Fins e Inícios (Parte 1)

Biologo de Araque
ArtPensante
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6 min readAug 3, 2017

Chorei, enquanto me vestia,
chorei.
Peguei todas roupas que tinha trazido na noite anterior, hoje estava calor mas ontem a noite fora fria e chuvosa, chuvosa fora na rua e dentro do seu corpo chovera, chovera a tristeza de saber que ele nunca amara ela.
Sentada no sofá ela se lembrava do momento, já tinha passado da meia noite e ela não tinha como voltar para casa, amanhã não tinha aulas e achou que seria uma boa noite para dormir abraçada com o seu amor. Só que quando conversaram ela percebeu, ele já não era mais o seu amor, nunca tinho sido na verdade. Ele disse:
— Malika, eu não sou feliz.
— Como assim?
— Não sou feliz contigo, não sou feliz comigo mesmo, eu te acho bonita mas isso não chega. Tu tens ideias fortes, eu tenho ideias fortes. Não consigo lidar com termos que estar sempre a debater por cada coisinha.
— É sério isso?
— É sério. Eu acho melhor a gente se separar.
— É só assim? Tu sozinho achas melhor e eu tenho que aceitar?
— E tu queres estar numa relação com alguém que não quer estar contigo?
— Não quero, eu só não sei qual o teu problema, se és tu ou sou eu? Se não queres estar comigo ou se só tens medo de lidar com alguém que não aceite todos teus desejos como ordem.
— Isso foi duro.
— Porém verdade. Eu vou sair.
— Não, é tarde, não saias.
— Eu vou sair deste quarto e tu não vais me parar. Vou falar com a tua irmã e durmo no quarto dela hoje. Pelo menos alguém nesta casa tem coragem para não te fazer todas vontades.
Deitei na cama ao lado dela e chorei minha tristeza, a noite inteira pensei em todos momentos, todas vezes que deitei no ombro dele, as noite dormindo abraçada ao corpo quente dele. As vezes que saiam pela cidade para se divertir. Tantos momentos bons. E sonhou e enquanto sonhava olhava seu futuro, casada com um avental e um bebê no colo. Surreal. Filhos em volta e ela cuidando da casa. Ele de terno e gravata e uma malinha. Surreal. Amantes e casos, os dois se traindo. Emoções indo. O sonho era pesado, mas quase profético. Acordou diversas vezes durante a noite mas voltava ao mesmo sonho. Sempre a mesma situação. Acordou de manhã. Pegou as suas coisas, tudo que conseguia levar no corpo, arrumou-se as pressas, não queria nem ver a cara dele.
Saiu pro calor, blusão enrolado e pôs a primeira música possível a tocar. Era uma das músicas do seu pai. Aliviou-se que ele estava viajando. Lembrou-se da infância , eles dois sozinhos viajando pelo mundo, o trabalho do pai exigia que ele viajasse, mas ele sempre se recusou a deixar ela pra trás. Até que ela fez 15 anos. A partir daí teve sua independência. A partir dos 18 preferia viajar com amigas e amigos que com o pai. Ele não dissera nada da primeira vez que ela preferiu ficar em casa mas ela vira os olhos vermelhos dele no dia seguinte. Ainda assim, se despediu e disse que amava ela. E fez isso pra todas viagens seguintes que fez sozinho. Agora , ela só queria o abraço dele.

Pensei nisso tudo, e andei, ouvi a música até ela parecia lenta, parecia que tudo se movia devagar.
Senti nada, nem frio nem calor, meu coração parece vazio de vontades. Mas estranhamente não senti que tinha perdido algo grande, só a dor de uma perde inevitável.
Tropecei, senti um galho passar da minha cabeça para a de alguém. Eu ia falar algo para ele, pedir desculpa pelo incômodo e dizer que ele agora tinha um galho na cabeça, mas ele olhava para cima e para baixo, todo atrapalhado e começou a falar, o galho ficou.

