O hábito faz o monstro.
Esta é a história que ficou da entrevista a um dos meus heróis. O herói chama-se Kenneth Goldsmith e a sua heroicidade deve-se a um arquivo de arte de vanguarda, em www.ubuweb.com. Um trabalho monumental que esta super criatura ergueu quase sózinho, à margem dos motores de busca e das instituições académicas e artísticas. Professor universitário, poeta e curador, construiu este arquivo porque não havia outro.
– como é que fazes isso?
– Todos os dias dedico um copo de chá ao Ubu. Depois de deitar as crianças, encho um copo de chá bem cheio, abro o computador e trabalho até que o copo esteja vazio. Nesse tempo escolho obras, respondo a quem me escreve, a maior parte das vezes para dizer que não aceito propostas dos próprios artistas
– e depois?
– Acabando o copo vou-me deitar e só volto aquilo no dia seguinte, depois de deitar os miúdos.
O Kenneth contou-me isto na biblioteca do Museu de Serralves, num ambiente morno, de algum desconforto com a figura estravagante deste professor universitário que vivia em Nova Iorque até a cidade ficar demasiado cara para um professor universitário. Fato completo, branco, gravata arrepiante de feia, chapéu de palha e sandálias
(tenho a certeza que ele estava vestido assim numa das vezes que estive com ele mas não posso garantir que foi desta)
– Então o Ubu na tua vida é só essa hora por dia?
– Só? Não. O Ubu é a coisa mais importante da minha vida nestes últimos anos. Da minha e da de muitas pessoas que o consultam diariamente. Eu dou aulas e vejo a importância que aquilo tem para os alunos de arte. Estou aqui porque as pessoas conhecem o Ubu. A minha poesia é conhecida porque eu sou o tipo do Ubuweb…
Não imaginava que anos depois seria esta história a sobreviver daquela conversa
– um copo cheio por dia. Deito os miúdos, encho o copo, abro o computador e trabalho naquilo até o copo estar vazio.
Todos os dias.
Nesta história, salvo as palavras não serem exatamente as mesmas e o chá não ser chá, tudo o resto aconteceu assim mesmo. Foi assim que a ouvi e estou convencido que é assim mesmo, um copo por dia, que se ergue do caos um dos mais importantes arquivos de arte que conheço.
Em breve estaremos todos a fazer listas das coisas boas e más do ano que passou e listas das coisas a fazer e a não fazer no ano que há-de vir. Entretanto vou pensando no que faria eu todos os dias, depois do dia acabar, durante o tempo que dura um copo a ficar vazio.
(esta história foi publicada no Diário de Coimbra de 21 de Dezembro de 2015)