Um exercício corajoso: trajetórias e estratégias para escrever histórias da arte

Clarice Sena P.
artedodesencontro
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4 min readMar 27, 2019

No começo da minha graduação em História da Arte, era como se arte fosse fogo*. Era um bicho que eu e minha turma não sabíamos lidar, nem prender, que saltitava pra lá e pra cá e que só podíamos observar sem entender muito bem. Esse bicho também assustava e, num primeiro momento, fomos convidados a nos aproximar para perder o medo.

No primeiro semestre, na disciplina de Práticas Artísticas, um dos professores propôs o exercício de visitar uma das exposições que estavam acontecendo na cidade, escolher uma obra e falar sobre ela. Tentei revisitar o que escrevi, mas não encontrei o arquivo. De qualquer forma, é provável que essa tenha sido a nossa primeira tentativa formal de contribuição à disciplina. Neste mesmo exercício nascia uma percepção muito importante sobre a atividade de escrita: para a História da Arte, ela só pode acontecer a partir de uma boa leitura.

Hieronymus im Gehäus (1514) — Albrecht Dürer

Desde então, tivemos que exercitar e equilibrar essas duas atividades, embora nem sempre tivéssemos domínio do nosso objeto. A fim de conquistá-lo, passamos a um exame atento do vasto contexto do que quer que estivéssemos analisando. Aqui me desloco da minha turma para falar sobre este trajeto, pois senti que a disciplina queria que eu atravessasse paredes de coisas após decifrá-las, o que acabou se tornando horas de intensas braçadas contra um mar revolto de referências.

Na trajetória para entender o que é o bicho, como, onde e porquê salta, as coisas que o cercavam foram aos poucos se tornando acessíveis e me encontrei olhando demais para elas, ao invés de olhar diretamente para ele. Então, não é que o seu saltitar tenha perdido a graça, mas foi parecendo mais repetitivo, seus movimentos de ida e vinda ficaram mais previsíveis e os sentimentos românticos foram morrendo.

Estudando a historiografia da arte, percebemos o surgimento de novas coisas para observar, novas ligações a serem feitas, novos modos de ver e novos motivos para se lançar ao mar. Para realizar o objetivo essencial da escrita, a disciplina nos convoca para intensos gestos de costura, estabelecendo ligações, avaliando e investigando trocas de olhares. Mas na hora de avançar, o que fazer? O que dizer? Onde se prender e do que se soltar?

Isto porque nos apoiamos nas possibilidades de onde e como olhar, o que nos deixa em um lugar confortável, pois nele podemos afirmar “tem um bicho ali, é possível observá-lo em tais lugares, sob tais perspectivas”, temos todas as linhas de ação para escolher e ficamos estagnados.

Temos onde nos apoiar e, mesmo tendo medo, queremos abandonar o corrimão.

Parece existir algum tipo de mérito nesse movimento de repúdio, que não é problematizar, mas questionar todos os pontos de todas as coisas, jogar tudo para o alto. Particularmente, não acho agradável, bom ou útil que esse movimento seja desmedido.

Tenho um pouco de vergonha, não muita, em dizer que não quero abandonar tudo, que me interessa mais um bom e cuidadoso exame do que se tem. Mesmo quando alguém quer se livrar de um erro, talvez seja bom guardá-lo para saber bem que existiu e como foi. Não quero abandonar várias certezas, porque percebo presenças diferentes, não superadas ou abandonadas totalmente ao longo do tempo e, por isso, não desejo fazer outro corrimão, prefiro uma grande janela, uma claraboia ou até mesmo um caleidoscópio.

Voltando ao exercício de encarar o bicho, lembro do antigo lugar confortável de observação da arte que tínhamos no começo do curso, aquele jeito estranho e ingênuo de olhar. Se não somos mais assim, temos medo de quê, afinal? A tentativa de escrita nos pede “coragem!” e parece que nos tornamos sérios demais para sermos corajosos. É enorme o desafio da escrita autoral, do salto ensimesmado no silêncio, um movimento autoconsciente que não sabe que resposta buscar, mesmo que depois tenha de oferecê-la em uma introdução.

Temos consciência que o caminho mais fácil de escrita é uma enfática e fixa, porque quando se trata da academia, ela espera certezas e apreensões exatas. No entanto, o caminho ideal parece bem mais aberto e elástico. Assim, a intuição torna-se a ferramenta mais importante para uma boa leitura. Diferente do corrimão que prestava seu apoio fixo, a intuição é um guia que nos deixa caminhar aliando nossa própria visão para determinar que caminho fazer. Ela ajuda a voltar para aquele primeiro momento de encontro com a arte, que não é mais um bicho, e permite olhar não só o contexto, mas diretamente para o seu processo de produção, de escolhas dos artistas e de construção das paredes que ansiamos atravessar.

Referências:

CANONGIA, Ligia. O Legado dos Anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

COLI, Jorge. História da arte ensina a lidar com o não dito e a incerteza constante. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 de maio de 2018. Ilustríssima.

*Ensaio desenvolvido como primeiro exercício da disciplina de Historiografia da Arte II em 2019/1.

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