A preciosidade da sombra
Um comentário sobre “Ampulheta” e outras esculturas metafóricas de Felipe Cohen
Estar próximo de um objeto frágil faz acionar involuntariamente um estado de alerta no ser humano. Qualquer movimento passa a ser um ato calculado, a fim de evitar um descuido fatal. Em torno das esculturas de Felipe Cohen, o prenúncio do perigo se redobra, tamanha a fragilidade aparente das obras. Entretanto, é justamente movimentando-se que se alcança a experiência completa de sua arte.
Diante da leveza de seus trabalhos, uma reação silenciosa e imperiosa faz reduzir o passo, respirar mais lentamente e diminuir a voz ou os pensamentos. É a tal fragilidade que se anuncia, suspendendo no ambiente uma misteriosa estaticidade. Parece haver algo de imaculado ali.
E há. Ao aproximar-se de “Ampulheta”, sua delicadeza revela o poder oculto que detém: a origem de sua força está na sombra.
A obra é composta por uma vitrine expositiva (uma mesa de madeira com uma gaveta envidraçada) e uma garrafa. O gargalo da garrafa toca a superfície da vitrine, dentro da qual está um cilindro de vidro.
A garrafa reflete no vidro, formando com ele um desenho duplo, perfeitamente simétrico. Isolado dentro da gaveta, o cilindro depende do ângulo de visão do espectador para unir-se a essa massa espelhada. É quando o conjunto desses elementos se estrutura que surge a forma que dá título à obra.
A ampulheta foi uma das primeiras tentativas do homem para controlar sua eterna obsessão em medir o tempo: um delírio. Na obra em questão, é o cilindro que simboliza a areia escorrida — o tempo que passou —, e que nada mais é do que uma fantasmagórica ilusão de ótica. O que já foi é tão real quanto aquilo que se crê existir.
Esse conflito entre o permanente e o passageiro permeia todo o pensamento artístico de Cohen. Habitualmente, seus trabalhos sobrepõem materiais que duelam a respeito da durabilidade: galhos e sacolas plásticas dialogam com basaltos e mármores travertinos. São contrastes que se criam em uma zona de instabilidade, gerando ao seu redor uma espécie de dimensão mística.
A arte de Felipe Cohen se localiza nessa perene transição de realidades. Por esse motivo, “Ampulheta” trata a sombra como seu elemento mais valioso, compreendendo o imaterial como uma preciosa ilusão.
Historicamente, peças escultóricas tem a materialidade como característica mais singular. A propriedade fundamental das esculturas está na ocupação tridimensional dos espaços. Sendo assim, “Ampulheta” é uma metáfora ao conceito de escultura como plataforma artística, uma vez que eleva o vazio ao ponto alto da obra.
O que o artista aborda como imaculado é o inexistente. Quando tratado como entidade, o nada se arma de argumentos indiscutíveis e se transforma em um corpo ilusório. Como em um passe de mágica, o vazio toma forma e passa a ser tanto real quanto espiritual.
Trata-se de uma poética arquitetada para iludir. Com precisão cirúrgica, valores morais são colocados em xeque, sugerindo que crenças — assim como pontos de vista — são exclusivamente individuais. Tornam-se reais apenas para aqueles que acreditam no que viram.
“Ampulheta” detecta o preciso momento em que se reconhece magia naquilo que o olho descrente nunca antes supôs existir. Nesse sentido, é uma arte que trata de fé. Afinal, o que são credos senão verdades imaginadas por quem neles acredita? Assim como as sombras, são fatos que só se validam quando alguém os procura enxergar.