Homens em suspensão

por Leandro Romano

Leandro Romano
As Mil e Uma Noites
3 min readJan 22, 2018

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Nos últimos dias, entrevistamos quatro refugiados árabes: um sírio, um curdo-sírio, um marroquino e um libanês-palestino. De histórias e vivências completamente distintas, tiveram a generosidade de nos contar como chegaram ao Brasil (e mais especificamente ao Rio de Janeiro), o que fazem por aqui e como suas vidas foram atravessadas por algo maior.

Um dos pilares do Livro das Mil e Uma Noites é a relação que se estabelece entre palavra e vida (ou morte). De alguma maneira, penso que a condição dos refugiados no Brasil é uma negociação de suas histórias em troca de uma oportunidade de vida: o que valida a condição de um refugiado é unicamente sua história. As dificuldades enfrentadas pelo refugiado (antes do refúgio) são uma garantia de subsistência em outro local. Assim como um náufrago recebe apoio inconteste — dada sua condição — , o refugiado não possui nada além da palavra.

Segundo a Wikipedia, "refugiado" é toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo, ou devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outros países.

Outra característica essencial do livro é a interrupção, sempre ocasionada por Sherazade. Também de modo análogo, a vida de muitos árabes é igualmente interrompida, seja pela morte ou pela aniquilação de seu cotidiano. Caso consiga livrar-se da morte, isto se dá principalmente pela interrupção de sua vida naquele lugar e pelo começo de uma nova história na tentativa de uma reestruturação. É como se a vida desses refugiados estivesse em constante suspensão.

Após as entrevistas, assisti ao filme Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, um documentário que acompanha a ocupação de um prédio abandonado em São Paulo por refugiados de outros países e sem-tetos brasileiros. Este choque de realidades tão distintas mas ao mesmo tempo tão próximas na dor fica muito evidente já no início do filme, quando um dos sem-tetos pergunta:

A gente já não tá podendo nem cuidar de nós, dos brasileiros, e ainda tem que cuidar de refugiado do Congo, dos libaneses e palestinos?

De certo modo, nós, brasileiros, também não estamos em suspensão? Nosso nacionalismo às avessas (repetimos à exaustão frases como "Isto só acontece no Brasil" e admitimos que a ideia de "jeitinho brasileiro" é proveniente de condições precárias de vida) também não seria uma forma de dizer que estamos suspensos, esperando por dias melhores? A diferença entre nós e a maioria dos povos árabes é que estes últimos nunca estiveram em outra posição. Acostumados a ter seus destinos e até mesmo suas demarcações territoriais arbitrariamente decididos e/ou pressionados por norte-americanos e europeus, os árabes nunca tiveram um segundo de autonomia plena desde o fim da segunda guerra.

O que nos distingue, talvez, é que nós brasileiros acreditamos (mesmo que somente por instantes) que desfrutamos das liberdades do mundo ocidental quando na verdade somos apenas uma peça no tabuleiro daqueles que de fato mandam no jogo.

Em nome do Teatro Voador Não Identificado, agradeço a Adel, Perwar, Mohammed e Ahmad por terem compartilhado conosco realidades tão distantes mas ao mesmo tempo tão possíveis de se concretizar em qualquer parte.

Adel
Perwar
Mohammed
Ahmad

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Leandro Romano
As Mil e Uma Noites

Diretor e produtor de teatro, integrante da companhia carioca Teatro Voador Não Identificado.