O Perfeito Amor

"Aquele rapaz louro esquecido dos sapatos, sou eu, ou fui, há sei lá quanto tempo, com o cabelo pintado de um louro que não fica bem a ninguém. Naquela tarde nenhum espectador sabia que os meus pés estavam descalços por esquecimento. Ninguém daria pela falta dos sapatos mesmo que ficassem por calçar o resto da peça."

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra

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Já com todos sentados nos seus lugares, a luz apaga-se por uns instantes deixando a sala numa escuridão que não assusta ninguém. A plateia cheia. As primeiras filas mais cheias que o costume e mais cheias também de formalidade, a sala pequena, mais pequena do que o costume, quase pequena demais para a formalidade das primeiras filas.

(Isto das salas pequenas, particularmente as estreitas, deve complicar bastante o protocolo. Quem é que vai para a segunda fila?)

Quando a luz se volta acender recorta apenas um rectângulo meticuloso no chão do palco onde aparece um rapaz com o cabelo tão louro que só pode ser fingido, tem vestido um fato com a cor errada para uma fazenda tão grossa e uma gravata a forçar as golas da camisa

– Os sapatos!

(este grito foi mudo, tão mudo que nem a cara cedeu a expressão gélida)

O rapaz rodou sobre os pés descalços e caminhou sem pressa em direcção ao fundo do palco, até que ninguém o visse de dentro da sala, nem na primeira fila. Ninguém estranhou que ele saísse daquela forma, como ninguém estranhou que ao entrar não trouxesse sapatos. Nem a imobilidade dele pareceu desconfortável demais quando a luz acendeu pouco antes com ele de pé no centro do pequeno palco.

Já do outro lado da cortina encontrou em silêncio os outros actores que esperavam pela deixa dele para entrar em cena. Sentou-se na mesma cadeira onde tinha estado antes a vestir-se e dobrou-se sobre a cintura.

Os outros olham-no, entreolham-se mas ninguém diz nada. Ninguém pergunta

– Desistiu?

– Desististe?

Ninguém pergunta isto. Nunca ninguém pergunta uma coisa destas tão perto de um palco, não com a sala cheia.

Procura debaixo da cadeira os sapatos novos demais, apertados demais. Calça-os em poucos movimentos. Mais ágil do que o costume. Levanta-se. Atravessa de novo a cortina e regressa ao centro do rectângulo recortado pela luz no palco.

Dentro da sala, ao fundo, o resto da equipa foi capaz de manter aquela luz acesa sem duvidar que ele voltava.

– Perdi o nariz.

O nariz.

Perdi-o.

As palavras ditas entre pausas longas soavam escritas por outro mas mais confortáveis que aqueles sapatos. Os sapatos que no texto original só apareciam na cena seguinte, tinham mudado de lugar naquele dia para apertar a história e faze-la caber dentro daquela sala com a sua primeira fila pequena demais.

Aquele rapaz louro esquecido dos sapatos, sou eu, ou fui, há sei lá quanto tempo, com o cabelo pintado de um louro que não fica bem a ninguém. Naquela tarde nenhum espectador sabia que os meus pés estavam descalços por esquecimento. Ninguém daria pela falta dos sapatos mesmo que ficassem por calçar o resto da peça.

Quando voltei dos bastidores já com os sapatos calçados o meu coração ainda devia estar ruidosamente arritmado. E aquele esquecimento inicial não há-de ter sido o único sobresalto cardíaco da peça. Na hora e pouco que se seguiu outras cenas terão sido inventadas pela necessidade de sobreviver

(é sempre assim)

mas ninguém desistiu. As luzes sobre a plateia só voltaram a acender para as palmas. Como sempre.

Nisto, pelo menos nisto, o teatro imita sempre a vida dos que o fazem, vale tudo ou quase tudo, faça-se como se fizer, não vale desistir.

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