Dramaturgia e encenação — um impasse humanamente impossível

por Leandro Romano

Teatro Voador Não Identificado
As Mil e Uma Noites
5 min readFeb 5, 2018

--

René Magritte: Shéhérazade, 1948.

Esta semana fizemos um encontro com alguns atores na Casa Quintal com o intuito de experimentar cenicamente os primeiros esboços textuais escritos por Luiz Antonio Ribeiro (não apenas dramaturgo deste projeto mas também da companhia). A reunião surgiu de um impasse entre dramaturgia e encenação; situação corriqueira no nosso processo de trabalho uma vez que não costumamos fazer distinção entre estas duas instâncias. Pelo contrário, estas interferem-se. Daniele Avila Small detectou com clareza como funciona esta contaminação nos nossos espetáculos:

Procedimento recorrente no teatro contemporâneo, a relação intrínseca entre dramaturgia e encenação é sinal de uma política de criação que pensa a palavra como cena, que não separa as ideias expressas com frases no papel das ideias materializadas com corpos e vozes no espaço. Não me refiro aqui à ideia de “criação coletiva”, ou de “processo colaborativo”. A questão não é de procedimentos, mas de linguagem. A encenação não se mostra como um conjunto de habilidades e truques para ilustrar um texto previamente escrito. Percebemos na peça [O Figurante] uma simultaneidade entre dramaturgia e encenação. Mas isso não acontece meramente nos elementos mais óbvios: a convergência se dá no registro de atuação, ou seja, na linguagem do trabalho do ator.

No caso específico de "As mil e uma noites", a problemática advém da monumental tarefa de adaptação de um livro deste porte para o teatro. Diferentemente de outras criações semelhantes, estamos propondo a) a adaptação de um livro que contém em si mesmo infinitos outros livros e b) uma forma de encenação de 33 apresentações que nunca se repetem. Se em "O Processo" — espetáculo que produzimos a partir do livro homônimo de Franz Kafka — algumas destas características já se mostravam para nós, em "As mil e uma noites", as dificuldades são ampliadas (mais precisamente por 33 vezes). Porque em nenhuma das duas obras pretendemos desenvolver uma forma fechada.

A dramaturgia de "O Processo" partia do princípio de que cada cena possuía um objetivo a ser cumprido pelos atores mesmo que este trajeto possuísse inúmeras possibilidades. Em termos formais, o texto subtraía toda e qualquer fala do personagem principal Josef K. Nenhuma fala do texto era obrigatória desde que se cumprisse o objetivo final da cena. As falas eram meras ferramentas para que os atores atingissem aquilo que a cena pretendia. Fica muito claro aqui como dramaturgia e encenação fundem-se numa coisa só. O texto tem uma importância fundamental mas não exclusiva: a cena é quem decide. A primeira cena da peça é um bom exemplo deste modo de operação:

O Processo — Cena 1

Quando perceberem que a introdução de K. está no fim, dois atores, os que farão os dois fiscais de justiça, — vestidos de formas similares e com movimentos curtos, breves e quase sincronizados — se aproximam e interrompem uma de suas últimas frases.

- Por favor, escolha uma roupa mais adequada, se quiser, esta não está muito adequada para receber dois oficiais de justiça.
- Você está detido.
- Nós não temos autorização para lhe dizer nada.
- Acontece que um processo criminal está correndo com o seu nome à partir de agora.
- Bom, algum motivo deve haver, um juiz não nos mandaria aqui sem que houvesse extrema necessidade e urgência, o senhor não acha?
- Não se trata de um tribunal comum. Ele tem suas regras e funciona de maneira diferente. Pode-se dizer que é um tribunal de causas especiais.
- Escolha um casaco melhor. Este está muito gasto.
- Sua aparência é importante muito importante para tentar provar sua inocência.
- Se é que há inocência.
- Olha, ainda por cima temos espectadores!
(apontando o olhar para a plateia)
- Não podemos lhe dizer mais do que isso.
- Somos apenas funcionários.
- Cumprimos apenas aquilo que nos é pedido.
- Ah, acho que o senhor me entende mal: é claro que o senhor está detido, mas isso não quer dizer que não deve trabalhar, muito menos deve ficar fora da sua vida habitual.
- Além do que, a partir de agora todos nós estaremos vigiando seus passos.
- Todos nós.
(teatralmente)
- Olha, senhor K., exaltar-se não vai lhe ajudar em nada em sua defesa.
- Lembre-se que tudo que o senhor fizer à partir de agora será usado contra você.
- Por isso, muito cuidado em tudo que for falar.
- Ah, duvidar das ordens do tribunal pode ser visto com “insubordinação” e nós vamos ser obrigados a colocar isso nos autos.
- Nós só queremos ajudá-lo.

O Processo: Pedro Henrique Müller e Gabriel Vaz (nos cantos) no papel dos oficiais de justiça e Nena Inoue (no centro) como Josef K.

Trata-se, portanto, de uma forma dramatúrgica repleta de sugestões. No momento em que a peça é apresentada, a interpretação, a dramaturgia e a direção são fundidas. Esta foi a solução que encontramos para uma adaptação "aberta" (e, por isso, não dramatúrgica e cenicamente separadora) de "O Processo". Já "As mil e uma noites" trás consigo novos problemas. O primeiro deles, já comentado, é uma questão de tamanho: "O Processo" é uma obra finita, "As mil e uma noites" não. E isso pode levar a um pensamento perigoso de que "quanto maior uma adaptação, mais aberta". A priori, isto não é mentira, já que é humanamente impossível dar conta do infinito. Por outro lado, é preciso impor certos limites. Para isso, estamos testando algumas regras para que os atores possam assumir as rédeas de uma obra tão colossal (pretendo escrever mais sobre isso em outras postagens).

Nosso segundo problema é que, além de trabalhar com os textos do Livro das Mil e Uma Noites, lidaremos também com outros materiais: relatos de refugiados árabes, histórias pessoais dos atores, reportagens, entrevistas etc. A estrutura do livro, é claro, permite a absorção de outros conteúdos (dentro do infinito, cabe tudo), mas voltamos novamente àquilo que é humanamente impossível. Estamos falando de uma obra que foi escrita por séculos e que passou pelas mãos de muita gente até chegar aos dias atuais. É inviável imaginarmos que em 6 meses de trabalho seremos capazes de resolver e amarrar todas as narrativas "mileumanoitescas". Como escreveu Borges, "decir mil noches es decir infinitas noches, las muchas noches, las innumerables noches. Decir “mil y una noches” es agregar una al infinito."

René Magritte: Shéhérazade, 1950.

Depois do ótimo encontro que tivemos com os atores (graças à generosidade e à troca que eu e Luiz tivemos com Daniel Passi, Elsa Romero, Gabriel Vaz, Romulo Galvão e Pedro Henrique Müller), saí da Casa Quintal com a sensação de que a adaptação que temos pela frente será um jogo cujas peças serão o elenco, a dramaturgia e a encenação e cujo tabuleiro será formado pela cenografia, pela luz e pelo figurino. Como num jogo, os resultados e as possibilidades são muitas.

Jogar com "As mil e uma noites" é jogar com o infinito.

--

--