Como está a água?

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readJul 17, 2015

Dois peixes, jovens, modernos, com bom ar e sorriso confiante, conversam sobre a vida. Pelo brilho nos olhos esbugalhados dir-se-ia que estão apaixonados.

Nisto passa um peixe mais velho e lento, tão lento que pôde falar-lhes calmamente sem precisar de abrandar o passo às barbatanas.

— Olá peixinhos, como está a água hoje?

Eles acenam com condescendência e uma réstia de respeito antes de regressar ao olhar esbugalhado um do outro, abrindo e fechando a boca com uma cadência que tanto pode servir para encharcar as guelras, como para expressar espanto-apreensão-espanto-apreensão-espanto

— água? Como assim?

— Está ché-ché, coitado.

Não se demoram mais. De súbito agitam as barbatanas freneticamente e saem cada um para seu lado e ambos na direcção oposta à do velho peixe que já desapareceu na corrente límpida da água. Deixando para trás a pergunta e a conversa.

Mais tarde um daqueles jovens peixes vai lembrar-se da pergunta e dar-se conta que esteve dentro de água até ser puxado para terra seca por uma dor de dentes muito parecida com o fim-do-mundo. O som das próprias escamas a secar ao sol ajuda-o na descoberta. Assustado, sem saber ainda bem o que lhe aconteceu, presta atenção a tudo à sua volta. Quando é atirado para um pequeno balde sente primeiro as escamas molhadas e as guelras a relaxarem mas demora pouco a perceber que está dentro de uma água insuportavelmente mais quente do que a corrente límpida a que se tinha habituado.

Com o passar da tarde a água no balde vai tornar-se ainda mais desconfortável para aquele peixe mas nós já não vamos assistir a isso. Entretanto também fomos puxados de volta ao frenesim dos afazeres inadiáveis de mais um dia fora da água. Estamos nisto quando uma voz conhecida recupera o desconforto das palavras do velho peixe umas horas antes

— como foi o teu dia?

— Mais ou menos. Estive a ouvir a história de uns peixes que não sabiam que vivam na água até que um deles foi pescado e

— e depois?

— depois

abreviamos a conversa com uma resposta evasiva e súbita como a fuga de dois peixes assustados pelo motor de um barco de pesca

— estou cansado.

— Foste ao supermercado?

— Não.

Não acredito que me esqueci. Vou lá agora.

— Traz um daqueles frascos de Pesto que eu ponho a água a ferver.

— Hum?!

— Para a massa, tonto.

E, dá-me um beijo antes de saíres.

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