De Volta
Estou ainda cá fora quando o telefone toca, o barulho da estrada atrapalha um bocado a gentileza da conversa mas o telefone deixa ouvir que chegue para ficar combinado
– Volto esta semana
e de caminho prometo que não me atraso muito a enviar esta história. Lá dentro as mesas estão cheias, a porta aberta deixa entrar a rua e o barulho da mesma estrada. Paramos ao balcão sem sabermos se nos sentamos nas cadeiras altas, tão arrumadas como se tivessem acabado de lavar o chão. Cruzamos o olhar para confirmar o medo que tivesse acabado tudo há muito
– Devíamos ter vindo antes
concordámos sem falar para depois, ainda em silêncio, decidirmos que ficaríamos para comer, em qualquer caso.
– Acho que esta mesa vai sair
diz-nos o homem de trás do balcão sem que eu o reconhecesse e muito menos ele a mim. A tal mesa paga e ficamos novamente num impasse
– Não sei se vão embora. Pagaram
mas não falam português e ele serve e recebe em todas as línguas dos clientes, que agora chegam de toda a parte nos voos baratos. Mas não tem vocabulário para estas subtilezas do vais-ou-ficas.
Foram. Deixaram a mesa para nós que já sentados falamos em voz alta pela primeira vez, primeiro com o nosso anfitrião que nos receita uns bolos de bacalhau, uma jarra de vinho
– Tinto? — Maduro
respondo assim a querer mostrar-me conhecedor das coisas dali. Um esforço que me denuncia mais que a indecisão ao balcão quando chegámos. Depois entre nós
— Já não é o mesmo pois não?
— Este não sei mas o apresentador é.
— Não é nada. O outro era mais velho
e aponta com o olhar uma fotografia entre muitas na parede — Já é este há muito tempo.
O mais velho vi-o poucas vezes. Este reconheço-o bem. Lembro-me da conjugação improvável do bigode farto com as sapatilhas-último-modelo. Os mesmos dedos grossos com que aponta chamam com reverência o próximo fadista, o primeiro da terceira e última parte
– O Manuel Rodrigues, um dos mais antigos fadistas do Porto e uma voz sempre estimada no Boteko que vai cantar para nós aprendermos que nisto do fado há que aprender com os mais velhos
afinal chegámos mesmo a tempo. As guitarras deslizam das caixas para as mãos do trio encostado atrás da porta entre-aberta
(nisto mudou. A porta ficava sempre fechada durante o fado.)
chega o nosso vinho à mesa com os bolos de bacalhau acabados de fritar
— O caldo-verde é que já acabou. Agora só se quiser umas papas de sarrabulho
o meu entusiasmo com a alternativa é partilhado pela mesa pegada à nossa onde alguém traduz esta possibilidade mandando vir mais duas taças das papas, sem que eu chegue a perceber se aquilo foi combinado em francês ou português. O mais certo é não ter sido combinado.
Ali fala-se apenas o estritamente necessário para encomendar o que beber e comer, nenhum outro assunto tem permissão para ser falado enquanto se canta. Nem o próprio fado, ao mínimo sussurro sem aproveitamento para o balcão o dedo do nosso apresentador aponta primeiro e esconde os lábios sem deixar dúvidas. Ele tem esse dom
(que ali se diz: dão)
de dizer o que tem que ser dito com as palavras que são precisas dizer e sem pedir licença. Fala com uma determinação que todos escutam como aos fadistas que ele vai anunciando e acompanhando. Sabe todos os versos e todos os acordes. Sabe até que fados deve pedir aos fadistas nas mesas e os versos mais esquecidos por cada um. São muitos anos disto
– O Zé Carlos começou aqui pequeno e fez-se um homem do fado com o respeito de todos nesta casa
diz o velho Manuel Rodrigues depois de cantar. Segue-se o comandante dos bombeiros voluntários com uma letra que lhe foi confiada pelo seu antecessor no comando. Um fado assimétrico nos versos contando a história de um combate que deixou uma dívida impagável da vida salva por um bombeiro a outro. Cantam outros depois dele mas só uma mulher se levantou das mesas. Uma senhora de voz trémula que o apresentador faz questão de esclarecer aos presentes já ter sido dona e senhora de um vozeirão como todos queríamos
– Não gosto disso do “andou no Fado” nem em nada. Quem andou já não tem mais para andar, se ainda mexe os dedinhos ainda anda.
O talento dele com as palavras não é extensível aos vocábulos que escolhe para elogiar mas consegue dizer isto sem procurar aprovação em redor. Olha apenas nos olhos daquela mulher. Eu é que fico tão aflito que tenho de percorrer a sala à procura de uma possível reprovação. Ela levanta-se, canta, de voz sumida, arrisca uma vez subir o tom para deixar deslizar os dentes dentro da boca e volta ao quase sussurro, quase oculto nas guitarras.
Vou deixar-vos a meio desta história que não tenho linhas no jornal para o que falta. Mas se forem ao Porto num sábado à tarde é possivel que encontrem por perto dos jardins do Palácio de Cristal dois fadistas e uma história de amor que deixei na paragem de autocarro depois do que não vos contei.