Pensando o lesbianismo* feminista

Arquivista Radical
Felinismo Radical
Published in
6 min readDec 13, 2018

Uma entrevista com Ochy Curiel
Publicado por Patriarkill

“O lesbianismo não se entende somente como uma prática sexual, mas também, sobretudo, como uma atitude de vida, uma ética emoldurada em uma proposta política.”

A afirmação é da ativista feminista Ochy Curiel. Em junho deste ano, o site do Projeto de Desobediência Informativa publicou um interessante artigo da ativista feminista intitulado “El lesbianismo feminista: uma propuesta política transformadora”. No documento, Ochy defende o lesbianismo não como uma identidade, uma orientação ou uma opção sexual, mas como uma posição política. Na entrevista a seguir, Ochy fala de como interpreta o movimento lesbofeminista como uma posição política, da representatividade que o movimento possui, dos grupos como o GLBT e das suas aspirações para o lesbianismo feminista. “As lésbicas, as mulheres e a humanidade devem ter uma visão integral da realidade, pois o movimento deve afetar as políticas neoliberais, a guerra, o militarismo, o racismo, os fundamentalismos na vida das mulheres, isto é, como se manifesta realmente o patriarcado em todas as suas formas
atuais”, acredita ela.

IHU On-Line — Como o lesbianismo feminista pode ser interpretado como uma posição política?

Ochy Curiel — O lesbianismo feminista parte de um conceito-chave: a heterossexualidade como norma obrigatória e como uma instituição política que diminui a autonomia das mulheres. Isso supõe entender a heterossexualidade não como prática sexual, mas como um sistema político que implica na exploração das mulheres nos planos sexual, emocional, material e simbólico. Essa exploração tem sido respaldada pelas leis, pela religião, pelas imagens midiáticas, enfim, por tudo. A heterossexualidade tem feito com que a independência e a autonomia das mulheres fiquem apagadas da história, propondo a ideia de que elas pertencem aos homens, seja como mãe, seja como esposa. A heterossexualidade obrigatória é usada para justificar o fato de que os homens pensam que o corpo das mulheres lhes pertença e, assim, seja apenas um objeto de exploração para cometer as violências sexuais, os feminicídios, a exploração do trabalho etc. O lesbianismo feminista explica que a mulher não depende econômica, emocional e materialmente dos homens. Esse já é um ato subversivo frente ao patriarcado e frente a todas essas formas de exploração e subordinação. Não necessitamos dos homens para viver, pois criamos redes solidárias entre mulheres, sejam elas lésbicas, ou não. Essas redes têm gerado outras formas de relação, de sexualidade e prazer, nem falocêntricas nem opressoras. São outras relações sociais não hierárquicas. A partir dessa posição, o lesbianismo, então, não se entende somente como uma prática sexual, mas também, sobretudo, como uma atitude de vida, uma ética emoldurada em uma proposta política.

IHU On-Line — Qual é a representatividade do lesbianismo feminista hoje na América Latina? Qual é sua força política?

Ochy Curiel — Acho que não podemos falar em representatividade, porque no movimento lésbico-feminista nenhuma organização representa o resto das organizações, muito menos na América Latina. Acredito que, a partir dos anos 1990, atingimos o auge dos espaços lésbicos-feministas, graças ao impacto do feminismo que buscava, entre outras coisas, maior autonomia nas mulheres, fora dos partidos e sindicatos. Desde então, o corpo e a sexualidade passaram a ser centrais para a política e ele permitiu, além de questionar o caráter heterocentrado do feminismo, abrir novas brechas para o feminismo tanto como teoria social, quanto como prática política. O auge desta época se evidenciou em muitos grupos, redes, articulações, encontros internacionais, enfim, um
sem-número de expressões políticas e culturais do lesbianismo feminista latino-americano que chegam até hoje em dia. Sua força política é evidenciar a heterossexualidade como sistema político, opressora em relação às mulheres e à potencialidade do lesbianismo para nossa liberdade e autonomia.

IHU On-Line — Que avanços você percebe no movimento lésbicofeminista desde seu surgimento?

