A repetição

Teatro Voador Não Identificado
As Mil e Uma Noites
5 min readMar 11, 2018

por Leandro Romano

"Repetir repetir
até ficar diferente"
- Manoel de Barros

Tenho refletido sobre o papel da repetição não somente no Livro das Mil e Uma Noites como também no teatro. Uma das características primordiais do livro — principalmente no que diz respeito a sua escrita — é a reprodução constante do mesmo diálogo entre Sherazade e sua irmã, Dinazard, que denota a transição entre as noites:

E a aurora alcançou Sherazade, que parou de falar. Dinazard lhe disse: "Como é agradável a sua história, maninha", e ela respondeu: "Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for poupada".

A passagem, que na tradução de Mamede Mustafá Jarouche se faz presente todo o tempo, é comumente excluída das edições do livro uma vez que pressupõe-se que o leitor já saiba de antemão o desfecho diário da fala de Sherazade. Mamede a repete propositalmente porque, segundo o mesmo, a divisão das noites tem um efeito muito pontual: lembrar o leitor de que esta narrativa é feminina. É extremamente curioso já que a cultura árabe é amplamente reconhecida por ser misógina (nada muito diferente do Brasil), mas ao mesmo tempo reflete muito da visão deste mundo. A psicanalista Daisy Wajnberg, por exemplo, compara a estrutura das Mil e Uma Noites com os arabescos islâmicos em seu livro Jardim de Arabescos: uma leitura das Mil e Uma Noites. Para muitos povos, repetir é o mesmo que manter viva uma tradição. Trata-se de uma lógica árabe que aqui põe a mulher em destaque.

Nesta adaptação do livro para o teatro, não posso deixar de notar as semelhanças que esta marca formal possui com a cena. Teatro e repetição têm um histórico familiar longínquo; o próprio conceito de mímesis (imitar é repetir algo ou alguém) coloca o ator à serviço da repetição. Além disso, o teatro — ou mais precisamente a apresentação teatral — é frequentemente entendido como a repetição diária daquilo que foi "combinado" entre a equipe durante os ensaios (como sabemos, o termo ensaio em francês é traduzido por répétition). Por outro lado, há sempre a ideia de que, no teatro, uma apresentação nunca é igual a outra: ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, já dizia Heráclito.

Lembro até hoje de uma das minhas primeiras aulas de teatro em que o professor disse aos alunos que o trabalho do ator é repetir sua atuação exatamente da mesma maneira em todas as apresentações de uma peça. Eu retruquei alegando que era impossível atingir esta qualidade e o professor respondeu que este deve ser o objetivo de todo ator.

O irônico disso tudo é que boa parte da pesquisa que temos feito no Teatro Voador Não Identificado (e que penso ser a chave do teatro contemporâneo) vai contra a noção de teatro como repetição. Nossos trabalhos procuram explorar, sempre que possível, a ideia de "apresentação única", proporcionando para a plateia a vivência de uma experiência que não mais se repetirá. Neste sentido, usamos a repetição como contraponto a um tipo de teatro baseado nestes moldes.

Como chegamos até aqui: em Ponto Fraco (2011), trabalhamos a repetição do discurso, em Shuffle (2012), a aleatoriedade da repetição, em Tempo Real (2013) e em O Processo (2014), a repetição da forma que permite a abertura do conteúdo e em Último Ancestral Comum (2017), a repetição como niilismo. Ou seja, a repetição sempre pairou nossos projetos, mas foi durante a criação de O Figurante (2016) que surgiu a ideia por trás de As mil e uma noites. Neste último espetáculo, tínhamos a repetição como tema: um ator que é convidado a fazer uma peça chamada O Figurante que narra a história de um ator que é convidado a fazer uma peça chamada O Figurante e assim por diante. As bases do projeto eram o efeito Droste (ou recursividade: a repetição de uma imagem dentro dela mesma) e aquilo que Douglas Hofstadter chama de "volta estranha", isto é, as diferenças que surgem a cada volta da repetição.

As diferenças que surgem a cada volta da repetição. Não seria esta a definição mais precisa da apresentação teatral? Vamos ao teatro para ver não o que foi combinado durante os ensaios, mas sim aquilo que acontece quando o combinado nos encontra. Em As mil e uma noites pretendemos exaltar justamente esta "estranheza", afinal, num espetáculo como este (em que 33 apresentações não se repetem), não há sentido em tentar executar uma tarefa de Sísifo que, segundo a mitologia grega, foi condenado eternamente a carregar uma pedra até o topo de uma montanha sendo que, toda vez que ele quase atingia o objetivo, a pedra rolava novamente até seu ponto de partida.

As mil e uma noites são o testemunho de que a repetição em constante modificação é capaz de transformar a visão dos homens. Sherazade não venceu o rei pelo cansaço. Ela o instigou pela repetição de seus atos. Entender o teatro como pura repetição é negar sua força do encontro com o público. Desde a revolução industrial, a sociedade já ultrapassou a imagem do ser humano como reprodutor de ações e a arte se impõe contra o desejo da simples repetição (veja Warhol e suas latas de sopa ou os escritos de Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica). Atores são criadores e, por isso, não deveriam entrar num esquema de fordismo — não é para isso que o teatro existe. A repetição, neste espetáculo, servirá para lembrar o espectador de que:

O teatro não é uma máquina de repetir.
O teatro não é uma máquina de repetir.
O teatro não é uma máquina de repetir.

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