Pornografia: O novo terrorismo

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Felinismo Radical
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10 min readDec 12, 2018

Por Andrea Dworkin
Tradução A.M

Esse é o primeiro discurso que eu dei que lida exclusivamente com o assunto da pornografia. Talvez setenta e cinco estudantes o ouviram na Universidade de Massachusetts, em Amherst, no fim do inverno, no inicio de 1977. Eles se mobilizaram no local para fazer uma demonstração contra a exibição de pornografia no campus: um filme anunciado no jornal da escola (veja O Poder das Palavras para mais informação sobre esse jornal) que havia sido trazido para o campus por um homem que acabava de ser preso por bater na mulher com quem ele vivia. Você sabe o quão gravemente ela teria que ser machucada para que ele fosse preso em 1977? Eu dei esse discurso em muitos campus de faculdades e em todos os casos os estudantes se organizaram para fazer algo sobre a pornografia, após escutá-lo. Em Dezembro de 1978, eu discursei em uma conferência na Escola de Direito de Nova Iorque. Uma história nas notícias do The New York Times notou que as pessoas se levantaram, muitas chorando, e que um famoso advogado de liberdades civis se retirou, recusando-se a escutar. Depois disso, dentro de um mês o The New York Times publicou dois editoriais citando esse discurso e denunciando feministas por serem “exageradas” e “estridentes”. Eu escrevi uma resposta (veja Para Homens, Liberdade de Expressão; Para Mulheres, Silêncio Por Favor) mas o The New York Times se recusou a publicá-lo. De acordo com o repórter que escrevia a história das notícias, se tornou a política do Times não cobrir eventos dignos de notícia que envolvessem feministas se opondo à pornografia pois tal cobertura iria “ferir a Primeira Emenda”. Nós fomos boicotadas de forma bastante efetiva pelo Times, o tão chamado jornal de registro. Nós sabemos muito mais agora sobre como a pornografia machuca as mulheres, porque é tão perniciosa; mas esse discurso foi um avanço conceitual que ajudou a mudar os termos da discussão. Os novos termos mobilizaram as mulheres à ação.

Através de toda a história humana tem havido terríveis, cruéis erros. Esses erros não foram cometidos em pequena escala. Esses erros não foram raridades ou estranhezas. Esses erros surgiram sobre a Terra como incêndios varridos pelo vento, mutilando, destruindo e deixando humanos transformados em cinzas. Escravidão, estupro, tortura, exterminação tem sido a substância da vida para bilhões de seres humanos desde o início do tempo patriarcal. Alguns sofreram com essas atrocidades enquanto outros sofreram delas até morrerem.

Em qualquer momento, a maioria das pessoas aceitou os erros mais cruéis como certos. Seja através da indiferença, da ignorância ou da brutalidade, a maioria das pessoas, opressoras e oprimidas, se desculpou por uma atrocidade, a defendeu, a justificou, a perdoou, riu dela ou a ignorou.

O opressor, aquele que perpetra os erros para seu próprio prazer ou lucro, é o principal criador de justificativas. Ele é um mágico que, a partir de ar fino, fabrica motivos intelectuais maravilhosos, imponentes, aparentemente irrefutáveis, que explicam por que um grupo deve ser degradado nas mãos de outro. Ele é o conjurador que toma a cinza fumegante da morte real e a transforma em histórias, poemas, fotos, que celebram a degradação como a verdade central da vida. Ele é o ilusionista que pinta cadáveres mutilados em correntes na tela interior da imaginação, de modo que, adormecidos ou acordados, só podemos alucinar indignidade e indignação. Ele é o manipulador da realidade psicológica, o modelador da lei, o engenheiro da necessidade social, o arquiteto da percepção e do ser.

Os oprimidos são encapsulados pela cultura, pelas leis e pelos valores do opressor. Seus comportamentos são controlados por leis e tradições baseadas em sua presumida inferioridade. Eles são, naturalmente, chamados de nomes abusivos, presumindo ter características pessoais e coletivas baixas ou desagradáveis. Eles estão sempre sujeitos a agressões sancionadas. Eles são cercados por todos os lados por imagens e ecos de sua própria inutilidade. Involuntariamente, inconscientemente, sem saber mais nada, eles marcaram neles, queimaram em seus cérebros, um autodesprezo virulento. Eles queimaram para fora deles a dignidade militante em que se baseia todo o respeito próprio.

As pessoas oprimidas não são subjugadas ou controladas por avisos fracos ou vagas ameaças de dano. Suas correntes não são feitas de sombras. Pessoas oprimidas são aterrorizadas — por violência crua, real, indescritível e invasiva. Seus corpos são agredidos e despojados, de acordo com a vontade do opressor.

