Como está a água?
Dois peixes, jovens, modernos, com bom ar e sorriso confiante, conversam sobre a vida. Pelo brilho nos olhos esbugalhados dir-se-ia que estão apaixonados.
Nisto passa um peixe mais velho e lento, tão lento que pôde falar-lhes calmamente sem precisar de abrandar o passo às barbatanas.
— Olá peixinhos, como está a água hoje?
Eles acenam com condescendência e uma réstia de respeito antes de regressar ao olhar esbugalhado um do outro, abrindo e fechando a boca com uma cadência que tanto pode servir para encharcar as guelras, como para expressar espanto-apreensão-espanto-apreensão-espanto
— água? Como assim?
— Está ché-ché, coitado.
Não se demoram mais. De súbito agitam as barbatanas freneticamente e saem cada um para seu lado e ambos na direcção oposta à do velho peixe que já desapareceu na corrente límpida da água. Deixando para trás a pergunta e a conversa.
Mais tarde um daqueles jovens peixes vai lembrar-se da pergunta e dar-se conta que esteve dentro de água até ser puxado para terra seca por uma dor de dentes muito parecida com o fim-do-mundo. O som das próprias escamas a secar ao sol ajuda-o na descoberta. Assustado, sem saber ainda bem o que lhe aconteceu, presta atenção a tudo à sua volta. Quando é atirado para um pequeno balde sente primeiro as escamas molhadas e as guelras a relaxarem mas demora pouco a perceber que está dentro de uma água insuportavelmente mais quente do que a corrente límpida a que se tinha habituado.
Com o passar da tarde a água no balde vai tornar-se ainda mais desconfortável para aquele peixe mas nós já não vamos assistir a isso. Entretanto também fomos puxados de volta ao frenesim dos afazeres inadiáveis de mais um dia fora da água. Estamos nisto quando uma voz conhecida recupera o desconforto das palavras do velho peixe umas horas antes
— como foi o teu dia?
— Mais ou menos. Estive a ouvir a história de uns peixes que não sabiam que vivam na água até que um deles foi pescado e
— e depois?
— depois
abreviamos a conversa com uma resposta evasiva e súbita como a fuga de dois peixes assustados pelo motor de um barco de pesca
— estou cansado.
— Foste ao supermercado?
— Não.
Não acredito que me esqueci. Vou lá agora.
— Traz um daqueles frascos de Pesto que eu ponho a água a ferver.
— Hum?!
— Para a massa, tonto.
E, dá-me um beijo antes de saíres.