O sadomasoquismo na comunidade lésbica

Arquivista Radical
Felinismo Radical
Published in
8 min readDec 15, 2018

Susan Leigh Star entrevista Audre Lorde
Tradução Alice Gabriel

“Sem uma rigorosa e consistente avaliação do tipo de futuro que queremos criar e um exame extremamente honesto das expressões de poder que escolhemos incorporar em todas as nossas relações, incluindo as mais privadas delas, nós não estaremos progredindo; mas apenas reinterpretando nossas mesmas personagens no mesmo antigo e usual drama… O S/M [sadomasoquismo] não é repartição de poder, mas é meramente uma depressiva remodelação do mesmo antigo e destrutivo modelo das relações humanas de dominante/subordinado e do poder unilateral, que agora mesmo transforma nossa terra e nossa consciência humana em poeira.”

Leigh: Como você vê o fenômeno do sadomasoquismo na comunidade lesbiana?

Audre: O Sadomasoquismo na comunidade feminista-lesbiana não pode ser visto como algo separado das questões econômicas e sociais que cercam nossas comunidades. Ele é o reflexo de toda uma tendência social e econômica neste país. Infelizmente, o sadomasoquismo tem sido confortável para algumas pessoas nesse período em que ele vem se tornando público. Mas qual é a natureza desse fascínio? Por que essa ênfase do sadomasoquismo na mídia heterossexual? O sadomasoquismo é congruente com outras coisas que têm sido fomentadas nesse país politicamente, culturalmente e economicamente, coisas que tem a ver com a dominação e submissão, com a desigualdade de poder.

A atenção que o Samois 1 está tendo na mídia é provavelmente fora de proporção com a representação real do sadomasoquismo na comunidade lesbiana. Isso porque o S/M é um tema na cultura dominante, e uma tentativa de revindicá-lo, mais do que questioná-lo, é usada como um “Se você está desrespeitando as irmãs, você não está combatendo o Poder.” pretexto para não olhar o conteúdo desse comportamento. Por exemplo, “nos somos lésbicas fazendo essa coisa extrema e vocês estão criticando agente!”2 Assim, o sadomasoquismo é usado para deslegitimar o feminismo-lesbiano, o lesbianismo e o feminismo.

Leigh: Então você está dizendo que a mídia heterossexual ajuda a amplificar o fenômeno dentro das comunidades lesbianas, ao mesmo tempo em que focaliza em algumas lésbicas como uma forma de não lidar com as implicações maiores e com a enorme existência desse fenômeno no mundo?

Audre: Sim. E porque essa perspectiva de poder é apenas uma pequena parte de uma enorme questão, é difícil criticá-la isoladamente. Erich Fromm uma vez disse: “O fato de milhões de pessoas fazerem parte de uma ilusão, não faz dela sadia”.

Leigh: E quanto à doutrina de “viva e deixe viver” e os discursos de liberdade civil?

Audre: Eu não acho que esse seja o ponto. Eu não estou criticando o direito de ninguém viver. Eu estou dizendo que nós devemos observar os caminhos e implicações de nossas vidas. Se nós estamos falando de feminismo então todo o pessoal é político e nós devemos sujeitar tudo em nossa vida a um escrutínio. Nós temos sido educadas numa sociedade doente e anormal, e nós devemos estar num processo de retomar a nossa vida, mas não nos termos dessa sociedade. Isso é complexo. Eu não falo de condenação, mas do reconhecimento do que está acontecendo e do questionamento do que isso significa. Eu não quero regular a vida de ninguém. Se nós temos que escrutinar as relações humanas, nos devemos escrutinar todos os aspectos dessas relações. O sujeito e o assunto da revolução somos nós mesmas, é a nossa vida.

O Sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada das relações de dominante/dominados. E prepara-nos para aceitar a subordinação ou para reforçar a dominação. Afirmar que exercer o poder sobre alguém que não o tem é erótico, mesmo numa representação, é legitimador, é programar o estágio emocional e social para a continuação desse tipo de relação, tanto politicamente, como socialmente e economicamente. O sadomasoquismo alimenta a crença que a dominação é inevitável. Isso pode ser comparado à adoração de um deus de duas faces ao qual só se adora a parte branca na lua cheia e a parte preta na obscuridade da lua, como se essas duas faces de uma mesma cabeça fossem totalmente separadas. Você não pode isolar um aspecto da sua vida, separar suas implicações, seja o que você come no café da manhã ou como você se despede. É isso que significa integridade.

Leigh: Isso se relaciona com dois argumentos centrais colocados pelas mulheres do Samois: que a tolerância liberal é necessária no reino da sexualidade e que essa relação de poder deve ficar restringida a cama. Eu sinto, como você, que é perigoso tentar deixar sem questionar uma parte tão vital de nossa vida assim.

Audre: Se é um assunto restringido ao quarto, então por que o livro do Samois [“What Color Is you DandKerchief? : A Lesbian S/M Sexuality Reader”] é impresso? E se não, o que isso significa? É do interesse do sistema de lucro capitalista que nós privatizemos muitas coisas de nossas experiências. A fim de fazer escolhas de vida íntegras, nos devemos abrir as comportas da nossa vida, criar uma consistência emocional. O que não é o mesmo que dizer que todas devemos agir da mesma maneira, que não possamos mudar ou crescer; é que deve haver uma integridade subjacente que se afirme em todos os nossos atos. O Erótico transpassa nossas vidas, e a integridade é a condição básica a que nos aspiramos. Se nós não tivermos as lições da nossa jornada para essa condição, então nós não temos nada. Com essa visão de vida, cada um é livre para examinar trajetos variados de comportamento. Mas a integridade tem que ser a base da jornada.

Certas coisas em toda sociedade são definidas como totalmente destrutivas, como por exemplo gritar “FOGO!” num teatro lotado. O liberalismo, através dos direitos garantidos pela primeira emenda, permite a pornografia e também permitiu o espancamento de esposas. Mas isso não faz com que essas coisas caibam na minha visão de mundo. O que eu questiono, sempre e sempre, é quem está lucrando com isso? Quando o sadomasoquismo é apresentado como conflito central dentro do movimento feminista, eu pergunto: mas quais são os conflitos que não estão sendo apresentados?

Leigh: Como você acha que o sadomasoquismo começou? Quais são as suas raízes?

Audre: No molde padrão do superior/inferior que está inculcado dentro de nós nos mais profundos níveis. A intolerância que aprendemos a ter perante as diferenças. As pessoas envolvidas com sadomasoquismo expressam tal intolerância à diferença aprendida por todos nós: a superioridade e como conseqüência dela o direito de dominar. O conflito está supostamente limitado porque acontece detrás das portas do quarto. Mas pode esse ser o caso quando o erótico nutre, sustenta e transpassa nossas vidas?

Eu me pergunto, num escrutínio bem profundo de mim mesma, se eu não estou sendo puritana sobre isso — e eu tenho me perguntado sobre isso com muita atenção — e a resposta é não. Eu sinto que nós fazemos decisões de vida íntegras sobre a rede de relacionamentos que nós temos, e essas decisões e compromissos conduzem-nos a outras decisões e compromissos — certas maneiras de ver o mundo, procurar mudanças. Se esses compromissos e decisões não nós conduzem para o crescimento e para as mudanças, nós não temos nenhum chão para construir sobre, nenhum futuro.

Leigh: Você acha que o sadomasoquismo entre homens gays é diferente do que o sadomasoquismo entre lésbicas?

Audre: Quem lucra com lésbicas se batendo? Os homens brancos foram levados a acreditar que eles são Deus; muitos homens gays brancos só são marginalizados em apenas um aspecto. Grande parte do movimento gay branco procura fazer parte do Sonho Americano e projeta uma raiva inacreditável quando não são incluídos nos privilégios do homem branco padrão, privilégios conhecidos como Democracia Americana. Frequentemente, os homens gays estão trabalhando para não mudar o sistema. Esse é um dos porquês do o movimento gay masculino ser tão branco quanto é. Gays negros reconhecem, outra vez pelos fatos da sobrevivência, que eles não estão sendo incluídos da mesma maneira. Essa divisão entre os homens brancos gays e os homens negros gays está sendo examinada e explorada. Recentemente, por exemplo, havia uma reunião de lésbicas e de gays do terceiro mundo em Washington.

