Recomeço

por Leandro Romano

Teatro Voador Não Identificado
As Mil e Uma Noites
2 min readMay 23, 2018

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e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso
e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever
mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para
começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura
Haroldo de Campos, Galáxias

Confesso que demorei a voltar a escrever aqui não porque não soubesse o que escrever, mas porque precisei me distanciar para entender com clareza como escrever sobre o processo de criação de "As Mil e Uma Noites".

Sem dúvida, este tem sido o processo mais complexo pelo qual já passei. Se ler o Livro das Mil e Uma Noites já é uma tarefa difícil — na qual o leitor constantemente perde-se para encontrar-se (ou desencontrar-se) mais adiante — transformá-lo numa peça de teatro é quase inviável e, por isso mesmo, teatral. Porque o teatro é uma luta interminável contra o caos: naquele momento em que atores se apresentam para espectadores, tudo precisa dar certo; seja lá o que significa "dar certo". E o teatro só surge efetivamente diante dos nossos olhos, quando "dá errado". Ali é teatro, antes talvez.

São trinta e três apresentações que não se repetem. Não é possível ensaiar cada apresentação, dar atenção aos detalhes, decorar o texto, criar marcações muito específicas, entender entonações perfeitas… Em suma, é uma peça falha. E é assim porque tem forma de jogo (porque, nos jogos, podemos ganhar ou perder), de risco, e também porque o próprio livro é falho. Há histórias de uma ou sessenta páginas, padrões numéricos que se quebram, poemas que se repetem faltando partes etc.: tudo isso resultado do esforço de anônimos que, durante séculos, tentaram juntas cacos de manuscritos para formar o que hoje conhecemos como Livro das Mil e Uma Noites.

Nessa peça, nunca pisamos em terra firme. Tentamos dar conta de uma história hoje para abandoná-la amanhã. E o amanhã é sempre um novo recomeço. Tentamos dar conta de uma nova história para abandoná-la, e assim por diante. Sem querer forçar a barra, penso que esta também é a condição dos refugiados: abandonar uma história para recomeçá-la em outro lugar, sabe-se lá como. Por isso, custamos a encontrar uma metodologia de trabalho.

Agora, passados os trinta primeiros ensaios, tenho certeza de que a metodologia escolhida não é a ideal, porém, nessa peça não existe ideal. Tanto a peça quanto o livro estarão sempre em reconstrução, sempre em recomeço.

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