Selfies

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readJul 5, 2016

No bar do Intercidades, enquanto me afasto de Coimbra-B, as conversas vão perdendo o volume das vozes, deixo de ouvir, a voz do rapaz que atende, some-se entre solavancos da carruagem, como a voz da rapariga que quer ler as embalagens das sandes, todas, antes de comprar duas, e uma garrafa de água, já não ouço nem a mesa ao lado, e quando o estranho com quem partilhava o banco se levanta, deixo também de o ouvir. Não sei se terão sido os solavancos da linha do norte a ensurdecer as vozes. É possível. Deixo a atenção nos rapazes da mesa ao lado, como se fotografam. Nisto lembro-me

– Cartier, é isso, Cartier-Bresson,

Henri Cartier-Bresson. Foi ele que disse que quantas mais máquinas fotográficas fossem vendidas mais fácil seria encontrar os bons fotógrafos. Ele terá dito isto, ou algo parecido, para responder ao pânico dos colegas fotógrafos que naquela altura viam o seu estatuto ser vulgarizado. Com as máquinas fotográficas à venda por uma ninharia, todos podiam fotografar (imagine-se). Os desesperados, cheios de medo, a fazerem-se de fortes com a sua arrogância. Olhando-nos pela ponta desfocada do nariz.

Os meus colegas de mesa continuam a retratar-se, com óculos, sem óculos, com o telefone para cima e para o lado, dobrando e esticando o braço para compor o ângulo da fotografia. Como é que os posso olhar nos olhos? Onde está a “curiosidade de saber o que vai no mundo”?

Ensaio um meio-sorriso, deixo cair os ombros para uma posição mais confortável, guardo no bolso o meu telefone. Componho o livro de forma a que a posição de ler e de olhar para eles seja a mesma. Não está a resultar. Volto a por o telefone em cima da mesa, como eles, assim também posso ver se me responderam a alguma mensagem, sem mexer a cabeça. Mas não resulta.

Eles não querem saber como os olho. E, eu não consigo verdadeiramente acreditar em aprender alguma coisa com eles, enquanto tiram fotografias, com óculos, sem óculos, dobrando e esticando o braço. Apenas o empregado do bar me olha com atenção. Devia ir falar com ele, perguntar-lhe se estou a fazer bem, se os meus ombros denotam uma adequada predisposição para aprender com o mundo.

Não vou. O intercidades voa por cima do rio. Ele arruma as coisas na mala, a próxima estação é terminal. Daqui a nada estarei de braços abertos, deixando a mala ao lado, sem precisar de fingir.

Esta história foi incialmente publicada no jornal Diário de Coimbra de 4 de Julho de 2016.

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