Pois claro.

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readMay 24, 2016

Estou a ler a entrevista do Agualusa no Expresso enquanto espero que as mãos se ponham a escrever. É quase sempre assim. Alguma coisa me põe as mãos a escrever. Quase sempre essa coisa é o tempo. O tempo que já não tenho é o melhor ajudante que vou tendo para a escrita. Não tendo também eu, como o Agualusa, nenhum jeito para o tempo. Acaba por me faltar e é aí que, escasso, e raro, o tempo se faz precioso. Um prazo expirado, uma entrega que já passou da hora e de certa forma também o tempo da vida e a sensação de que também esse me há-de faltar.

Estou nisto quando a história chega e apanha as mãos já a escrever

— Nunca poderia contar esta história num romance. Seria demasiado inverosímil

responde o Agualusa não sei a que propósito.

Vou contar isto com uma conversa daquelas em que alguém é surpreendido por uma narrativa despida, como se a verdade fosse um tecido muito leve, cortado ao longo do corpo e presa apenas por um fecho de correr que começa na nuca e desce até ao fundo das costas, com a ajuda de uma mão.

Podia aproveitar e falar das verdades plantadas nos outros como certezas. A metodologia é experimental. Dá-se-lhe uma forma e depois outra e outra, até encontrar o desenho que melhor nos serve. Com o uso, as fibras do tecido relaxam e o próprio corpo acostuma-se ao vestido. Assim se repita a verdade vezes suficientes. O essencial é repetir vezes suficientes. Um fazedor de verdades tem de se preocupar sobretudo com a repetição. No fim, se o trabalhinho estiver bem feito, ouvir-se-á qualquer coisa terminada em

— pois claro.

Um outro escritor, menos africano que o Agualusa, o Taleb, deu o nome de “cisnes negros” a estas verdades. Parece que na mesma medida que nós temos cisnes brancos nos céus do hemisfério norte, os céus azuis do sul têm cisnes negros. Explica ele que o assombro inicial de ver o céu encher-se de cisnes negros como corvos e carvão, depressa se transforma num encolher de ombros que fecha a boca e o espanto

— Cisnes negros, pois claro.

Esta história foi primeiro publicada no jornal Diário de Coimbra de 24 de Maio.

A versão aqui publicada foi revista pelo Marco Alexandre Rebelo, pela Carina Correia e pela Marta Furtado. Cúmplices de quem sou credor por esta e por outras.

Se gostaram da história, partilhem-na e carreguem no coração verde que é o “like” do Medium. Nunca vos peço isto mas, em boa verdade, faz-me falta que o façam. Fazem-me falta mais leitores, mais comentários, mais razões para a mão encontrar mais vezes o caminho da escrita.

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