Essa violência é sempre acompanhada por agressão cultural — propaganda disfarçada de princípio ou conhecimento. A preza da raça “ariana” ou caucasiana é um princípio favorito. A inferioridade genética é um campo de conhecimento favorito. As bibliotecas estão cheias de textos eruditos que provam, sem sombra de dúvida, que os judeus, os irlandeses, os mexicanos, os negros, os homossexuais, as mulheres são limo. Essas provas eloquentes e engenhosas são classificadas como psicologia, teologia, economia, filosofia, história, sociologia, a chamada ciência da biologia. Ás vezes, muitas vezes, são apresentadas em histórias ou poemas e chamadas de arte. A degradação é dignificada como uma necessidade biológica, econômica ou história; ou como a consequência lógica dos traços repulsivos ou limitações inerentes daqueles que são degradados. Nas ruas afora, a propaganda toma uma forma mais repulsiva. Se lê em placas “Somente Brancos” ou “Judeus e Cachorros Não São Permitidos”. Assovios afiados que dizem “kike”, “nigger”, “queer” e “pussy”¹ enchem o ar. Nesta propaganda, a vítima é o alvo. Esta propaganda é a luva que cobre o punho em qualquer reinado de terror.

Esta propaganda não só sanciona violência contra um grupo designado; ela a incita. Essa propaganda não apenas ameaça uma agressão; ela a promete. Essas são as imagens temidas de terror.

  • Um judeu, demarcado, atrás do arame farpado, quase nu, mutilado pela faca de um médico nazista: a atrocidade é reconhecida.
  • Um vietnamita, em uma gaiola de tigre, quase nu, ossos torcidos e quebrando, carne negra e azul: a atrocidade é reconhecida.
  • Um escravo negro em uma plantação americana, quase nu, encadeado, carne arrancado do chicote: a atrocidade é reconhecida.
  • Uma mulher, quase nua, em uma cela, em cadeia, carne arrancada do chicote, peitos mutilados por uma faca ela é entretenimento, a fantasia favorita do garoto, o direito precioso de cada homem, o destino potencial de cada mulher.
  • A mulher torturada é entretenimento sexual.
    A mulher torturada é sexualmente excitante.
    A angustia da mulher torturada é sexualmente excitante.
    A degradação da mulher torturada é sexualmente fascinante.
    A humilhação da mulher torturada é sexualmente prazerosa, emocionante, gratificante.

Mulheres são pessoas degradas e aterrorizadas. Mulheres são degradadas e aterrorizadas por homens. Estupro é terrorismo. Violência de marido contra esposa² é terrorismo. O massacre médico é terrorismo. O abuso sexual em suas cem milhões de formas é terrorismo.

Os corpos das mulheres são possuídos pelos homens. As mulheres são forçadas a ter filhos involuntariamente porque homens, não mulheres, controlam as forças reprodutivas das mulheres. As mulheres são uma população escravizada — a colheita que colhemos são as crianças, os campos nos quais trabalhamos são as casas. Mulheres são forçadas a cometer atos sexuais com homens que violam suas integridades porque a religião universal — desprezo pelas mulheres — tem como seu primeiro mandamento que as mulheres existem puramente como forragem sexual para os homens.

As mulheres são pessoas ocupadas. Nossos próprios corpos são possuídos, levados por outros que tem um direito inerente de leva-los, usados ou abusados por outros que tem um direito inerente de usá-los ou abusá-los. A ideologia que energiza e justifica essa degradação sistemática é uma ideologia fascista — a ideologia da inferioridade biológica. Não importa o quão disfarçada ela seja, não importa qual refinamento a deixe mais apresentável, essa ideologia, reduzida a sua essência, postula que mulheres são biologicamente adequadas para funcionar apenas como criadoras, pedaços de bundas e serventes. Essa ideologia fascista da inferioridade feminina é a ideologia predominante nesse planeta. Como Shulamith Firestone colocou na Dialética do Sexo, “a classe de sexo é tão profunda quanto é invisível”. Que mulheres existem para serem usadas por homens é, muito simplesmente, o ponto de vista comum, e o ponto de vista concomitante, inexoravelmente ligado, é que a violência usada contra mulheres para nos forçar a cumprir nossas tão chamadas funções naturais não é na verdade violência. Todo ato de terror ou crime cometido contra mulheres é justificado como uma necessidade sexual e/ou é descartado como absolutamente sem importância. Essa extrema insensibilidade passa como normalidade, de modo que quando as mulheres, após anos ou décadas ou séculos de abuso indescritível, elevamos nossas vozes com indignação contra os crimes cometidos contra nós, somos acusadas de estupidez ou loucura, somos ignoradas como se fossemos manchas de poeira ao invés de carne e sangue.

Nós, mulheres, estamos levantando nossas vozes agora, porque em todo esse país uma nova campanha de terror e vilificação contra nós está sendo travada. A propaganda fascista celebrando a violência sexual está varrendo essa terra. A propaganda fascista celebrando a degradação sexual das mulheres está inundando cidades, campus de faculdades, pequenas cidades. A pornografia é a propaganda do fascismo sexual. A pornografia é a propaganda do terrorismo sexual. Imagens de mulheres encadernadas, machucadas e mutiladas em praticamente todas as esquinas da rua, em toda as lojas de revista, em todas as farmácias, em casas de cinema após casa de cinema, em outdoors, em cartazes colados em paredes, são ameaças de morte a população feminina em rebelião. A rebelião feminina contra o despotismo sexual masculino, rebelião feminina contra a autoridade sexual masculina, é agora uma realidade em todo este país. Os homens, enfrentando a rebelião com um crescimento de seu terror, penduram fotos de corpos femininos mutilados em todos os lugares públicos.

