Sobre criar bibliotecas e derrotar dragões

Luísa Granato
Leituras
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4 min readDec 2, 2016

Quando os gêmeos fizeram 10 anos, eu dei um exemplar de Harry Potter e a Pedra Filosofal para cada um. Meus primos sempre gostaram — eu acho — de me ouvir contar histórias para eles. E eu contei os dias para finalmente dar esse presente; não o livro físico, com sua capa nova e páginas cheirosas. Não era exatamente isso que eu queria presentear.

Para mim, estava dando mais: era esperar por uma carta trazida por uma coruja, sonhar com uma viagem de trem para um castelo no interior da Escócia e longos debates sobre a que casa de Hogwarts iria pertencer.

O livro do meu primo se perdeu misteriosamente. O da minha prima foi lido apenas anos depois.

Minhas expectativas eram altas dando meus livros favoritos de presente para eles. Mas não desisti na primeira tentativa, foram muitas outras. Romances, quadrinhos, aventuras, mistérios e ficção científica, tentei um pouco de tudo. Eu era a prima chata que sempre dava livros nos aniversários e no Natal.

Eu sabia que só precisava acertar a história e conseguiria entregar o presente certo.

Sempre foi tão fácil para mim. Eu não me lembro bem de muita coisa da infância, mas os livros sempre estiveram lá.

Lembro-me dos quadrinhos da Turma da Mônica e da coleção do Sítio do Pica-Pau Amarelo com ilustrações bonitas. Não largava um livro que só tinha desenhos sobre as aventuras de uma bruxinha atrapalhada e seu gato. Ainda tenho um dos meu livros favoritos: Bulunga, o Rei Azul.

Eu nem sabia ler, mas já inventava histórias para esses livros que “lia”. Contava para os meus pais o que as páginas me diziam e essa era a história mais legal.

Eu rabiscava todos — sem exceções. Jogava no chão, ficavam amassados no meio dos brinquedos, riscava a capa e pintava as páginas com canetinha colorida. Eles faziam parte da brincadeira. Levava bronca que estava estragando meus livros, mas nunca os tiraram de mim. E ainda davam outros: contos de fada, com princesas e lobos-maus, ou vovós e suas colchas de retalhos.

Os livros nunca deixaram de vir. Pequenas e chatas, as leituras recomendadas na escola não interessavam muito, mas eu sabia que a leitura não era a culpada. Ela já era uma fiel e antiga amiga.

E então veio Harry Potter. E Desventuras em Série, Guia do Mochileiro das Galáxias, Fronteiras do Universo… Depois de cada livro terminado, eu já tinha pelo menos mais três que queria muito ler.

Nesse momento, posso dizer que a leitura é tudo pra mim.

Se fosse só uma memória, ela seria uma tarde subindo a rua da casa da Roberta, minha melhor amiga de infância, com 12 anos. As duas sozinhas, com a missão de voltar com um pão do café da tarde, mas só daqui a algumas horas. Antes, nós passamos na biblioteca no meio do caminho, onde ficamos abrindo as gavetas com os catálogos de livros, tirando obras das estantes e lendo uma para a outra.

Ela poderia ser um sentimento: o frio na barriga de uma nova aventura, silenciosa e particular. Eu seria uma detetive, procurando por um mistério novo entre tantos livros desconhecidos. Escondidos na poeira de sebos ou fora da ordem alfabética em livrarias. Fazem os dedos formigarem ao passar por sua lombada e o coração bater mais rápido só de ler a sinopse. Eles são novos e emocionantes, tão necessários que as palavras sincronizam com a respiração. Aqueles que depois de ler, nunca mais fui a mesma.

A leitura poderia ser cada amigo meu. Afinal, eu trago um pouco dessa amizade antiga para cada amigo novo que faço. Carrego comigo a minha biblioteca pessoal e nas conversas com desconhecidos vamos apresentando nossos volumes prediletos. Confraternizamos com as leituras em comum, emprestamos novos gostos e aos poucos vamos preenchendo os espaços vazios nas estantes um do outro.

No final, os livros que li contam uma história por si só. Eles representam pessoas, lugares, amores, mudanças, decepções, conquistas, gostos e habilidades.

Encontrei um pouco de cada um enquanto fazia essa reportagem. Em todas as entrevistas, novos leitores que também tentam passar o presente deles para seus filhos, netos, amigos ou para o mundo.

Por nós, sempre vão existir cada vez mais leitores. E para motivar essa missão, uso as palavras de um dos meus escritores favoritos, o Neil Gaiman, em “Coraline”: “Contos de fada são mais do que verdade: não porque eles nos contem que dragões existem, mas porque eles nos mostram que dragões podem ser vencidos”.

Página de “A Bruxinha Atrapalhada”, de Eva Furnari

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Luísa Granato
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Until I feared I would lose it, I never loved to read. One does not love breathing