Os meios de reprodução: A evolução da opressão e exploração das mulheres

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Felinismo Radical
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11 min readDec 15, 2018

Por Kim em The left side of feminism
Tradução menstruakill

O marxismo sustenta ha bastante tempo que a classe trabalhadora vai encontrar a saída de uma vida de exploração quando dominar os meios de produção. Que apenas isso levaria à revolução e à verdadeira libertação dos trabalhadores. Em “A Dialética do Sexo”, Shulamith Firestone adaptou os argumentos marxistas para a realidade das mulheres, e como elas poderiam encontrar o caminho para a revolução e a verdadeira libertação feminina. Sua discussão sobre os meios de reprodução fala sobre a natureza da nossa opressão e exploração: a capacidade de gerar crianças. Ou seja, a nossa natureza biológica.

Muitas pessoas argumentam que falar sobre a opressão das mulheres nesses termos é limitador e excludente. Alega-se que esses termos deixam de fora as mulheres que por algum motivo não podem ter filhos. Alega-se que esses termos excluam pessoas do sexo masculino que se auto identificam como trans. Eu digo que nenhum desses argumentos é relevante. A natureza da opressão e exploração das mulheres evoluiu ao longo dos milênios, mas continua enraizada numa verdade simples: a suposição de que todas as mulheres devem gerar filhos, e que esses filhos e as mulheres que os geraram são propriedade dos homens. Não importa se uma mulher específica teve um filho, quer ter um filho ou pode ter um filho; presume-se que ela seja “capaz” de ter filhos, e que inevitavelmente ela os terá. Presume-se que os filhos dessa mulher terão os nomes do pai, porque essa é a única herança importante.

Como eu escrevi anteriormente, e como muitos outros historiadores e pensadores escreveram no passado, a unidade familiar original da humanidade é a mãe e sua prole. Essa é a realidade da maioria dos mamíferos, aliás, da maioria dos animais, em geral. A mãe e a prole são a unidade primária. O clã é composto por parentes da fêmea. Machos ficam com o grupo até alcançarem maturidade sexual, então vão embora e se juntam a um grupo de fêmeas com quem não tenham laços sanguíneos, para propósitos de procriação. Nesta configuração não existe uma ligação “pra toda a vida” entre os pares de sexos opostos. Eles procriam, mas o pai não é considerado parte integrante. Na verdade, o pai pode até ser desconhecido, já que a fêmea pode ter tido relações sexuais com mais de um macho.

A maioria dos pensadores socialistas, junto a muitos antropólogos e historiadores, acredita que esta configuração começou a mudar quando os humanos começaram a se estabelecer em sociedades permanentes ou semipermanentes. Embora “A Origem da Família, Propriedade Privada e do Estado” tenha algumas falhas históricas, Engels explora esse argumento por uma perspectiva marxista. A ideia é que o status social da mulher foi destruído quando os humanos começaram aquilo que chamamos atualmente de “civilização”. Esta civilização foi muitas vezes baseada na agricultura e na propriedade de terra. Sob arranjos socioeconômicos anteriores, havia pouco excedente. As sociedades caçadoras-coletoras, por exemplo, reuniam os alimentos que precisavam durante o momento presente e por um curto período no futuro (por exemplo, os meses do inverno). Nestas sociedades, as mulheres estavam frequentemente envolvidas na parte de adquirir alimentos, não só em sua preparação. Elas conseguiam fazer isso ao mesmo tempo em que geravam e criavam filhos; o esgotamento físico não era tão grande ao ponto de se tornar impeditivo. Isso dava a elas mais liberdade em suas vidas pessoais. Saber que você consegue sobreviver sem a ajuda ou proteção de outra pessoa é um requerimento primordial para a liberdade pessoal.

Foi apenas depois da invenção da agricultura que o excedente começou a ser reunido e a produção de comida se tornou uma tarefa fisicamente dificultosa. Não era mais tão fácil para a mulher se envolver em ambas as tarefas de adquirir comida e cuidar das crianças ao mesmo tempo. Esta mudança na produção de alimentos levou também a um sentimento de propriedade sobre a terra, a acumulação de bens e a negociação do excedente. Para tudo isso era necessário que a mulher tivesse um laço estável, uma relação de longo termo com um único homem. O papel essencial (ou exclusivo) do homem na produção de alimentos significava que os meios dessa produção se tornaram sua propriedade e domínio. E essa era uma propriedade que o homem queria que continuasse na família “dele”, que seguisse uma herança patrilinear. Como resultado, ele precisava garantir que as crianças nascidas da mulher “dele” fossem, de fato, crianças que tivessem a carga genética dele. Assim surge o desejo de controlar a reprodução e a sexualidade femininas. Ou seja, a busca para o controle dos “meios de reprodução”.

