Quiasmo

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readDec 6, 2016

Ando a ler um livro anotado por outra pessoa. Tenho-me esforçado por ignorar as anotações. Vou treinando a minha normalização, ou lá como se diz assobiar-para-o-lado na linguagem dos psiquiatras. Mas, a verdade, verdadinha, é que leio mais as anotações que o livro. Encontro um poema que já tinha lido antes na internet, tenho um evitável assomo de orgulho em forma de “eu já li isto” e no fim do poema, um ou dois dedos depois do último verso, o espaço correspondente a três linhas, no máximo

“sweet one”

foi um poeta americano quem me emprestou o livro e escreveu estes comentários à margem dos poemas. O que raio quer ele dizer com “sweet one”? Gostou? Achou lamechas? Eu gostei. Acho que gostei. Se calhar é um bocado lamechas. Que nervos pá. O gajo pode bem ser americano e poeta e sem ele não tinha nunca encontrado os poemas da senhora-dona-Chelsey-Minnis, mas os rabiscos dele estão a deixar-me à beira de um ataque de nervos. O livro é dele? É. Está no seu direito ao escrevinhar as páginas do livro, ainda para mais com lápis? Está, sim. Eu é que nunca saberei se gosto de alguns daqueles poemas com ou sem os parêntesis nos 2 últimos versos, sem o “A B B A”

– Olha lá porque é que marcaste as rimas em alguns poemas?

– É só num não é?

– É capaz é.

– É um quiasmo.

e subimos o que resta da rua entretidos com o quiasmo. Porque é que alguém haveria de se preocupar com coisas destas numa altura como a nossa? Não é como se fosse receber um prémio na escola de artes poéticas, ou ser aceite pela academia francesa. Mas tem de ser propositado. Se não fosse mudava isto ou aquilo, um detalhe que fosse, para evitar a leitura formalista. Estivemos nisto até sermos interrompidos pela chegada à porta do restaurante e da fila à porta do restaurante e das conversas diluídas em reclamações porque está tudo cheio, e são os turistas, e o Porto nunca mais marca, e ai meu deus.

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