Uma história de Paris

Alexandre Lemos
Histórias para o Diário de Coimbra
2 min readNov 17, 2015

(publicada no Diário de Coimbra de 19 de Janeiro de 2015)

Cheguei a casa do aeroporto ontem por volta do meio-dia. Ainda no táxi passavam por nós os carros da polícia francesa com as sirenes ligadas mas sem nada que os identificasse como carros da polícia. Desfiz a mala e ouvi as noticias, ainda com o som das sirenes lá fora, quase em permanência. Passei no café para comprar tabaco, o empregado costuma cumprimentar-me, hoje não. A Marine Le Pen estava na televisão. Tropecei num casal simpático lá do prédio, referiram-se a mim como

— Miguel, o português pela primeira vez. Nunca me tinham chamado aquilo. Passei rapidamente pela praça da Republique a caminho da escola dos miúdos. Normalmente entramos na sala de aulas. Hoje tínhamos de esperar à porta. Os pais não estavam autorizados a entrar na escola. Quando chegaram ao pé de mim, o Martim e a Maria, contaram-me o que os professores lhes tinham dito sobre os atentados e o minuto de silêncio na escola em homenagem às vítimas. Falámos sobre o medo e sobre não ter medo. O Martim perguntou-me sobre o 11 de Setembro. Contei-lhe que estava a menos de 2 quilómetros das torres quando caíram. Que fiquei em choque. Que tive medo. Ele disse-me que não tinha medo. Quando chegámos a casa estive a brincar com a Maria e ela inventou uma canção

— Posso fazer tudo não posso matar e não quero.

Depois de jantar ela fez uma “dança da paz” com a música que estávamos a ouvir e puxou- nos a todos para dançar. Dançámos , eu, ela e a mãe, com lenços de papel, guardanapos e lágrimas à mistura.

Hoje, na escola, os pais pareciam mais preocupados em dar os bons dias, em serem simpáticos uns com os outros. Vi o pai de uma dos amigas dos miúdos. Um tipo de que gosto muito. Muçulmano, envolvido com a política local, a ir buscar a filha. Parecia exausto. Falámos um bocado sobre os ataques, tínhamos acabado de ver as fotos dos suspeitos na televisão. Falámos sobretudo de como antecipar o aproveitamento destes crimes que alguns, mais viscosos, já estavam a preparar.

Ao voltar para casa já se ouviam menos sirenes. Mas vimos uma fila de polícias armados a preparam-se para entrar numa casa. Pareciam actores nos bastidores de um filme, em fila, à espera de entrar em cena.

Eu não sou o Miguel. (Não sou ninguém nesta história.)

Esta história nem existiu com estas pessoas. É a história de outras pessoas, com outros nomes, que eu traduzi toscamente para vos contar. Porque quando um amigo partilhou comigo a história dele, a que eu usei para contar esta, isso teve um impacto em mim maior do que qualquer comentário, opinião ou vídeo amador que tinha visto nos dias anteriores.

Afinal as histórias são a minha maneira de entender as coisas. E a minha maneira de entender que não posso entender algumas coisas.

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