Canto n° 3 — Vitor Araújo

Maitê Louzada
Críticas Musicais
Published in
3 min readSep 16, 2018

Imagine o processo de produção musical a partir de uma receita de bolo. Não tenho aqui a pretensão de fazer se pensar que ambos os processos estejam no mesmo patamar de dificuldade, mas por hora, a comparação é válida. Imaginou? Com alguns poucos ingredientes e alguma habilidade na cozinha o resultado é um delicioso bolo — ou nem sempre. Imagine agora que o cozinheiro se vê no ímpeto de adicionar a essa receita tudo o que há de comestível no recinto. Consegue pensar em um bom resultado para isso? Pois é, eu também não. Mas Vitor Araújo, pianista e multi-instrumentista, nos surpreende ao apresentar tal façanha em seu álbum Levaguiã Terê, lançado em 2016.

O músico leva para o público um mesclado de música erudita, sons africanos, indígenas e europeus; tudo isso e uma pitada de rock. O álbum traz ainda um quê de folclórico, em que o compositor reveza entre instrumentos como baixo synth, órgão e piano. O disco duplo tem em sua primeira parte seis temas nomeados por Toques, enquanto a segunda conta com seis Cantos; na transição das duas partes há as faixas-vinheta Espelho/Rotunda e Rotunda/Espelho.

Segundo o próprio Araújo, Villa-Lobos é a principal referência para o disco, além de Tom Jobim, Ígor Stravinsky, Maurice Ravel e Richard Strauss. Outra curiosidade é sobre o objetivo inicial da obra, que seria trabalhar com elementos representantes do candomblé e depois passou a ser mais sobre o sincretismo brasileiro.

Detenhamo-nos aqui a falar sobre a terceira música do segundo disco, Canto n° 3 — Vuto Flâmego. A música tem um ritmo pulsante e elétrico, instaurando por vezes um clima de tensão, ainda que prazeroso. Além dos instrumentos tocados por Bruno Giorgi, percebemos a presença da guitarra de Gabriel Ventura e de percussões que remetem à sonância de terreiros afro-brasileiros.

A música tem início com uma sequência padronizada, em que vão sendo adicionados novos elementos pouco a pouco e de forma compulsiva. Um dos ingredientes marcantes dessa mistura super heterogênea é a voz que disputa a atenção do ouvinte com os outros sons e ruídos da composição. O Canto n° 3 não possui letra, no entanto. A voz trata-se de um sussurro que percorre quase toda a extensão da música e é responsável por despertar inúmeras sensações. Às vezes murmúrios doces, às vezes um vozear agonizante.

É interessante notar que, analisados isoladamente, instrumental e voz, seria quase impossível imaginar em uma só obra a união de ambos. O instrumental me remete à prática de algum ritual; enquanto que apenas a voz, consigo imaginar facilmente como parte de alguma trilha sonora de filme, em que a sucessão de cenas no momento ganha um tom progressivamente mais apreensivo, talvez caminhando para um clímax. Para mim, esses dois componentes da música seriam como substâncias imiscíveis. Mas na receita de Vitor, óleo e água se misturam sim. O músico consegue conjugar elementos com densidades totalmente diferentes em um ritmo bem incorporado e sem inconsistências.

No decorrer da música percebem-se algumas mudanças gradativas na velocidade, que vão construindo um terreno de desconforto, tensão e ansiedade. Ao adicionar o piano, quase no fim, ele contribui ainda mais para essa construção, que logo desaba e cai novamente na melancolia da voz, junto ao ritmo já conhecido de batuques e instrumentos de corda. Esse fragmento da obra se assemelha a um balão sendo cheio. A pessoa coloca cada vez mais força na realização da tarefa, e de repente o balão estoura. O que se ouve depois é uma tentativa de recuperar o fôlego aos poucos e logo começar a encher um novo balão.

Muitos críticos colocaram a produção de Vitor entre os melhores álbuns do ano de 2016, o que se deve principalmente por essa fuga dos códigos da música clássica que ele vem traçando desde o lançamento de A/B, em 2012. O artista oscila constantemente entre o erudito e o popular. Em suma, Levaguiã Terê surgiu a partir de experimentação. E pelo menos de minha parte, a degustação foi excelente.

Talvez o único dos ingredientes que Vitor tenha usado um pouco mais que necessário, seja a duração. Tentar pensar na composição com um time diferente parece até complicado, mas o trecho central da música se dá quase que integralmente a partir da repetição de uma mesma sequência. E aqui é impossível não adicionar um contraponto, ao mesmo tempo em que esse aspecto pode se tornar maçante para quem escuta, o tempo e disposição das notas dessa forma é ponto chave na hora de construir aquele campo de tensão e ansiedade comentado anteriormente. A análise dessa questão, portanto, depende do objetivo do artista quanto às sensações que queria transmitir, ou ainda da expectativa de quem ouve.

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Maitê Louzada
Críticas Musicais

Perfil voltado para publicação de trabalhos feitos durante a graduação em Jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais