Arte-feia

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readJun 26, 2017

Estou a comer cerejas do Fundão. Tenho as mãos pegajosas da calda das cerejas no fundo da caixa. Na mesa alguém traz o assunto polémico, a temida comparação com as cerejas de Resende. Mas desta vez a discussão não ganhou raízes. As bocas doces da fruta madura não são terreno fértil para azedumes. Enquanto durarem as cerejas e o sabor de cereja nos lábio tingidos de vermelho-cereja, enquanto estivermos lambuzados daquele açúcar de fruta pegajoso e doce, somos crianças orgulhosas das nódoas vermelhas nas roupas claras.

A fruta doce tem este dom de acalmar as banalidades e centrar a vida no essencial. A doçura

de um morango que contamina tudo com o seu cheiro, um cacho de uvas no pico do verão, ou o travo picante de um melão. Tudo isto e mais um figo-pingo-de-mel consta da lista de mezinhas capazes de controlar o rancor de um palato saudável.

Esta emoção forte persiste em nós fora de época quando as frutarias dos supermercados exibem fruta-mentira, pêssegos impossíveis e meloas de água. Exemplos de beleza sem profundidade que se esgota no brilho de uma casca polida debaixo das luzes brilhantes. Frescura que não dura mais que o intervalo entre os esguichos programados da rega instalada por cima das caixas de fruta

(que ninguém sabe como, mas comprovadamente não descola os autocolantes das bananas.)

Compramos fruta que não sabe a fruta mas sabemos todos bem que é um embuste. Preferimos a comodidade dos supermercados e da sua fruta de cera mas sabemos que as cerejas que fazem esquecer tudo não são perfeitas. Sabemos que os morangos de tamanho irregular têm um cheiro que dura na casa quando já só restam os píncaros no lixo. Conhecemos bem a comodidade das uvas sem grainhas mas sabemos que uvas a sério são para comer lá fora, a pingar água gelada e com muito espaço para cuspir os caroços, orgulhosos da traquinice.

Então porque é que acreditamos na banca de livros na FNAC onde as capas valem mais que as páginas interiores e a luz faz brilhar os títulos engraçadotes com os seus trocadilhos sem graça? Porque é que tomamos por garantia as estrelas, as cintas e os autocolantes dos “Destaques” e dos “Tops”?

Sabemos tão bem que não foi assim que algum dia encontrámos a comoção de um verso que sabe a cerejas que conseguem ser de Resende e do Fundão ao mesmo tempo.

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