Tropecei.
Senti uma dor na cabeça, olhei para cima e vi uma menina, cabelos castanho-claros e olhos verdes. Olhei para baixo e o meu cadarço estava enrolado no dela, uma forma que não consegui perceber, meus olhos estavam meio ruins depois daquela batida.

— Desculpa, sou todo atrapalhado, nem percebi que não tinha amarrado o ténis ao sair de casa.
— Não tem problema, acho que não foste o único a sair de casa assim hoje.
Rimos, a risada dela soava a mel, ou pelo menos o som que saiu me fez sentir como se tivesse mel na boca. O Blusão dela estava quase caindo. Segurei ele.

— Obrigada, tou um desastre hoje pelos vistos. Nem sequer consegui decidir se tava com frio ou calor e saí assim de casa.
— Não tem problema, acho que está um dia confuso mesmo. Teu sotaque é bonito, de onde é?
— Cabo Verde, toda minha família é de lá, excepto o meu pai, ele diz que é do mundo.
— Sério, que engraçado ele, e tu é de onde? Cabo Verde ou daqui?
— Não sei de onde sou ainda, nem para onde vou.
— Se quiser eu conheço um café muito bom aqui perto.

Ela deu uma risada, meu coração aqueceu, não acredito em amor a primeira vista mas o que era que eu sentia agora?

— Bom, eu não tenho nenhum compromisso agora mas não tomo café.
— Creio que eles tem chá lá e outras opções.
— Seus argumentos são convincentes meu senhor. Mas creio que uma menina de família como eu não deve ir aí saindo com estranhos sem saber pelo menos o nome deles.
— André Miguel, ao seu dispor.
Percebi que o tom dela era divertido, como quem ria da situação e pelo menos queria ver onde iria dar aquela situação onde se encontravam.
Pensei em perguntar pelo nome dela, mas a curiosidade maior era em talvez conhecer a pessoa:
— Que ouvias tão distraidamente para bater em mim?
— Distraidamente? Acho que não era eu que ia tão distraída que não vi o meu caminho.
— Talvez a nossa distracção seja mútua mas eu claramente estava com a cabeça na lua, já a tua tinha-se imerso na música acho.
— Ouvia Gizzle, é uma rapper norte americana, bem interessantes as músicas delas.
— Nunca ouvi falar, é recente?
— É meio antigo, meu pai que ouve mais, eu tenho usado os aplicativos musicais dele ultimamente, as vezes caio nas playlists dele.
— Tu gosta muito dele?
— Ele é basicamente a minha única família, minha mãe morreu no parto e o resto da família não gosta muito dele.
— Que triste.
— Ele discordaria.
Ela disse rindo, a vontade com a história e a solidão da sua relação com o pai. Sorriu pra mim, abriu a porta do café e senti um ar quente vindo de dentro, hoje tinham decidido que estava frio pelos vistos. Sentamos e ela arregações as mangas, percebi duas tatuagens, um arquipelágo e dois Ms dentro de um coração. Preferi não perguntar nada.
-Como sabias que era este café?
— É o único café decente com preço acessíveis nesta rua. Tu não pareces ser uma pessoa de ir em lugares caros.
— Não sou mesmo, me sinto estranho. E estrangeiro.
— Me sinto assim também. Só que sempre.
— Qual teu nome?
-Malika.
— Prazer Malika. Quer tirar uma tarde para conversa?
— Seria um prazer André, é bom falar sobre as coisas as vezes. — disse ela se dobrando e amarrando o cadarço

Nota final: Este texto foi feito a pedido de uma amiga, ela fez os desenhos e criou o desenho dos personagens. Todos créditos a Rafaella Marchioretto pelos desenhos e pela inspiração para a história.

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Biologo de Araque
ArtPensante

Estudante de Conservação e Educação, escrevo pequenos textos em inglês e português para ver como relacionar esses temas com a economia e um novo modelo de mundo