O crescimento do patriarcado pode ser visto com base no controle dos meios de reprodução. Como tais, a exploração e opressão das mulheres são consequências diretas da nossa capacidade de gerar crianças. Os mitos, métodos e desculpas para explorar e oprimir mulheres assumiram vida própria, mas eram e continuam sendo enraizados nesse fato. Aos poucos o patriarcado se tornaria arraigado, mas seu nascimento se deu por conta de convenções socioeconômicas (vinculadas aos homens). Organizações sociais e sistemas de crença surgiriam para reforçar o patriarcado. Tudo isso então conviveria em uma única e incestuosa relação.

Com a mudança da realidade socioeconômica, as mulheres se tornaram mais e mais ligadas ao fator que as diferenciava dos homens: nossas aptidões de gerar filhos. As muitas manifestações do patriarcado são construídas ao redor disso. Isso pode ser notado na visão da sexualidade feminina, na exigência social do casamento, nas violências masculinas contra a mulher, incluindo a sexual, na batalha contra a liberdade reprodutiva e na discriminação contra mulheres em áreas econômicas e políticas.

Para manter o controle sobre a sua propriedade, se assegurando de que ela passe apenas para os seus descendentes do sexo masculino, o homem precisou controlar a sexualidade da mulher. Isso foi feito de inúmeras maneiras. Em primeiro lugar, a sexualidade feminina tinha que ser pintada como se fosse perigosa. As mulheres tinham que ser convencidas de que o sexo não deveria ser desejado por uma mulher de virtudes. Tivemos que sentir na nossa carne que o sexo era uma coisa que fazíamos como uma obrigação para os homens, nunca para nosso próprio prazer. O sexo deveria ser basear no que traz prazer ao homem. Com isso, reforçaria as normas sociais de dominação e submissão, ensinando às mulheres que tudo em nossas vidas — até mesmo nossas interações sexuais — deveriam caracterizar nossa submissão aos homens.

Para manter este controle sobre a nossa sexualidade, tivemos que ser ensinadas que pertencíamos a apenas um homem, o ‘nosso’ esposo. A demanda pela castidade fora do casamento surgiu. A demanda pra que o casamento fosse o principal e único objetivo de nossas vidas se tornou central para a própria definição de “mulher”. Nós deveríamos fornecer aos homens nossos corpos e o fruto deles (as crianças). Em troca, os homens deveriam nos fornecer os meios de sobrevivência materiais. Se não estivéssemos vinculadas a um homem, seríamos forçadas a servir muitos homens para suprir nossas necessidades materiais. O que pode significar prostituição ou engajamento em uma religião patriarcal. De qualquer modo, não estamos autorizadas a sobreviver sem vínculos com homens.

Somando-se aos meios de sobrevivência, homens nos proveriam algo além: proteção. Proteção de quem e do que? Bem, de outros homens, claro. A ameaça da violência sexual e outras violências masculinas é uma ferramenta muito eficaz em manter mulheres amarradas a “bons” homens. Todas nós sabemos muito bem que somos vulneráveis a ataques. Isso é baseado puramente na nossa natureza biológica como mulheres, como desculpa. Quando nós somos vitimizadas, é quase sempre por homens. Essa vitimização é depois jogada para nós; nós somos culpadas pelas ações violentas desses homens. Isso pode significar ser forçada a se casar com um estuprador. Isso pode significar ser colocada em julgamento por “adultério”, se nós somos casadas ou se o estuprador é casado. Isso pode significar ser perguntada por que estávamos naquele lugar naquela hora fazendo qualquer coisa que estávamos fazendo. Isso pode significar que teremos alguém exigindo saber o que fizemos para provocar este homem. E qual é a solução para este problema? A proteção aos “bons” homens — pais, maridos, irmãos, filhos.

Já que todas essas coisas se entrelaçam com o controle das capacidades reprodutivas da mulher, torna-se lógico que a escolha reprodutiva seria a inimiga do patriarcado. Dar a mulheres o direito de controlar quando e quantos filhos teremos nega o controle masculino sobre nossos corpos. O direito sugere que nós somos seres humanos completos. Ele diz que nossos corpos e nossas crianças pertencem a nós. Também nega que a natureza essencial que o patriarcado nos atribuiu: os meios de reprodução. Os meios de criar novos trabalhadores, novos burocratas, novos guerreiros, novos influenciadores, novos manipuladores políticos, novos capitães da indústria. É por isso que a “velha dama”, a mulher sem filhos, é a pessoa mais rejeitada na sociedade patriarcal. Nós só temos um propósito dentro do patriarcado: dar a homens mais homens. Isso tem sido verdade independente se a estrutura econômica era feudalista ou capitalista, independente se a estrutura era monárquica ou pseudodemocrática.

Manter as mulheres distantes das esferas de influências políticas, sociais ou econômicas era tanto uma função de controle sobre nossa reprodução quanto uma maneira de perpetuar esse controle. Nossa capacidade biológica de dar à luz tem sido usada como uma desculpa para impedir que nos sustentemos economicamente. Disseram-nos que alguns trabalhos são fisicamente muito difíceis para nós. Disseram-nos que outros empregos são perigosos para nós devido a nossa capacidade de gerar crianças. Disseram-nos que, como mães e educadoras, nós não temos “natureza” para executar alguns trabalhos. Disseram-nos que a nossa natureza biológica e hormônios nos tornam emotivas e instáveis, logo inapropriadas para alguns trabalhos. Disseram-nos que tirar um tempo para dar à luz e educar nossas crianças é um fardo econômico injustificável para nossos potenciais empregadores; que nós eventualmente iremos querer um tempo fora para casar e para ter filhos.

‘’De fato, existe uma regra que não conhece nenhuma exceção e que desempenhou um papel crucial na forma em que se organizam as relações entre os sexos. Em todas as sociedades humanas conhecidas e, à medida que os traços arqueológicos possam nos informar a esse respeito, para todas do passado, a caça — pelo menos as suas formas mais sangrentas, as praticadas com a ajuda das armas mais eficazes — era reservada exclusivamente aos homens. Em todos os lugares e sempre, as mulheres foram excluídas dessa atividade e do manejo das armas mais letais. Ao contrário do que muitos acreditam, não é tão fácil explicar porque é assim. Todas as razões “naturais” que são geralmente invocadas (mobilidade reduzida devido à maternidade, necessidade de proteger as mulheres devido à sua importância para a reprodução do grupo) têm, na verdade, algo de insatisfatório. Se, a rigor, elas podem explicar porque as mulheres são afastadas temporariamente de tal ou qual forma de caça (como seria o caso de um homem doente ou ferido), elas não explicam porque, em todas as sociedades conhecidas, é o simples fato de ser mulher que a proíbe, por toda vida, de se aproximar de uma arma cortante ou caçar grandes animais. Além disso, nenhum povo explica as proibições de que as mulheres são objeto através de considerações práticas. Todos invocam crenças mágico-religiosas. Sem levantar uma resposta definitiva a essa questão, que continua sem resolução até o momento, o que se pode ter certeza é que o monopólio masculino sobre a caça e as armas deu aos homens em todos os lugares uma posição de força em relação às mulheres. O sexo que detinha o monopólio das armas exercia, por isso, um monopólio sobre o que poderíamos chamar de “política externa”, ou seja, a gestão das relações, pacíficas ou belicosas, com os grupos vizinhos. Ora, para a maioria das sociedades primitivas, essa questão é tão onipresente quanto vital. Privadas das armas com que poderiam se defender, as mulheres ficaram, por toda parte, reduzidas ao papel de instrumentos nas estratégias dos homens.’’
(DARMANGEAT, Cristophe)

Claro, isso é um círculo vicioso. Mulheres têm sido excluídas dos meios de obter sucesso ou mesmo de sobreviver em sociedade, independente do sistema socioeconômico de tal sociedade. Então, o fato de nós não alcançarmos sucesso no mesmo grau que os homens é considerado prova de que nós não somos capazes; que as atitudes e práticas patriarcais estavam todas certas. Com o advento dos meios de produção tecnológicos, isto diminuiu em algum grau, mas ainda existe. Ainda nos dizem que mulheres não conseguem os mais altos cargos no governo ou nos negócios porque nós gastamos muito tempo para cuidar de filhos.

Uma prática ainda mais perversa é relacionar nossa natureza biológica ao gênero socialmente construído e à expressão física das normas de gênero. O conceito de feminilidade é culturalmente ligado à submissão, representação física da nossa biologia (isto é, a acentuação dos seios e da forma “feminina” são o que nos tornam seres humanos de valor), expressões de comportamento acolhedor, e uma disposição para se autossacrificar em prol dos outros, entre outras coisas. Todos estes conceitos que estão atrelados ao gênero feminino são baseados nos requerimentos patriarcais colocados sobre nós por causa de nossa natureza biológica enquanto progenitoras. Gênero é mais uma peça na caixa de ferramentas de nossa opressão e exploração.

Algumas pessoas adotaram a noção errônea de que gênero é parte integrante da luta pela libertação das mulheres. O registro histórico e os anos de luta por direitos políticos têm provado que nossa opressão e exploração é baseada em nossas capacidades percebidas enquanto progenitoras, de modo que uma luta baseada em gênero nunca vai libertar as mulheres. Continuaremos a ser oprimidas com base nessa capacidade — independente de, como mulheres individualmente, querermos ou não ter filhos — , logo tal tática está condenada desde o início. Devemos reconhecer que as raízes de nossa opressão residem em nossa biologia, e nas tentativas de se controlar essa biologia. Não nos tornaremos livres ou seguras sendo mais ou menos femininas, uma vez que a feminilidade é algo criado na tentativa de justificar e reforçar nossa opressão. Somente nos tornaremos livres tomando o controle de nossa própria biologia, atacando a ideologia que dá aos homens opinião no controle de nossa sexualidade e de nossa reprodução. E desfazendo as estruturas que permitem aos homens usar nossa biologia como uma desculpa para nos manterem longe dos lugares de poder, seja esse poder econômico, social ou político. Isso significa atacar vieses culturais profundamente arraigados sobre o que significa ser uma potencial progenitora.

‘’Já se sabe há muito tempo — Engels já o explicava de maneira límpida — que a “igualdade” jurídica (tão mal nomeada) não é igualdade real (também mal nomeada): ela é apenas a condição necessária. Assim, esta “igualdade” real será sinônima de uma completa identidade entre os sexos ou, para utilizar um vocabulário mais moderno, da desaparição dos gêneros: na sociedade, homens e mulheres terão não somente os mesmos direitos, mas sim ocuparão, nos fatos, um lugar idêntico. Os dois sexo efetuarão indiferentemente os mesmos tipos de estudos, os mesmos trabalhos e os mesmos tipos de tarefas não remuneradas. Não haverá mais focos de interesse, nem profissões nem lugares, nem atitudes “de homens” e “de mulheres”. Eis porque alguns puderam dizer que o ideal moderno de igualdade entre os sexos é, de alguma forma, o de uma sociedade assexuada (no sentido de livre de classes sociais de sexo, ou como conhecemos, gênero)’’
(DARMANGEAT, Cristophe)

Livrar-nos da exploração e da opressão não é uma tarefa fácil. Não se trata apenas de acabar com o patriarcado. Não é só acabar com o capitalismo. Devemos acabar com ambos ao mesmo tempo. Devemos exigir que os meios de reprodução sejam tomados e controlados por quem executa o trabalho. Devemos desmantelar as estruturas presentes que buscam dar aos homens e às sociedades construídas sobre filosofias patriarcais o controle de nossa reprodução. Somente o Socialismo pode tornar isso possível. Somente em uma sociedade em que as mulheres e seus filhos têm garantidos o direito e a habilidade de sobreviver e prosperar — independente de estarem atreladas a um homem — as mulheres poderão ser livres da exploração e da opressão.

Enquanto isso, devemos destruir as estruturas de suporte que vêm elas próprias tirando vidas. A religião patriarcal, o conceito de gênero, a violência masculina contra as mulheres — tudo isso e mais servem para nos manter entrincheiradas em um mundo onde as mulheres não são valorizadas. O lugar onde o Socialismo falhou no passado é aquele em que focou apenas nas estruturas econômicas e nas filosofias da sociedade. A ascensão do patriarcado pode estar ligada à evolução socioeconômica, mas ele ganhou vida própria. Essas ideologias e estruturas, que se baseiam em nossa biologia, devem ser atacadas e destruídas.

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