Orientalismo: como representar o Outro?

por Leandro Romano

Teatro Voador Não Identificado
As Mil e Uma Noites
5 min readJan 28, 2018

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Os árabes estereotipados na visão do Ocidente

Após a última publicação que fiz aqui no Medium, uma amiga (que também está trabalhando com refugiados) me enviou uma mensagem alertando sobre o cuidado que precisamos ter ao escrever sobre um povo que não é o nosso. A mensagem dizia o seguinte:

Uma parte me chamou a atenção e tenho que dizer que “está errado” ou pelo menos é bom ter mais cuidado pra não generalizar! O trecho é “A diferença entre nós e a maioria dos povos árabes é que estes últimos nunca estiveram em outra posição. Acostumados a ter seus destinos e até mesmo suas demarcações territoriais arbitrariamente decididos e/ou pressionados por norte-americanos e europeus, os árabes nunca tiveram um segundo de autonomia plena.” Sim, essa ultima geração de palestinos (e do povo árabe no geral) vive esse contexto que você descreve. Mas os povos árabes são muito antigos e carregam uma história de glória, luta, resistência e por aí vai e essa nova geração de alguma forma carrega isso também. Isso se deve exatamente pela transmissão dos costumes, histórias, experiências, crenças — é resistência muito a flor da pele! Nesse sentido eu ousaria até dizer que os árabes carregam um espírito de autonomia muito maior e mais forte do que os brasileiros. Somos um povo colonizado, nunca soubemos o que realmente significa ser autônomo…

Sem dúvidas, ela estava coberta de razão. Eu estava me referindo a um período mais recente, pós-Segunda Guerra, e acabei fazendo uma generalização irresponsável. Corrigi o texto original e poderia fingir que isso não aconteceu mas quis compartilhar aqui a situação já que, para nós, a maneira como falamos sobre o "outro" tem sido uma preocupação prioritária.

É sobre esse olhar contaminado que trata o excelente Orientalismo — O Oriente como invenção do Ocidente, livro escrito pelo intelectual e crítico literário palestino Edward W. Said (talvez o mais importante livro já publicado sobre o tema), que temos lido com muita atenção durante o processo de construção de "As Mil e Uma Noites". O argumento sustentado por Said é de que, por muitos anos, os ocidentais determinaram certos estereótipos a respeito dos povos árabes e que esta visão foi (e ainda é) validada por discursos que, embora não condizentes com a realidade, são aceitos como verdade. Segundo o autor:

O Orientalismo é um estilo de pensamento baseado numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o ‘Oriente’ e (na maior parte do tempo) o ‘Ocidente’. Assim, um grande número de escritores, entre os quais poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, tem aceitado a distinção básica entre o Leste e o Oeste como ponto de partida para teorias elaboradas, epopeias, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, seus povos, costumes, ‘mentalidade’, destino e assim por diante. Esse Orientalismo pode acomodar Ésquilo, digamos, e Victor Hugo, Dante e Karl Marx.

Isto significa que o Ocidente parte do princípio (absurdo) de que o mundo é dividido em duas partes desiguais e que, implicitamente, uma está mais correta — e é mais legítima — do que a outra. Este discurso é, sobretudo, um discurso de poder que serve para afirmar uma suposta superioridade ocidental. As consequências deste discurso são, no mínimo, grotescas.

O investimento continuado criou o Orientalismo como um sistema de conhecimento sobre o Oriente, uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciência ocidental, assim como o mesmo investimento multiplicou — na verdade, tornou verdadeiramente produtivas — as afirmações que transitam do Orientalismo para a cultura geral.

Esta invenção ocidental legitima e viabiliza ataques contínuos aos povos árabes, seja através da intromissão de países como os Estados Unidos no Oriente Médio, da divisão territorial autoritária feita entre França e Reino Unido no pós-guerra ou até mesmo prolongando o imaginário absolutamente preconceituoso de que muçulmanos são terroristas. As ideias de Said são (e deveriam ser) a base fundamental para aqueles que desejam se aventurar neste assunto.

O documentário Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People, disponível na íntegra no YouTube, demonstra, passo a passo, como os árabes são enxergados pela ótica desleal do Orientalismo em Hollywood. O árabe é sempre visto como diferente, exótico, sexualmente perigoso, enfim, como alguém a ser temido.

Não há, obviamente, uma resposta clara sobre como representar uma outra cultura. Said tampouco nos dá uma solução e, assim, é natural cometer enganos — como eu mesmo cometi. Em O Choque das Revoluções Árabes: Da Argélia ao Iémen, 22 países sob tensão, o autor Mathieu Guidère cita um modelo de análise de identidade criado por Robert Kegan que acredito ser essencial neste processo de aproximação. O modelo possui 5 etapas e o objetivo é atingir a última delas:

Primeira etapa: uma única perspectiva

"Neste primeiro caso, o indivíduo apenas compreende uma situação através da estrutura do seu esquema cultural. Assim, o papel da mulher no seio de uma cultura muçulmana aparece como sendo apenas uma subordinação da mulher ao homem. Como este esquema não corresponde às normas ocidentais que visam a igualdade de sexos, esta percepção da 'realidade' é criticada e muito mal percebida."

Segunda etapa: uma perspectiva de cada vez

"O indivíduo é capaz de distinguir outras concepções, mas continua a raciocinar segundo os próprios valores. Tem, portanto, uma percepção negativa quanto ao tratamento da mulher mesmo que possa conceber outras perspectivas. (…) Como o sujeito tem sempre como referências as suas normas culturais para compreender uma situação, a inteligência cultural está sempre no seu ponto morto."

Terceira etapa: abertura às perspectivas recíprocas

"O indivíduo não julga os usos e costumes do outro, aceita as diferentes concepções do mundo, mas não as integra nem no seu campo de valores nem nas suas práticas pessoais."

Quarta etapa: internalização do outro

"O indivíduo estabelece relações e ligações entre os seus próprios valores e as perspectivas dadas pela outra cultura, vê mais pontos comuns do que diferenças."

Quinta etapa: perspectiva universal

"O indivíduo aceita a pluralidade dos sistemas de pensamento e encara as diferentes concepções como fazendo parte de um sistema maior, que é universal e que se relaciona com um espaço comum que liga os seres humanos além da especificidade cultural de cada um."

A pergunta que me faço é: em tempos globalizados em que há fácil acesso a informações verídicas e em que as distâncias diminuem freneticamente, ainda podemos falar de um Outro? Em outras palavras, o Outro ainda existe? Acho que todos sabemos o quão difícil é se livrar de ideias já interiorizadas em nossos pensamentos, mas este talvez seja o nosso maior desafio, não apenas como artistas, mas como cidadãos.

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