feminilidade podem ser atribuídos às negociações e/ou negações das práticas de consumo e a partir delas também serem modificados. Isto é, as práticas de consumo podem ser enxergadas neste caso tanto como reguladoras do conceito de feminilidade como o espaço crítico que pode ajudar a modificar tal conceito.

Conforme apresentamos nos resultados de nossa pesquisa, muitas das novas feministas da Marcha das Vadias de São Paulo recusam-se a cumprir os padrões estéticos impostos pela mídia e pela sociedade do consumo. Assim, podemos inferir que se é verdade, como afirma Nestór Garcia Canclini (2010) em sua máxima, que “o consumo serve para pensar”, a negação de tais práticas de consumo, ou esta espécie de ações de “contra-consumo” das ativistas da Marcha das Vadias serve então para repensarmos as engrenagens das construções de identidade de gênero na sociedade contemporânea. Defendemos este ponto de vista de acordo com o questionamento levantado em um dos depoimentos das ativistas, citado anteriormente: “como pode uma mulher natural não ser feminina?”.

Acreditamos por fim que se a feminilidade pode também ser lida pelas novas feministas como meio de afastar as mulheres do pensamento reflexivo e mantê-las sob eterna vigilância dos padrões estéticos e culturais do patriarcado, este conceito carece mesmo de maior atenção por parte dos teóricos da comunicação uma vez que está claro que a difusão de tais padrões é orquestrada principalmente pelo imaginário construído através dos universos midiáticos e do consumo.

Notas

3 A Marcha das Vadias teve o seu início no ano de 2011, no Canadá, quando um representante da polícia realizou uma palestra sobre segurança dentro da Universidade de Toronto e sugeriu que as mulheres deveriam evitar vestirem-se “como putas” (sluts em inglês) para não serem vítimas de estupro. A afirmativa causou grande indignação e deu início a Slut Walk, nome original da “Marcha das Vadias”.

4 “As violências praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo assumem múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de ameaça, coação ou força física, lhes infligem, na vida privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua subjetividade” (ALEMANY, 2009b, p. 271)

5 “A maternidade constitui ao mesmo tempo, uma especificidade valorizada — o poder de dar a vida –, uma função social em nome da qual reivindicar direitos políticos ou direitos sociais, e uma das fontes de opressão. Operadora de divisões, ela estrutura as posições teóricas das feministas” (COLLIN E LABOIRE, 2009, p. 133).

Referências

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BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. V 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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