Os Piérres

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra

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Lembro-me de ter descoberto o livro entre os livros do Círculo de Leitores

(trazido por aquele homem que batia à porta duas vezes por mês sem que o meu pai alguma vez o convidasse para entrar. O homem dava-me pena. A perguntar pelos vizinhos que não lhe abriam a porta

— É que ainda me devem uns livros do mês passado.

Às tantas ía dizer o mesmo do meu pai na casa ao lado. Devia ser por isso que não era convidado para passar do tapete da entrada.)

tenho quase a certeza que ainda estava embrulhado num plástico justo e duro, como uma espécie de película de cozinha reforçada, quando o encontrei. Ao lado dos konsalikes que tentei poucas vezes ler e nunca me interessaram. Li umas páginas e escondi-o logo no fundo da mochila, em segurança, a coberto da biblioteca portátil que era obrigado a carregar às costas todos os dias para a escola. O resto foi lido na escola, nos intervalos das aulas e dos jogos de futebol.

Dali em diante, ou durante algum tempo, eu já não era só o rapaz franzino e pouco corajoso, sempre entre os últimos a ser escolhido para as equipas de futebol. Numa das mochilas com que fazíamos as balizas estava o meu livro do Pierre Louis. Uma preciosidade repleta de ordinarices para lá do imaginável. Havia ali palavras que nunca nos tinham sido apresentadas, palavras que nunca tínhamos visto escritas, sequências de letras arranjadas para descrever o indescritível e uma dúvida razoável sobre a possiblidade de aquelas coisas terem mesmo acontecido alguma vez a alguém em algum sítio.

Material tão ousado que já depois de deixar de ser proibido trazê-lo na mochila continuou a ter uma aura de interdito. De vez em quando ainda vem à conversa o livro e lá vou eu todo orgulhoso do meu património buscá-lo à estante para mais um empréstimo. Lá vai mais alguém experimentar o desconforto das histórias da educação pouco cristã que aquela mãe dava às filhas.

Só por uma vez tive curiosidade em ler outras coisas do Pierre Louis. Encontrei uns poemas que hã-de ter sido um equívoco. Certamente que não foi o mesmo escritor que chocou a turma do sétimo-éfe a escrever aquelas baboseiras.

Dizem-me que o Valter Hugo Mãe pode estar prestes a alcançar esse estatuto imortal de escritor proibido para os pré-adolescentes, que alguns puritanos (provavelmente leitores do Konsalik) querem esconder dos filhos um dos seus livros. Estou cheio de inveja do Valter. Dos pré-adolescentes não, tenho a certeza que o meu livro proibido era melhor que o deles. Mas, do Valter sim, no lugar dele já tinha mandado vir duas ou três caixas do livro para ir distribuir à porta das escolas aos rapazes franzinos que ninguém escolhe para a primeira equipa no futebol.

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