O Medo e o Louco

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readSep 30, 2014

No dia 30 de Março de 1915 Fernando Pessoa entra pela estação de comboios a correr. Traz com ele o jornal do dia onde duas colunas na capa o diagnosticam em conjunto com os autores da Revista Orpheu que tinha sido publicada pela primeira vez nessa semana.

– Loucos de encerrar

assinado pelo doutor Júlio Dantas.

– Ganhámos! Ganhámos!

Comemorava ele estendendo o jornal para o comboio onde estava um dos seus cúmplices naquela glória, José de Almada Negreiros. O mesmo que mais tarde nesse mesmo dia havia de devolver a cortesia empoleirado numa mesa de café

– UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D’INDIGENTES, D’INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PODE PARIR ABAIXO DE ZERO!

(assim mesmo em maiúsculas)

A história desta comemoração do insulto foi-me contada numa aula de português e nunca confirmada. Não a ouvi uma segunda vez a não ser a mim próprio. Verdadeira ou não esta história ensinou-me que o diagnóstico da loucura pode ser uma honra inigualável dependendo do Doutor que assina a prescrição.

Esta semana regressei a esta história depois de ouvir uma crónica do Fernando Alves, na TSF

(esse temível gigante a quem desejo que ainda em vida receba a mesma condecoração que tiveram naquele dia os poetas da Orpheu).

Nos dias seguintes continuei a ouvir o eco da sua voz grave

– antes que ele estique o braço

referindo-se ao colaboracionista nazi, agora presidente honorário da Frente Nacional francesa, Jean-Marie Le Pen. Uma breve e precisa sucessão de palavras que agride sem pedir licença, que não deixa dúvidas a ninguém e que não carece nem de lugares comuns nem dicionário de narratologia.

– antes que ele estique o braço

como

– o teu máximo é ser besta e ter bigodes

outro verso do impiedoso Almada Negreiros. Outra vez

– o teu máximo é ser Dantas ou ter bigodes.

Isto a propósito de uma entrevista recente em que Le Pen estica o braço na direcção do Rap e da arte contemporânea. Não gosta

(coitado)

acha que é um

– ataque bárbaro

Aparentemente personificado pelo rapper francês Booba. Uma figura longe de ser consensual. Atacada mesmo pelos que não seguem Le Pen no gosto colaboracionista. Booba pensa e fala em nome próprio sem pedir licença a ninguém. Recentemente chamou hipócritas aos próprios fãs por publicarem mensagens de apoio à Palestina no conforto do Facebook.

Tal como o Dantas não era apenas o Júlio Dantas, mas toda uma elite subserviente. E, os poetas da Orpheu não eram apenas o Fernando Pessoa, o Almada Negreiros e os outros que publicaram nas páginas daquela revista mas um modelo subversivo que amedrontava os conservadores. Também o Le Pen e o Booba não são personagens desta história em nome próprio. Estão aqui como o pagem do rei e o João sem medo. Para nos podermos ver melhor.

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