Ochy Curiel — O avanço fundamental é que muitas lésbicas entenderam a importância de dar ao lesbianismo um caráter político, respaldadas pela proposta feminista. O lesbianismo feminista latino-americano é uma das correntes que se mantém mais radical nos postulados feministas, ainda que reconheçamos a existência de muitas lésbicas feministas metidas na institucionalidade, burocratizadas, dentro do movimento “Lig ht”, como o GLBT. Mesmo assim, acredito que este é um movimento com muita criatividade, apresentando cinema, textos teóricos, músicas etc. Acredito, igualmente, que ele tem criado impacto no feminismo e nos movimentos sócio-sexuais, ainda que estes não sejam
reconhecidos.

IHU On-Line — O movimento ainda é mal interpretado pela sociedade civil?

Ochy Curiel — A sociedade civil é um conceito muito amplo e muito complicado, porque a constituem desde os movimentos sociais até o empresariado, desde os setores da esquerda até os setores de direita. No geral, é claro que ainda não é um movimento muito bem visto por muitos setores, porque é um dos movimentos mais radicais. A autonomia e a radicalidade das mulheres nunca são bem vistas pelos setores conservadores, sejam de esquerda ou de direita. A lesbofobia é um fenômeno muito intenso em nossos países. Além disso, acredito que ainda não temos força política para dentro da nossa sociedade conservadora, e isso se deve ao fato de que ser uma lésbica pública significa correr muitos riscos, lamentavelmente.

IHU On-Line — No artigo “El lesbianismo feminista: uma propuesta política transformadora”, você fala que o movimento lésbico-feminista passou por um retrocesso na década de 1990. Este retrocesso ainda existe?

Ochy Curiel — Sim, acredito que ainda existe. Creio que um dos fenômenos foi a institucionalização que tocou a todos os movimentos sociais. Já o trabalho político mais horizontal de construção coletiva depende do Estado, dos financiamentos internacionais, que já quase não existem, pelo menos não como antes. O que exi stem são ONG’s burocratizadas, tecnificadas, de serviços, que têm muito poucos coletivos autônomos. Somado a estes problemas, está a crise econômica pela qual nossas países têm passado, devido à globalização e ao neoliberalismo, que fazem com que cada vez mais os espaços de trabalho se reduzam. Então, se para as mulheres isto é difícil, para as lésbicas é ainda mais, pois o tempo que poderiam dedicar às ações políticas se reduz drasticamente. Outro fenômeno que acredito que tem a ver com esse retrocesso foi a entrada do gênero como perspectiva política, pois isso fez perder a radicalidade feminista e, unida a este tema, a inviabialização das lésbicas que se reconhecem como parte do movimento GLBT, um movimento de discurso tolerante, mas sem projetos políticos. Algumas alianças estão vazias de conteúdo, como o GLBT, que, para mim, é um movimento misógino e antifeminista.

IHU On-Line — Qual é seu principal objetivo quando diz que o movimento “tem uma responsabilidade histórica de afetar este mundo”?

Ochy Curiel — Eu falo por mim, e não pelo movimento. Acredito que o lesbianismo feminista é uma proposta transformadora e revolucionária das relações de opressão e subordinação que se exerce sobre todas as mulheres. Acredito que as lésbicas feministas, como toda aquela pessoa que pensa que é possível transformar este mundo para o bem, devem trabalhar mais politicamente nos bairros, nas universidades, no movimento artístico, entre os acadêmicos, escrevendo com propostas críticas e, ao mesmo tempo, positivas. Acho que o lesbianismo feminista não somente deve centrar-se na sexualidade, como também deve considerar como afeta as raças, as classes etc. As lésbicas, as mulheres e a humanidade devem ter uma visão integral da realidade, pois o movimento deve afetar as políticas neoliberais, a guerra, o militarismo, o racismo, os fundamentalismos na vida das mulheres, isto é, atingir tudo aquilo que manifesta realmente o patriarcado em todas as suas formas atuais. Nossas propostas políticas não se diluem em temas como a identidade, pois consideram tanto nossas vidas privadas como públicas, além de nossas subjetividades macroestruturais. É uma proposta que precisa transformar-se em um projeto que transpassa fronteiras, descolonizador de nossas vidas. Essa, para mim, é a proposta do lesbianismo feminista.

* O “ismo” usado aqui vem de prática

--

--