O Medo e o Louco
No dia 30 de Março de 1915 Fernando Pessoa entra pela estação de comboios a correr. Traz com ele o jornal do dia onde duas colunas na capa o diagnosticam em conjunto com os autores da Revista Orpheu que tinha sido publicada pela primeira vez nessa semana.
– Loucos de encerrar
assinado pelo doutor Júlio Dantas.
– Ganhámos! Ganhámos!
Comemorava ele estendendo o jornal para o comboio onde estava um dos seus cúmplices naquela glória, José de Almada Negreiros. O mesmo que mais tarde nesse mesmo dia havia de devolver a cortesia empoleirado numa mesa de café
– UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D’INDIGENTES, D’INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PODE PARIR ABAIXO DE ZERO!
(assim mesmo em maiúsculas)
A história desta comemoração do insulto foi-me contada numa aula de português e nunca confirmada. Não a ouvi uma segunda vez a não ser a mim próprio. Verdadeira ou não esta história ensinou-me que o diagnóstico da loucura pode ser uma honra inigualável dependendo do Doutor que assina a prescrição.
Esta semana regressei a esta história depois de ouvir uma crónica do Fernando Alves, na TSF
(esse temível gigante a quem desejo que ainda em vida receba a mesma condecoração que tiveram naquele dia os poetas da Orpheu).
Nos dias seguintes continuei a ouvir o eco da sua voz grave
– antes que ele estique o braço
referindo-se ao colaboracionista nazi, agora presidente honorário da Frente Nacional francesa, Jean-Marie Le Pen. Uma breve e precisa sucessão de palavras que agride sem pedir licença, que não deixa dúvidas a ninguém e que não carece nem de lugares comuns nem dicionário de narratologia.
– antes que ele estique o braço
como
– o teu máximo é ser besta e ter bigodes
outro verso do impiedoso Almada Negreiros. Outra vez
– o teu máximo é ser Dantas ou ter bigodes.
Isto a propósito de uma entrevista recente em que Le Pen estica o braço na direcção do Rap e da arte contemporânea. Não gosta
(coitado)
acha que é um
– ataque bárbaro
Aparentemente personificado pelo rapper francês Booba. Uma figura longe de ser consensual. Atacada mesmo pelos que não seguem Le Pen no gosto colaboracionista. Booba pensa e fala em nome próprio sem pedir licença a ninguém. Recentemente chamou hipócritas aos próprios fãs por publicarem mensagens de apoio à Palestina no conforto do Facebook.
Tal como o Dantas não era apenas o Júlio Dantas, mas toda uma elite subserviente. E, os poetas da Orpheu não eram apenas o Fernando Pessoa, o Almada Negreiros e os outros que publicaram nas páginas daquela revista mas um modelo subversivo que amedrontava os conservadores. Também o Le Pen e o Booba não são personagens desta história em nome próprio. Estão aqui como o pagem do rei e o João sem medo. Para nos podermos ver melhor.