Toca-fitas

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readJul 3, 2017

Passei por ele uma primeira vez, zombie, a caminho do café na esquina, a uns 30 metros do parque improvisado onde ele arruma carros com gestos de vira-tudo, venha-venha, pára-pára, etc-etc. Ouvi logo o Bonga, entrevi um toca-fitas que de maneira nenhuma podia estar ali, mas não parei. Continuei zombie, praticamente de braços estendidos à frente do corpo e boca de lado, olheirudo. Só pessoa depois de

– um café e um copo com gelo.

– Que nojo. Como é que consegues beber isso? Fica tudo aguado. Blhec.

– outro. E mais gelo. E um copo de água.

– Bah. Não consigo olhar.

Na volta, já ressuscitado e devolvido ao são convívio dos humanos, faces rosadas a indiciarem uma circulação sanguínea regular e os olhos abertos, ainda ocultos atrás dos óculos de sol, com as pupilas dilatadas pela cafeína. Passei de novo por ele. Era mesmo o Bonga a tocar num toca-fitas

– comeram a fruta, comeram a fruta, balaio dela ficou no chão, techila nizala, zalaya frutas de vontade, subiram no pau, comeram com casca, comeram a fruta, caroço dela ficou no chão

– Olá

num gesto largo a querer mostrar-me disponível para conversar, a tirar os óculos por um instante para que visse os meus olhos como eu via os dele, depois voltar a po-los num instinto de sobrevivência, a luz parece clareada pelo chão de saibro branco.

Ele explicou-me que não gravava tudo em fita

– só as coisas mais antigas. Aquelas que fazem sentido ouvir assim.

Tá a ver?

eu a assentir, que sim, que claro. Depois a ficar ainda mais embasbacado com o arrumo ao lado onde vão dar os fios ligados ao toca-fitas

– tenho ali centenas de CDs mas só gravo alguns para a bobine. Os daquela altura. Agora estou a gravar o amigo Bonga.

Dá outra pica.

Despedimo-nos depois de apertarmos as mãos e tirarmos uma fotografia que vou guardar. Talvez um dia volte lá para ouvir outra bobine com ele. Talvez lá estacione o carro.

Mais tarde a entreter o tempo entre duas exposições continuei a ler o livro que me chegou pelo correio no início da semana. Capa azul que cega, com um fio de algodão vermelho para marcar as páginas. Numa dessas páginas uma frase do diretor de um museu em Hannover, Alexander Dorner, incentiva os curadores a verem tudo, lerem tudo, irem a todos os sítios

«para entendermos a transformação do presente temos que deitar o olhar a outras formas de comportamento moderno.»

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