Erotismo e política

por Luiz Ribeiro

Teatro Voador Não Identificado
As Mil e Uma Noites
5 min readAug 5, 2018

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Tenho trabalhado com o erotismo faz tempo e foi uma surpresa tê-lo encontrado no livro das Mil e Uma Noites. Faço uma leitura do erotismo via Nietzsche — através das reflexões de Georges Bataille, traçando uma linha que vai desde Marques de Sade, passando por Bocage, Gregório de Matos, chegando até Ana Cristina César e Roberto Piva. As Mil e Uma Noites, agora, se juntou a essa lista.

A ideia aqui é pensar o erotismo como uma política. Uma política do corpo contra as instituições. Uma tentativa, uma tarefa de ver a atividade erótica como um gesto que se sobrepõe aos projetos de poder. E isto é o político do erotismo: ele não tem a ver com sexo, ou não tem apenas com o sexo, mas como uma desarticulação das instituições que se formam a partir do veto ao corpo, veto ao exercício do excesso, o exercício da liberdade. O erotismo é qualquer relação de afeto, de corpo, que se dá por fora dos papéis sociais pré-definidos pela cultura, pelo poder. O erotismo desmonta todas as hierarquias.

Tenho um exemplo popular: Uma mesa de bar à noite. Você já percebeu que, numa mesa de bar, muitas vezes as regras do mundo comum se alteram? Imagine um grupo de trabalho saindo juntos, após o expediente, para uma cerveja. É bem comum que, em poucos minutos, toda a hierarquia do escritório se desfaça: os carismas aparecem, a liberdade de um gesto imprevisível, de uma conversa numa voz um pouco mais alta, ou um pouco mais baixa, ao pé do ouvido. O bar, ou aquilo que acontece no bar, desmonta aquela estrutura, refaz ela, remonta ela. O poderoso pode se tornar menor, aquele rapaz do canto pode despontar. O olho, o gesto, o riso, a fala: o corpo ganha poder. O mundo é outro por conta do erotismo: quando não nos vigiamos em excesso, quando nos entregamos àquilo que não conhecemos muito da gente, chegamos mais perto da vida. Isto é o erotismo.

(Nota: Isto não é filosofia de bêbado. Isto já foi analisado por Mihail Baktin ao pensar o riso (que eu pretendo trabalhar amanhã) e o processo de carnavalização. Segundo ele, grosso modo, o carnaval é uma política — e podemos dizer , uma política erótica, porque inverte a pirâmide social. O corpo, no carnaval, se comporta de modo diferente e, por isso, encontra soluções diferentes para o amálgama sócial. O Rei que vira servo e o servo vira rei: eis a política.)

E o que As Mil e Uma Noites teria a ver com erotismo? Primeiro, porque a versão do século XVII de Antoine Galland retirou todo conteúdo erótico das Mil e Uma Noites, transformando numa versão com a cara do renascimento católico. Depois porque tudo que o ocidente passou a saber sobre o livro foi a partir dessa edição de Galland, fazendo com que esse conteúdo estivesse fora da cena por muitos séculos. E por fim, porque tudo que é obsceno — o fora da cena — sempre ressurge: a nova versão traduzida pelo Mamede Jarouche, a versão que utilizamos na peça, feita a partir dos manuscritos originais, retoma todo conteúdo erótico. Além disso, essa versão traz a tona uma reflexão importante: perceber todo o erotismo visceral do mundo árabe daquele tempo, algo que hoje é vetado, mas que, como podemos saber nas entrevistas dos refugiados, escapa sempre pelas entrelinhas.

Explico. Um dos refugiados entrevistados disse que não poderíamos deixar de destacar o caráter erótico da obra. Ele disse que o fato do livro acontecer “à noite” não era por acaso, na medida em que é durante a noite em que certas volúpias do corpo “podem acontecer”. Além disso, ele nos disse que todo erotismo do livro, hoje em dia, serve para “dar um alívio aos tabus da sociedade”. Ou seja, As Mil e Uma Noites são ao mesmo tempo sintoma de algo e antídoto para algo. A gente, na peça, não poderia escapar disso.

O erotismo, nas Mil e Uma Noites, tem uma função que se coloca como parte do texto que fiz anteriormente: a tal voz-mulher que desfaz as estruturas. O erotismo, de certa forma, é uma espécie de possível, uma linha de fuga, em muitos casos, para essa voz-mulher se colocar no mundo. E as figuras masculinas são absolutamente idiotizadas frente ao erotismo: um olho de uma mulher-passante no mercado é capaz de acabar com toda a trajetória de um homem. Ou então, na história número 9, O Carregador e As Três Jovens de Bagdá, em que, seguidamente, um carregador, três dervixes, o Califa e o Vizir acabam na casa de três belas jovens simplesmente porque elas são belas e moram sozinhas. O oferecimento sexual, na obra, não tem hora, ele pode vir a qualquer momento e destruir toda a instituição: sejam as religiosas, seja o mundo do trabalho ou até as funções de estado, do estatuto da lei.

Mais que isso, muitas das relações entre homens também são profundamente homoeróticas. O final da história do Rei das Ilhas Negras, em que o rei faz de tudo para salvar o jovem que, no fim, diz que vai “onde quer que o rei vá” e o outro diz que vai “adotá-lo como um filho” é profundamente homoerótica (e foi particularmente interessante ver isto na peça). A história das Ilhas Magnéticas em que o homem vive dias e dias com o jovem cuja profecia dizia que um mataria o outro é mais um exemplo disso: os dois bebem, riem, cantam e dançam. O mais velho cuida do mais jovem, dá banho nele, os corpos se tocam, se misturam e, por fim, se assassinam. Por fim, a história do dervixe que passa dias e dias tendo para si uma mulher diferente a cada noite e que, no fim, perde tudo porque não resiste a olhar o que tem em uma porta proibida: o corpo que ele ganha todas as noites é o mesmo que liberta ele do proibido. Ele só abre a porta porque pode, dias antes, viver esta libertação máxima — ainda que excessivamente machista em seu exclusivismo — do corpo. Sem esta vida, sem este excesso, provavelmente não haveria nele energia para se perder nas próprias promessas.

Para fechar, o erotismo faz parte de mais um dos elementos das Mil e Uma Noites que, me parece, desarticulam o poder do mundo rígido, engendrando uma política que dá a ele um caráter de jogo, de força, pulsão de morte ou, para retomar Nietzsche, de vida. O acesso à vida, nas Mil e Uma Noites, se dá através do corpo, mas de um corpo que se desfuncionaliza e, mediante sua perda de função, se torna livre para vagar por onde quiser. E este erotismo, enquanto texto, enquanto literatura, é um erotismo da palavra: uma palavra que dança, que pulsa e que desfuncionaliza a si própria, sendo a todo instante outra coisa que não apenas linguagem comum.

Neste sentido, Sherazade faz o sacrifício maior: é ela e só ela quem propicia isso. Ela, ao mesmo tempo, é mártir e agente, vítima e heroína, santa e puta. Sherazade é a grande política das Mil e Uma Noites e o erotismo da palavra é sua grande arma.

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