“Untitled (1982)”, obra mais cara da história dos Estados Unidos. A beleza no caos.

JEAN-MICHEL BASQUIAT: untitled

Tomaz Leão Teixeira
ARTE e DESIGN
Published in
8 min readOct 7, 2021

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Introdução ao artista

GUILHERME FREITAS E TOMAZ LEÃO

Nascido em 22 de Dezembro de 1960, em Park Slope, Brooklyn, EUA, Jean-Michel Basquiat é um dos principais artistas plásticos dos últimos 40 anos. Teve contato com arte logo cedo, na infância, porém foi na adolescência, aos 17 anos, que Basquiat e um amigo começaram a grafitar a palavra “SAMO” — ou “SAMO Shit” — em prédios abandonados de Manhattan, gerando curiosidade na cidade. Daí em diante, ganhou destaque entre a classe artística Nova Iorquina (ganhou reconhecimento de Andy Warhol, inclusive), expondo em museus locais e do exterior. Depois de um tempo, veio o vício em drogas. Basquiat morreu em 1988, em seu estúdio, após uma overdose. Seu legado reverbera até hoje no mundo pop.

Em 2017, sua obra “Untitled (1982)” foi leiloada por mais de 110 milhões de dólares, se tornando a obra de arte norte-americana mais cara da história.

A obra “Untitled (1982)” foi pintada por Basquiat em 1982 — por muitos, o seu melhor ano em atividade — e apresenta um crânio (partes do corpo humano, como crânios, mãos e pés ganham destaque em suas obras) em traços agressivos, acompanhado de pinceladas de vermelho e amarelo. O artista utilizou grafite e tinta acrílica na produção do exemplar. O quadro, assim como o pintor, faz parte do movimento do Neoexpressionismo, dado o seu teor crítico, subjetivo e disruptivo — traços presentes em todas as obras de Basquiat — além da supracitada mistura de tintas e técnicas. O Neoexpressionismo consiste na retomada da pintura como meio de expressão. Nos anos 80, uma nova geração de artistas alemães decidiu revisitar o campo da pintura, acrescentando as discussões e o cenário político da época. “Untitled (1982)” representa muito bem o estilo de Jean-Michel Basquiat, que botava na tela alguns conflitos presentes em sua vida — conflitos raciais, de classes, interior x exterior, entre outros. A pintura foi comprada, em 2017, pelo colecionar Yusaku Maezawa, por 110 milhões de dólares. A última exibição da obra foi em 2019, no Brant Foundation (https://www.brantfoundation.org/), em Nova Iorque. O magnata pretende abrir um museu de arte contemporânea em Chiba, Japão, sua terra natal, e deixar o quadro lá, exposto.

DANTO, ARTE: REFLEXÕES.

A arte, feita por um artista, surge diretamente de algo que ele viveu, ou indiretamente também. Isto porque uma produção artística surrealista, ou que simplesmente não se interessa por descrever e retratar algo do plano da realidade, é fruto de um artista que tinha ideias de fazer algo justamente distante do que ele viu e viveu. É possível afirmar que a arte criada por ele, foi influenciada pelo o que ele viveu, viu e sentiu, o motivando a formar algo completamente distante disso. Ou seja, o real impulsiona o artista a criar qualquer coisa, seja o mais próximo, seja o mais distante. O próprio Danto diz que “os filósofos nos dizem que coisas que parecem completamente diferentes umas das outras são iguais, enquanto coisas que são completamente idênticas são diferentes”. A proximidade entre artes, mesmo que com objetivos totalmente diferentes, é muito maior do que ela aparenta ser.

Diante dessa concepção de como a arte pode ser feita, vista e/ou explicada, a arte de Basquiat parece ser explicada pelo efeito direto da realidade vivida por ele. O materialismo dialético, conceito marxista, defendia que havia uma relação dialética entre o ambiente, os fenômenos e os seres, humanos ou não. A realidade é moldada num diálogo entre estes dois grupos, o psicológico e o social, por assim dizer. Nesse sentido, Basquiat não deixou de ser parte desta relação, pois moldou e foi moldado pela realidade das ruas, influenciado por pixos, música, festas e o que mais estivesse por lá, e depois moldando todo um conceito vigente no mercado artístico, trazendo tudo aquilo que o havia atingido para influenciar a arte produzida naquele momento e para publicá-la.

Outra visão, não necessariamente tão diferente da marxista, é trazida no livro de Danto e também pode explicar muito bem a arte geral e do Basquiat, nesse sentido de que ela é fruto de uma vivência. São dois trechos que se encaixam nessa ideia, sendo o primeiro “…que os seres humanos são “ens representans”, seres que representam o mundo; que nossas histórias individuais são as histórias de nossas representações e de como essas representações se modificam no decorrer de nossas vidas; que as representações formam sistemas que constituem nossa imagem do mundo; que a história humana é a história de como esse sistema de representações se altera com o tempo…”. Danto é bem claro ao dizer que as histórias que publicamos, são nossas representações, assim como Basquiat fazia das dores que afligiam seu mundo, os conflitos e discriminações das ruas sua arte, à exemplo da obra “untitled”. O outro trecho é o que encerra o prefácio, onde diz que seu livro “ …contém tantas referências e detalhes sobre a cultura da época em que foi escrito, e do ambiente de arte em que se baseou, que um amigo meu, o filósofo e crítico David Carrier, disse que o livro necessita de notas explicativas para ser entendido pelos leitores de hoje.” E então ele cita seu amigo Richard Wollheim, que também escreveu sobre o seu livro. “A filosofia da arte de Danto desabrocha do solo da pintura c da escultura de meados do século xx. Ninguém pode ler o texto de Danto sem rememorar os cheiros, as paisagens, o infatigável alvoroço do ambiente que a circundava, do Village, das galerias do Uptown, das ruas agitadas e imundas do Soho”. E para concluir esta ideia, somado aos depoimentos de e sobre Danto, disse o artista Di Cavalcanti que “Criar é acima de tudo dar substância ideal ao que existe”. A criação de Basquiat é gerada por todo o conflito e manifestações de todas as ordens existentes na Downtown de Nova York.

Depois do debate entre as influências de um artista, Danto comenta sobre o que é ou não arte. A princípio, a maioria do que se classifica e vende como arte, um dia não foi. Atribui-se a Leonardo da Vinci a frase “A lei suprema da arte é a representação do belo”, e não dá para imaginar, hoje, que tudo que foi feito sem seguir a “lei suprema”, deixou de ser ou nunca foi arte. Além de que muitas obras são feitas para retratar o oposto do belo e vão continuar sendo arte. Danto escreve sobre ainda no prefácio, quando conta que viu o trabalho de Roy Lichtenstein em uma galeria francesa. “Fiquei absolutamente perplexo: nunca imaginara que uma cópia de uma tira de história em quadrinhos pudesse ser exibida numa galeria de arte como a de Leo Castelli”. Não será necessário explicar aqui, pois o próprio chega a uma conclusão no texto de maneira bem clara, quando cita o caso da também arte pop de Andy Warhol. “As causas das caixas comuns de Brillo eram práticas: o produto tinha de ser transportado das fábricas para os galpões de depósito e dos depósitos para os supermercados, onde era desempacotado, colocado em prateleiras e vendido. (…) A cadeia causal a que pertencia a Brillo Box de Warhol não era dessa ordem: ela descendia da evolução da teoria da obra de arte, bem como da história recente da arte. Para considerar um objeto como obra de arte era preciso conhecer essa história, ter participado dos vários debates ocorridos. A condição de obra de arte era um resultado da história e da teoria. Na maior parte das fases da história da arte, algo parecido com a Brillo Box, ainda que pudesse ter existido como objeto, não o teria como obra de arte. O trabalho só se tornou viável como arte quando o mundo da arte — o mundo das obras de arte — estava pronto para recebê-lo entre seus pares.”. De certa maneira, Da Vinci estava certo quando disse aquilo, pois com certeza o trabalho de Warhol seria ridicularizado naquele momento da história da arte. Mas, como Danto conclui, todo o debate acerca da obra de Warhol, provou e prova ao longo dos anos como aquele trabalho é sim uma obra de arte.

Ainda no que se encaixa ou não como arte, Danto cria sua exposição contendo uma tela ainda não terminada feita por Giorgione que, segundo ele, “se tivesse vivido o suficiente, teria pintado sua obra-prima não realizada, “Sacra Conversazione”. Trata- se de uma superfície vermelha que, apesar de não ser uma obra de arte, não é desprovida de interesse para a história da arte, pois foi o próprio Giorgione quem a preparou”. A ideia de que a obra de arte só passa a ser definitivamente uma quando terminada, também é bem questionável. O autor das histórias em quadrinhos de Tintim, Hergé, não conseguiu completar o seu último título, “Tintim e a Alfa-Arte”, e não deixou de ser uma história. Mesmo uma obra não terminada por Hergé pode ser considerada um álbum, ou livro, assim como a obra de Giorgione também pode ser. Mais tarde ele evoca Duchamp, com sua pá de neve no museu, só corroborando mais ainda com que o semi-pronto não é inevitavelmente pronto para um espaço artístico.

Por último, e quase que por acaso, uma relação entre o texto de Danto e a obra escolhida de Basquiat surge fortemente no texto. Isso quando ele estava conversando com J, sobre o que seria ou não arte, e é provocado pelo aluno. “Pergunto a J qual o título de sua nova obra e ele previsivelmente me diz que Sem título é tão bom quanto qualquer outro. Isso é mais um título genérico do que a simples afirmação de um fato, como às vezes acontece quando um artista descuida de batizar sua obra ou não sabemos que título ele deu ou teria dado. Observo que o mero objeto em cuja causa política J produziu seu trabalho também não tem título, mas apenas por força de uma classificação ontológica: meras coisas não têm direito a títulos. Um título é mais que um nome; geralmente é uma orientação para a interpretação ou a leitura de uma obra. E até pode não ajudar muito, como no caso de um artista que perversamente dá o título Anunciação a uma pintura de maçãs. J não chega a ser tão extravagante: seu título é indicativo, pelo menos no sentido de que a coisa a que se aplica não foi feita para ser interpretada.” Por uma grande obra do acaso, o trabalho escolhido para análise se chama “untitled”, “sem título”, em português. Com certeza Danto não diria que a obra de Basquiat não merecia título ou não era feito para ser interpretada, pois toda a agressividade do criador está explícita, apresentando uma causa política, como em todos os trabalhos do Basquiat, contendo um traço ou um resquício de tudo aquilo que é ainda marginalizado e foi escola para ele.

https://www.youtube.com/watch?v=GsWZyvtX5tU — Basquiat (1996), Julian Schnabel;

https://www.youtube.com/watch?v=pZ6qzDnQzGI — Downtown 81(200), Edo Bertoglio;

https://www.youtube.com/watch?v=K96PSRA41t0 — Basquiat, O Artista Negro — Nexo;

https://www.youtube.com/watch?v=7dJi8SA4-EY — Trecho da entrevista de 1985 com Basquiat.

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