O teste

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readMar 6, 2017

Sala pronta, os alunos mais sentados e ordenados que o costume, menos tralha em cima das mesas que nos outros dias, canetas, folhas de ponto e pouco mais, quase tudo em ângulos de noventa graus. Um gesto nervoso arruma a caneta preta número um contra a caneta preta número dois para que não rolem pela mesa, na mesa ao lado as canetas rolam debaixo da palma da mão, contra a secretária, num ruído de reco-reco.

Nem todos os testes traziam tanto nervoso miudinho como o de História Cultural da Música I. Talvez porque é difícil preparar em fotocópias, sublinhados e cábulas aquele jogo de ouve e adivinha a que jogávamos nas aulas.

Eu à rasca com aquilo, sempre, gosto muito de música, ouço muita musica, mas não sei as notas, não posso memorizar uma frase se não a puder trautear e não sei trautear tantas frases de memória. Trauteio miseravelmente aliás.

O professor entra, solene, como sempre, esclarecendo com cada passo pesado os porquês de tanto nervosinho.

Implico com ele desde a primeira aula

– Bem-vindos à história da grande música ocidental anotada.

Falta-lhe qualquer coisa. Vem de mãos vazias. Pega num pedaço de giz, vira-se para o quadro, pára, quanto domínio do dramático pode ter um conhecedor de ópera, tem os braços suspensos no ar a meio do gesto de escrever. Vira-se para nós

– Desculpem os que estudaram muito para o teste de hoje, não desperdiçaram o vosso tempo, é sempre bom aprender, mas dificilmente vos servirá para responder à minha pergunta

como assim “pergunta”? Que jogo é este que muda de regras quase no fim? É suposto ter muitas perguntas, um bocadinho aqui, um bocadinho ali, nenhum bocadinho na adivinhação, no fim pode ser que dê para safar. Agora “pergunta”?

– Vou escrever uma só pergunta no quadro. Têm 3 horas para responder.

E escreve, escreve algo como: “Apresente uma proposta de programação para uma nova edição do desaparecido Festival José Afonso, fundamentando.”

Juro que bateu com o giz no quadro gloriosamente naquele ponto final. Juro que deixou cair o giz num gesto triunfal e juro mesmo que sacudiu o pó das mãos numas palmadas exageradas enquanto rematava

– Boa sorte.

Não me lembro se o silêncio durou muito. Lembro-me que rapidamente a sala deixou a solenidade da universidade e se transformou num coro infantil de

– Ó professor

– Não entendo

– Pode vir aqui?

Depois novamente o silêncio.

Foi um dos testes que mais prazer me deu a responder. Não me lembro exactamente do que escrevi. Sei que não incluí nada com “José”, “Afonso” ou “Zeca” no meu festival. Não previ nenhuma homenagem ou encontro de antigos. Eu que estava chateado com o professor da

– grande música ocidental anotada

tive durante três horas oportunidade de escolher música de todo o mundo para o cartaz de um festival, em troca só tive de justificar cada escolha no contexto de um festival que devia contribuir para prolongar o legado do cantor do “redondo vocábulo”, “Uma soma agreste”. Foi a primeira vez.

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