Reconheceu-se que há umas coisas que nós não compartilhamos com lésbicas e homens gays brancos e coisas que compartilhamos, e que a explicitação dos objetivos é necessária entre lésbicas e gays brancos e lésbicas e gays do terceiro mundo. Eu não vejo nenhuma batalha essencial entre muitos homens gays e a lógica dominante branca masculina. Com certeza há homens gays que não categorizam suas opressões e lutam por um futuro. Mas esse é um problema das políticas majoritárias: muitos homens gays brancos estão sendo puxados pelas mesmas cordas que outros homens brancos nesta sociedade. Você não consegue que pessoas lutem contra o que eles identificaram como seus interesses básicos.

Leigh: Muitas das coisas que você está dizendo é que as políticas do s/m estão conectadas com as políticas de movimentos maiores?

Audre: Eu não acredito que sexualidade é algo separado da vida. Como uma mulher da minoria, eu sei que relações de dominação e subordinação não são apenas questões de quarto. Da mesma maneira que estupro não é uma questão de sexo, s/m também não é, mas é uma questão de como nós usamos o poder. Se fosse somente uma questão de preferência sexual ou de gosto particular, por que esta seria apresentada como uma questão política?

Leigh: Eu sinto frequentemente que há uma tirania sobre todo o conceito de sentimentos, como se sentir algo implicasse de alguma forma colocá-lo em ação.

Audre: Você não sente um tanque ou uma guerra, você sente ódio ou amor. Sentimentos não são errados, mas você é responsável pelos comportamentos que você usa para satisfazer esses sentimentos.

Leigh: E sobre como o Samois e outras sadomasoquistas lésbicas usam o conceito de poder?

Audre: O conceito s/m de “o sexo baunilha”3 é sexo sem paixão. Eles estão dizendo que não pode existir paixão sem diferenças de poder. Isso me parece muito triste, solitário e destrutivo. A conexão entre paixão e dominação/subordinação é o protótipo heterossexual da imagem das relações entre homens e mulheres, imagem que justifica a pornografia. Supõe-se que mulheres amam ser brutalizadas. É esse também o protótipo que justifica as relações de opressão, onde x subordinado, aquele que é “diferente”, gosta de estar nessa posição inferior. O movimento gay masculino, por exemplo, investe na distinção entre pornografia gay s/m e a pornografia heterossexual. Os homens gays podem se dar ao luxo de não ver as conseqüências. Nós, como mulheres e como feministas, temos que apurar nossas ações e ver o que elas implicam, e sobre o que elas estão baseadas. Como mulheres, nós fomos treinadas a seguir. Mas, nós devemos olhar para o fenômeno s/m e nos educar e ao mesmo tempo estar ciente de manipulações intricadas, de fora e de dentro.

Leigh: E como isso se relaciona especificamente com o feminismo lesbiano?

Audre: Primeiro, nós devemos nos perguntar se toda essa questão de sexo s/m nas comunidades lesbianas não está sendo usada para desviar atenção e energias de outras questões mais urgentes e imediatas, que tem a ver com a manutenção de nossas vidas, que estão nos encontrando enquanto mulheres num período racista, conservador e repressivo? Um desvio de atenção? Uma cortina de fumaça para os provocadores da ordem? Segundo, o s/m lesbiano não é uma questão do que você faz na cama, assim como o lesbianismo não é simplesmente uma preferência sexual. Por exemplo, o trabalho de Barbara Smith sobre o “Woman-identified woman”4, sobre experiências “lésbicas” em Zora Hurston ou Toni Morrison. O que define a qualidade desses atos não é
com quem eu durmo e nem mesmo o que fazemos juntas, mas sim que afirmações de vida estou inclinada a tomar como natureza e efeito das minhas relações eróticas que se infiltram por toda minha vida, por todo meu ser? Sendo um veio profundo de nossas vidas eróticas e de nossos conhecimentos eróticos, como é que a sexualidade nos enriquece e empodera nossas ações?

1 Primeiro grupo lésbico sado-masoquista que nasce em 1978 em San Francisco. (N. do T.)
2 O Samois tentava legitimar o s/m como alternativa sexual dentro nas relações , lesbianas. (N. do T.)
3 Baunilha: expressão s/m para denominar as relações sexuais não sadomasoquistas. (N. do T.)
4 Manifesto, redigido em 1970 pelo grupo Radicalesbians.

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