Nós somos forçadas a ou capitular, sermos espancadas por essas imagens de abuso até a aceitação silenciosa da degradação feminina como um fato da vida, ou a criarmos estratégias de resistências derivadas de uma vontade completamente consciente de resistir. Se nós capitularmos — sorrirmos, sermos boas, fingirmos que a mulher em correntes não tem nada a ver conosco, desviarmos nossos olhos quando passarmos pela imagem dela cem vezes por dia — nós perdemos tudo. Ao que, afinal de contas, todo o nosso trabalho contra o estupro ou a violência de maridos contra mulheres equivale quando uma foto delas vale mil palavras nossas?

Estratégias de resistências estão se desenvolvendo. As mulheres estão cada vez mais se recusando a aceitar a mentira perniciosa e debilitadora de que a humilhação sexual de mulheres por diversão, prazer e lucro é um direito inalienável de cada homem. Petições, folhetos, piquetes, boicotes, vandalismo organizado, discursos afora, palestras, campanhas de escrita de cartas, assédio intenso e militante a distribuidores e exibidores de filmes misóginos, e uma recusa inflexível de dar ajuda e conforto aos amigos de trabalho dos pornografistas, politicamente convencidos de sua moralidade³, estão aumentando, conforme as feministas se negam a se acovardar diante dessa nova campanha de aniquilação. Estas são ações iniciais. Algumas são rudes e algumas são civis. Algumas são ações de curto prazo, espontaneamente inflamadas pela indignação. Outras são estratégias de logo prazo que demandam extensiva organização e comprometimento. Algumas desconsideram a lei masculina, quebram ela com militância e orgulho. Outras ousam exigir que a lei proteja as mulheres — mesmo as mulheres — do terrorismo descarado. Todas essas ações surgem da verdadeira percepção de que a pornografia ativamente promove o desprezo violento pela integridade e pela liberdade legítima das mulheres. E, apesar das reivindicações masculinas em contrário, feministas, não pornógrafos, estão sendo presas e processadas por agentes da lei masculinos, todos de repente “libertários civis”, quando o privilégio masculino é confrontado nas ruas por mulheres irritadas e insolentes. O conceito de “liberdades civis” nesse país nunca incorporou, e nem agora incorpora, os princípios e comportamentos que respeitam os direitos sexuais das mulheres. Portanto, quando pornógrafos são desafiados pelas mulheres, a polícia, os advogados de distrito e os juízes punem as mulheres, ao mesmo tempo que ritualmente afirmam ser guardiões legais da “liberdade de expressão”. Na verdade, eles são os guardiões legais do lucro masculino, da propriedade masculina e do poder fálico.

Ações feministas contra a pornografia devem cobrir o país, de forma que nenhum pornógrafo possa se esconder, ignorar, ridicularizar ou encontrar refúgio da indignação de mulheres que não serão degradadas, que não se submeterão ao terror. Onde quer que essas mulheres reivindiquem qualquer dignidade ou desejem qualquer possibilidade de liberdade, nós devemos confrontar a propaganda fascista que celebra a atrocidade contra nós de cabeça erguida — expor ela pelo que ela é, expor aqueles que a fazem, aqueles que a anunciam, aqueles que a defendem, aqueles que consentem com ela, aqueles que gostam dela.

No curso dessa difícil e perigosa luta, nós seremos forçadas, conforme nós experimentarmos a intransigência daqueles que cometem e apoiam esses crimes contra nós, a nos fazermos perguntas mais difíceis e profundas, as que tanto tememos:

  • O que é essa sexualidade masculina que requer nossa humilhação, que literalmente se incha com orgulho da nossa angústia;
  • O que significa mais uma vez — após anos de análise e ativismo feminista — os homens (gays, de esquerda, que seja) que proclamam um compromisso com a justiça social estarem decididos a recusar-se a enfrentar o significado e significância de sua defesa entusiástica de mais uma praga misógina;
  • O que significa os pornógrafos, os consumidores da pornografia e os apologistas da pornografia serem homens com os quais crescemos, homens com quem falamos, com quem vivemos, os homens que são familiares para nós e muitas vezes queridos por nós como amigos, pais, irmãos, filhos e amantes;
  • Como, cercadas por essa carne da nossa carne que nos despreza, defenderemos o valor de nossas vidas, estabeleceremos nossa integridade autêntica e, por últimos, alcançaremos nossa liberdade?

Notas da tradutora

¹ Termos degradantes para se referir de forma desrespeitosa a pessoas de origem judaica, pessoas negras, pessoas homossexuais e mulheres, respectivamente.

² Tradução livre do termo “wife-beating”, referente à violência de homens contra suas esposas e parceiras em geral.

³ Tradução livre do termo “self-righteous”, definido em inglês como característica de um alguém amplamente convencido da moralidade de suas ações, especialmente quando em contraste com as ações e crenças de outros, de forma intransigente.

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