Carta a minha neta

Ou a qualquer pessoa que esteja procurando mais informações sobre seus ancestrais e tem a mim como trilha desse caminho

Dayane Kelly
As crônicas de uma Lady quase adulta
4 min readJun 21, 2020

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Hoje conversei com meu tio avó. Por causa da pandemia, ele me fez uma encomenda de máscaras para mandar pelos Correios para o Pará, onde um dos netos dele está hospitalizado. Ele pediu para bordar nomes em cada máscara.

Pela primeira vez meu tio avó falou com tantas informações sobre meu avô (irmão dele). Bem, meu avó morreu quando meu pai tinha uns 16, 17 anos, então eu nunca o conheci. As informações que sempre me falavam dele era: seu avô teve diabetes muito cedo, morreu por causa disso e sua avó nunca o perdoou por tê-la internada em um hospício. Nada de bom, nada de relevante, nada que um dia eu pudesse dizer a frase clichê de: "puxei o meu avô nisso!".

Hoje eu descobri que ele adquiriu diabetes aos 21 ou 23 anos e teve que se aposentar. A doença foi muito grave nele, pois ele amputou o dedo, o pé e depois a perna nesse processo. Mas antes disso, meu avó trabalhou em uma fábrica de tecidos que existia em Camaragibe. Ele era do setor de qualidade. E meu tio avô falou que quando esqueciam de colocar as etiquetas aos produtos, ele ia lá, olhava e tocava no tecido e dizia de que ele era feito (meio louco pensando na produção atual e variedades possíveis). Será que foi isso que puxei dele sem saber?

Minha avó tinha problemas mentais não regulares (chamarei assim porque não sei como chamar) e fugia de casa e pulava muros durante as crises. Eu não sabia de nenhuma dessas histórias. Soube já depois de grande que ela tinha sido internada em um hospício e a família nunca explicou o porquê. Pelo que me lembro, ela me falou que a família do meu avó sempre quis se livrar dela e por isso fizeram isso.

Pulando esses fatores psicológicos que ainda geraria uma grande história, temos as habilidades manuais de minha avó. Depois que eu aprendi a costurar sozinha e comecei a costurar para fora, meu pai comentou que minha avó costurou em uma época da vida. Aí me veio na cabeça a leve memória de um móvel com uma máquina verde que minha avó nunca nos deixou tocar. Essa máquina foi dada pela minha tia quando minha avó morreu e eu não consegui recuperar :(

O que eu lembro dela fazendo eram tapetes em ponto cruz. Um que me lembro bem era enorme e tinham padrões de abacaxi. Foi aí quando minha mãe me explicou que existiam as "desenhistas" e as "enchedoras". As desenhistas fazia todo o padrão de desenho da peça (podemos chamar de line art) e depois colocavam as que só sabiam fazer a cruz para encher com cores especificas cada espaço. Uma novata na técnica sempre ficava responsável em encher as barras das tapeçarias.

Hoje minha tia me contou que pagavam muito bem por esses tapetes. Eram gringos que encomendavam as peças às fábricas e elas arrumavam artesãs para produzir. Então a fábrica mandava a tela e as lãs, as mulheres bordavam tudo e mandavam de volta à fábrica que colocava um forro embaixo e mandava para a entrega. Será que minha avó fez parte do Sindicato dos Artesãos? Será que eu conseguiria achar um dos tapetes feitos por ela? O de abacaxi que ainda fica na minha memória?

Não tenho nenhuma lembrança de minha avó me ensinando qualquer técnica manual que seja, mas lembro de ficar quietinha do lados das mulheres trabalhando e observar como a agulha fazia as cruzes. Muitos anos depois, quando passei a trabalhar e ter dinheiro, comprei etamine e linha de bordado e comecei a praticar o ponto cruz sozinha. Minha avó já havia morrido muito tempo atrás e minha mãe não tinha paciência ensinando. Acho que foi minha primeira técnica manual aprendida. E a partir daí, as outras coisas vieram assim, nesse processo meio solitário de autodidatismo.

Hoje em dia estou aprendendo tricô e… sempre que faço algo novo, fico imaginando como seria se minha avó estivesse viva. Eu correria na casa dela e falaria: "Vovó, olha o que eu aprendi! Vou fazer um casaco para a senhora". Não sei se ela diria que eu estou fazendo tudo errado e me ensinaria a técnica dela (nem sei se ela sabia tricô) ou se ela encheria o peito de orgulho e me abraçaria, elogiando meu início. Sinto falta dos domingos na casa dela, jogando dominó, lendo seus livros deitada no chão de cimento queimado ou me escondendo debaixo da cama dela para chorar sozinha.

Só queria mais respostas sobre o meu passado e sobre o que minha família construiu de história nesse mundo. Bem, agora sei que o trabalho da minha avó deve estar fora do Brasil, enfeitando a casa de alguém. Eu só não queria sentir que estou construindo essa história sozinha, que eu sou pioneira nessas artes manuais na família.

Ser pioneira e desbravar o mundo é gostoso mas é solitário demais. E não sei se quero fazer esse trajeto sozinha.

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Dayane Kelly
As crônicas de uma Lady quase adulta

Figurinista. A doida dos wearables. Pintora nas horas vagas. Dona da Loja BREGUESSO.