Praça D. João I

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readOct 25, 2016

A Isabel fumava muito. Quando a conheci estava a tentar deixar de fumar. Punha em cada cigarro uma ou duas gotas que deixavam o filtro cor-de-rosa. Nos anos seguintes não deixou nem as gotas nem os cigarros. Lamentava-se disso e do dinheiro que gastava nas gotas a somar ao dinheiro que já gastava nos cigarros enquanto fazia pontaria, um olho quase fechado, o outro muito aberto, a tentar acertar com a gotinha cor-de-rosa na pontinha de algodão. Fazia isto entre lamentos sem se esquecer do que estava a dizer, quando voltava a levantar os olhos, já com o cigarro acesso, tinha as mesmas certezas e a mesma convicção.

— sem praça não há teatro. Não tenhas ilusões.

Parece que a estou a ouvir. Parece que é dela o cigarro que acendo à porta do teatro novo.

(o meu sem gota cor-de-rosa pf, Isabel)

— sabes como se chama a praça em frente ao teatro? Não sabes tu nem sabe ninguém da tua idade. É esse o problema daquilo. Como é que vocês hão-de querer entrar no teatro se não vão namorar para a praça em frente, como eu fui; como, diz-me lá?

E ali estou eu naquela espécie de praça que não o é porque das praças sabemos o nome, nas praças marcamos encontro, as praças até os turistas sabem apontar no mapa

— Pra-ça da Re-pú-bli-ca

sílaba por sílaba desvendam o nome daquele círculo que serve de referência para todos os percursos.

Esta praça do teatro novo é uma coisa inventada. Obriga-nos a subir uma longa escadaria para a conhecermos, como se fosse mais importante que o passeio lá em baixo junto à estrada.

— Falta aqui luz. É deprimente esta entrada à luz de lanternas.

— Não é a luz. São as noivas, as pistas de gelo, os carros novos com bandeirinhas, insufláveis e raparigas de saia a distribuir papéis coloridos.

— Também é a luz.

— Claro que é a luz. Mas, não lhes podes dizer isso. Se lhes dizes que é a luz eles um dia cansados de te ouvir arranjam para aqui uns candeeiros horríveis

— daqueles que apontam para o céu com um prato pelo meio

— ou pior. E está resolvido o problema. Porque o problema deles és tu e a tua rabugice. Não é a praça.

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