As Mil e Uma Noites: entre a estrutura-homem e a voz-mulher

Teatro Voador Não Identificado
As Mil e Uma Noites
3 min readJul 17, 2018

por Luiz Antonio Ribeiro

Como todo mundo sabe, estou desde os primeiros dias de janeiro envolvido no projeto das Mil e Uma Noites. Nesta trajetória, acabei sacando algumas coisas sobre a obra que acho que seria legal compartilhar por aqui.

A primeira delas, é propriamente a escrita. Ao contrário do que muitos acham, As Mil e Uma Noites não fazem parte de uma tradição oral. É evidente que as histórias eram transmitidas também oralmente, mas sempre é possível encontrar uma origem escrita dela, um papel anotado que mostra que alguém escreveu aquilo uma vez.

A escrita das Mil e Uma Noites se dá como se fossem anotações. Algo que alguém anotou para alguém ler e, posteriormente, algo que alguém organizou em torno dessa história única. E tudo nela — da temática à estrutura, passando pela linguagem — busca um desfazimento de estruturas de poder.

O mundo árabe, em toda sua multiplicidade, ao que tudo indica, se dava a partir de uma estrutura que chamo de “estrutura-homem”: mundo do trabalho, poder, força e lei. Um exemplo: as personagens masculinas quase todas são conhecidas por funções, ou de trabalho — mercador, pescador, carregador — ou funções de estado/religião — vizir, califa, dervixe. Este mundo, no livro, é sempre estável, mas existe uma força capaz de desestruturar isso: é o que eu chamo de “voz-mulher” que começa com a narrativa de Sherazade e se espalha em todas as histórias.

Essa voz mulher desarticula o poder porque — tanto na forma de história dentro da história, quanto nas histórias em que mulheres dominam mistérios, poderes da magia, os segredos do erotismo, do amor, da sedução e do sexo — elas são as únicas que não se colocam nas estruturas rígidas da força, função, poder e lei.

É evidente que trata-se de uma sociedade patriarcal e não são poucas as vezes que a instabilidade que a voz-mulher gera é brutalmente silenciada, como por exemplo na história que apresentamos sábado — O Pescador e gênio, parte II — em que hierarquicamente a mulher está até abaixo de um escravo. É terrível. Entretanto, há, já ali, em narrativas do século XIV (talvez desde século IX), uma fagulha de um ato de resistência. Uma desarticulação das estruturas hierárquicas que, se a gente quiser tomar como exemplo, pode nos falar muito hoje em dia.

Se todas essas histórias saem da boca de Sherazade, é muito possível fazer uma leitura de que, Sherazade, ao contar, revela o passado. Um passado que não vai se repetir porque ela, essa voz-mulher maior que todas as outras, conseguiu encerrar enquanto ciclo de violência, dominação e horror. As Mil e Uma Noites, de certa forma, podem estar inaugurando o novo século tanto no oriente quanto no ocidente.

Essas coisas a gente tentou colocar um pouco em nossa montagem. Está tudo espalhado entre a estrutura, o prólogo e todo o resto.

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