As memórias do Jardim Romano e as invisibilidades de uma cidade

Priscila Pacheco
Artes & reflexões
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4 min readNov 4, 2015
Ponto de partida da história: Estação Brás da CPTM / Créditos: Priscila Pacheco

“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa.

Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis

No dia 01 de novembro, partimos da estação Brás da linha 12 da CPTM, a Safira, em direção ao Jardim Romano, bairro do extremo leste de São Paulo. A missão era documentar o invisível. O que é invisível para você? O que é invisível para mim?

A viagem até o Jardim Romano demora em média 40 minutos e o fato de ser um domingo chuvoso de feriado prolongado não impediu que o trem estivesse cheio. Adentramos o último vagão, colocamos nossos fones para escutar a história narrada e passamos a observar a cidade pelas janelas. Observamos a metrópole que se ergue sob o medo. Refletimos sobre a fuga dos pequenos deuses. Passamos a enxergar a cidade dos rios invisíveis e a pensar nas lembranças alagadas.

Paisagem observada pela janela do trem enquanto bebês choram, pessoas dormem e outras mexem em celulares / Créditos: Priscila Pacheco

Talvez você esteja pensando sobre qual maluquice estou falando, mas já adianto que não se trata de nenhuma loucura. A viagem iniciada no Brás faz parte de um espetáculo teatral que não se restringiu ao palco. “A Cidade dos Rios Invisíveis” é um espetáculo itinerante pela linha 12 da CPTM em direção ao Jardim Romano.

O nome do bairro reaviva alguma notícia em sua mente? O que aconteceu no Jardim Romano para ele ser protagonista de uma peça de teatro? Em dezembro de 2009, Jardim Romano foi acometido por uma grande enchente. O Rio Tietê transbordou durante a chuva e deixou a população em situação de alagamento por três meses. A água suja dominava enquanto a água potável se esvaía. A energia elétrica faltou por algum tempo. Crianças andavam nas costas dos pais para ir à escola.

Paulo, aos 15 anos de idade, precisou descobrir um novo ofício, o de barqueiro. “Minha irmã com água na cintura pegou a televisão, botou na cabeça e subiu para cima da casa”, relata uma das falas que escuto no áudio. “A casa tá enchendo, a casa tá enchendo”, ecoa a voz de uma das personagens da peça já fora do trem.

No dia 16 de fevereiro de 2015, o bairro entrou em estado de atenção novamente. O alagamento não alcançou 1,5m nem persistiu por três meses, mas rendeu novos prejuízos para a população e mostrou como o problema das enchentes permanece. “Qualquer chuva já enche os corredores e faz sair água suja dos ralos”, conta a moradora Keli Andrade. E é isso que faz com que Jardim Romano tenha uma arquitetura peculiar, a arquitetura da sobrevivência. O morador constrói casas de uma maneira que possa escapar de um alagamento.

Diante do cenário caótico que envolve a chuva, urbanização e morte dos rios, o grupo Estopô Balaio criou o espetáculo “A Cidade dos Rios Invisíveis”. O trabalho consistiu em escutar as experiências das pessoas que vivem no Jardim Romano e passam apuros quando começa a pingar água do céu. Além de ouvir, contaram com a participação dos “nativos” na encenação e na produção. Penso que é o forte envolvimento dos moradores na construção do espetáculo que faz com que nós, expectadores, absorvamos as sensações de viver naquele lugar e sofrer quando a casa está enlameada.

O espetáculo percorre as ruas do Jardim Romano e algumas cenas acontecem na beira do Tietê, rio poluído que transborda e encharca as casas do bairro / Créditos: Eva Bella

Todavia, também refletimos que Jardim Romano não está isolado. Assim, é neste quesito que entra a cidade inteira, ser vivo em constante transformação. Quantas coisas estão presentes em nosso gigante ser vivo e passam despercebidas? Quais as paisagens e pessoas que observamos quando estamos viajando no trem, no ônibus ou em nossos carros? Os questionamentos dizem muito sobre a pertinência de começar o espetáculo em uma viagem de trem.

Qual o nosso olhar de viajante? / Créditos: Eva Bella

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Priscila Pacheco
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Journalist — I am an independent journalist and I am interested in human rights, social actions, culture and environment. Instagram: @pricspacheco