Uma Rua para as Galerias
As inaugurações em Bombarda voltaram à minha rotina. Registo a evidência ao subir a rua, quase ao mesmo tempo que, entre encontrões, me dou conta que a rua Miguel Bombarda voltou a estar à pinha nestas tardes. Deixo o Célia para trás sem ter entrado para pecar com o pedido aguado
— um abatanado a meia chávena e uma palha.
A palha italiana do Célia é uma espécie de caramelo de chocolate e bolacha-maria que se desfaz com uma precisão maquiavélica no sabor do café quente.
Chego à porta da Cabra-Cega, a galeria que vende as cerâmicas da família Ramalho lado-a-lado com divindades de madeira africana. Inaugura um dos seus artistas desconhecidos, o Idalécio, assim mesmo, só Idalécio, sem mais Santos ou Pinheiro, ele que em rigor já é um velho conhecido da rua das galerias. Fico à porta para ver a rua ser interrompida por um corso de bailarinos de cabeleiras impossíveis, desde o verde ao rosa mais chocante. Trazem a banda-sonora nas mochilas. Os carros atrapalham muito. Dançam no espaço que se abre entre a multidão e o trânsito. Os condutores variam entre a impaciência e a selfie. A maioria quer estacionar para se juntar à multidão das inaugurações antes que o fim precoce do dia nos lembre a todos que o Verão acabou ontem, ou anteontem.
Lembro-me que no apogeu deste ritual das inaugurações dava a ajuda possível numa galeria que não era galeria antes de ser promovida a esse estatuto por uma bandeirola azul com o design oficial das galerias. Nessa altura havia mais interrupções como a daquele corso de bailarinos. Havia mais bebidas à borla. Tantas que bem-bem era ir comprar umas jolas ao supermercado e recusar o champanhe e o gin com desdém.
Um desses sábados acordou com o chão feito mapa, riscado a setas com a indicação explicita: tremoços. Seguindo as pistas ia-se dar à tal galeria que não o era e depois passou mais-ou-menos a ser; lá estavam os prometidos tremoços, até acabarem. A rua ficou cheia de cascas de tremoço.
Nessa altura os candidatos prometiam tornar a rua pedonal. Impunha-se.
Passaram mais anos do que me apetece contabilizar e os carros apenas foram banidos dos últimos metros da rua. As inaugurações perderam algum brilho e o ruído que reclamou o cumprimento das promessas já quase não se ouve.
Tocam-me no ombro; antes de olhar tenho a certeza que é o Carlos a retomar a conversa recente
— não podemos fazer de conta que Bombarda já aconteceu em Coimbra. Pode até ser que já nos falte a paciência para o carnaval das inaugurações simultâneas lá, mas não faz sentido perder a paciência aqui, com algo que ainda não aconteceu.
— Temos esse defeito, a juntar aos outros, fartamo-nos de coisas que ainda não aconteceram. Ao fim de umas quantas conversas de café as coisas perdem o brilho, ficam gastas e fora de moda, passa a ser intolerável não as desdenhar. Nem nos damos conta que fora daquela conversa, sem a nossa imaginação partilhada, umas cervejas e um pires de tremoços, eventualmente, nem aconteceram.
Olho para ver quem é. Não é ninguém. Apenas um desconhecido a quem estou a estragar o enquadramento. A minha distração e o meu cigarro atrapalham o live da rapariga de cabelo rosa que dança agora à minha frente. Ele nem olha para mim, tem a cara coberta por um grande ecrã e apenas acena para me afastar do plano do seu filme de sábado à tarde. Ela também não olha.
Apago o cigarro e vou ver a exposição. Tenho de me despachar se quero ver o jogo do Sporting no Célia daqui a pouco.