Afasta de mim este pai, Cálice

Marcos Candido
As crônicas de Marcos Candido
4 min readAug 8, 2020

Sejamos sinceros: nem todo pai é o Mufasa e restaurante nem tem fila em dia dos pais

“Superdad” by Kollage Kid is licensed under CC BY-NC-SA 2.0

Um bom pai é pouco mais do que um tio. Ele aparece algumas vezes, parece ter alguma relação com a sua mãe, dá uns trocados achados no vão do sofá, oferece carona, um copinho de sidra Cereser quando você tem 12 anos de idade e é noite de Réveillon, recomenda continuar na Marginal e não pegar a Castelo Branco, parece entender de churrasco (não entende) e costuma manter tentativas de diálogos desconfortáveis como uma consulta ao proctologista.

O relacionamento entre pai e filho é o tesouro direto dos analistas.

É o seu Francisco enfiando goela abaixo os ovos de galinha como demonstração de afeto e dedicação ao Zezé Di Camargo. É o Karl Ove Knausgaard que conseguiu a proeza de escrever 400 páginas sobre o pai, mas que em termos objetivos o descreve como “fora casado por doze anos (…), tivera dois filhos, uma casa e um carro”; é o Xororó, imagino bem intencionado, que obriga duas crianças a cantarem sobre um feminicídio seguido por vilipêndio a cadáver (em 2019, os filhos retiraram o trecho sobre a decapitação na letra da homônima “Maria Chiquinha” e o tema acabou por pacificado).

É como num fórum online sobre dicas jurídicas onde uma mulher autointitulada “Sara Furacão” pede dicas para encontrar o pai desaparecido: “ele se chama Wochitom Antonio Cesar”.

Em “Carta ao Pai”, o cara que escreveu sobre acordar e virar um inseto gigante afirma ter medo do pai. O mesmo que escreveu sobre a burocrática máquina estatal que mói e despersonaliza seus indivíduos, enfim, o mesmo cabra que atualizou a pedra de Sísifo como um retrato complexo da era moderna, escreve que carrega consigo um sentimento de nulidade que frequentemente o domina e que “deriva, por caminhos complexos, de sua influência, pai”.

Júlio, um antigo colega de escola kafkaniano, narrava a relação com o pai como num boletim de ocorrência. Que havia comprado uma camiseta branca para o pai com dinheiro dado pela mãe; que havia deixado o presente sobre o travesseiro do pai; que por sua vez o jogou no chão por acreditar que era uma encomenda da Avon da mãe (as embalagens eram radicalmente diferentes); que Julio nunca o viu vestido com a camiseta; que em seu próprio aniversário meses depois, na época completando 11 anos, recebeu das mãos do pai uma embalagem de presente; que ao abri-la, encontrou uma peça branca com a inscrição: “eu te ❤ pai”.

“ele se chama Wochitom Antonio Cesar”

Evidentemente, a sociedade patriarcal produz exemplos menos sórdidos. Como um pai que certa vez vi durante um simpósio em plena praça de alimentação. O homem detalhava para a filha, Ana Beatriz, sobre as propriedades nutricionais e calóricas na embalagem de um suco de uva Kapo. “Mas sorvete pode?”, argumentou a criança após um estudo de análise do caso.

Outro caso folclórico do Sacomã foi o de Robson, um marceneiro e pai dedicado de meu colega de escola Rafael. Ele era o único homem presente em uma reunião de pais celebrada em 2008, no colégio estadual Olavo Fontoura.

Após 45 minutos de boletim escolar tedioso, como numa video-aula sobre retículos endoplasmáticos, Robson estranhou a ausência do nome do filho na lista. Encabulado, levantou a mão e corou ao sentir o olhar de uma matilha de mães, tias e irmãs que tiveram seu lugar de fala desrespeitado. “Licença, professora, por que o Rafael não foi chamado?”, no que foi informado pela que havia errado de sala (e de ano).

Virou piada dar meias para o dia dos pais e oferecer às mães um almoço espetacular na mansão Gatsby no dia delas. Elas recebem um kit com cremes para pele, geleias e frutas como se fossem a Cleópatra, cestas de café da manhã, uma viagem CVC para Porto de Galinhas e, se bobear, é presenteada por algo que sequer gostaria de ter, como uma panela elétrica de arroz. Aos pais, são reservadas as meias, as caixas de ferramentas, os relógios à prova d’água, as gaiolas para passarinhos e uma miniatura da McLaren dirigida por Senna, o último ano em que a Fórmula 1 prestou para ele.

Mas como ter acesso às emoções tão rústicas e saber do que nosso pais gostam? Eu nunca soube. O meu parecia gostar de Raul Seixas, que é uma característica imposta no exato momento em que o espermatozóide fecunda o óvulo. Também parecia gostar de mim e, especialmente, de mágica, posto que está há quatro anos executando o mesmo truque da invisibilidade.

A culpa não é dele. Nós, homens, nunca fomos ensinados sobre o que é e como ser um pai.

Até o próprio filho unigênito sofreu as consequências da falta de estudo. Ao olhar para os céus, ele gritou contra o genitor dos genitores por não tê-lo ajudado em seu momento derradeiro. Em um apócrifo das Escrituras, Mateus escreveu uma versão mais realista sobre este causo de abandono paterno sobrenatural. “Neste momento, os sacerdotes e mestres das leis viram o céu fechar-se em trevas e uma voz ecoar em resposta a Jesus: ‘EU MANDEI VOCÊ NÃO PEGAR A CASTELO’”.

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