Não não.

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readMay 12, 2015

– Grita.
vá lá, grita mais alto.
Tu consegues. Acredita em ti!
Gritem todos. Vamos.

Não conseguem gritar mais alto?
Porque será que um bebé, um recém-nascido, grita mais alto que vocês?

Já vi isso mais que uma vez. Pouco maiores que a minha mão aberta, gritam com os pulmões tão abertos, fazem-se ouvir tão alto que não há matulão que se lhes compare. Mas foram estas perguntas que me fizeram parar para pensar no que poderia estar mal comigo e a minha voz
(tão fraquinha).
Lembro-me bem deste interrogatório conduzido com um método não catedrático, querendo sempre saber a resposta a cada pergunta.

– Nascemos quase todos capabilíssimos de gritar a plenos pulmões, rir com a boca muito aberta, e cuspir a sopa em cima de uma camisa lavada. Até que começam a querer que sejamos mais como os crescidos.

– Não,
não cuspas a sopa que o tio não trouxe outra camisa.
Isto ainda com doçura.
Depois num dia de menos paciência, o pai, a ter de voltar para trás, já atrasado
– não voltas a fazer esta porcaria.

– Não voltas a fazer esta porcaria!

Depois a adolescência, a dolorosa adolescência e o feito de sobreviver à primeira vez que
– não te dou um beijo.
Sobrevivemos e voltamos a tentar.
– Dás-me um beijo?
– Não dou.
Outra vez (agora já a corar antes de ouvir)
– não dou.
– Nem penses.

E o rapaz já nunca mais será como o pequeno recém-nascido. Já não é capaz de esvaziar os pulmões num grito bem dado. Em vez disso o rapaz aprendeu a curvar-se para o chão entretido com os desenhos no empedrado, por exemplo. A caminho da escola para aprender uma profissão, para ganhar um ordenado, para pagar pela terapia, para lhe devolverem a voz.

Já tinha decidido escrever esta história quando li a história de um rapaz que deixou de ir à escola porque num programa onde se aprende a cantar gozaram com as orelhas dele.

Posso ter entendido mal e o programa não seria para aprender a cantar. Talvez fosse como aqueles programas de culinária onde um tipo com sorriso de estrela de cinema e roupa de cirurgião, cozinha coisas que não se vendem no supermercado, com uma faca maior que a do Rambo e mais rápido que os livres do Ronaldo. Talvez fosse um desses programas destinados a fazer-nos engolir a nossa auto-estima, dobrar os ombros sobre o peito e comprar tudo feito.

Talvez ele volte a cantar mas nunca mais vai deixar de ter as orelhas grandes.

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