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A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe

Este foi o primeiro livro do Mãe que li. Já tinha ouvido falar do autor em vários canais no Youtube e perfis literários no Instagram. Mas não imaginava o quão profundo seria conhecer as histórias apresentadas neste livro

Alex Mendes
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6 min readJun 10, 2020

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Sobre o livro

a máquina de fazer espanhóis contará a história de antônio jorge da silva, um senhor de 84 anos que é colocado em um asilo após a morte de sua esposa, laura. silva, como é chamado no livro, foi casado com laura por 48 anos e achava que não encontraria mais motivos para ser feliz. Dentro do asilo, chamado curiosamente de feliz idade, depois de muita relutância, silva começa a se relacionar com outros idosos e descobre que os momentos mais simples podem lhe trazer alegria, mesmo após sua grande perda.

À medida que a leitura avança vamos conhecendo o passado de silva e de seus amigos: o américo, o pereira, o anísio, o silva da europa, o cristiano... O asilo — que tem suas alas localizadas entre um cemitério e um jardim — se torna o local propício para filosofarem sobre a vida, discutirem sobre o futebol, rirem das brincadeiras com os outros e, o principal, achar conforto na companhia de pessoas tão comuns e parecidas entre si.

A escrita de Valter Hugo Mãe em a máquina de fazer espanhóis valoriza a importância do oralismo. O livro é construído em grandes parágrafos nos quais as falas e expressões dos personagens estão submersos na continuidade da escrita do autor.

Os nomes dos personagens, bem como o título do livro, dos capítulos e o início dos parágrafos são todos escritos em letras minúsculas. Sem sinais de exclamação, interrogação e travessões a leitura pode ser considerada difícil num primeiro momento. No entanto, é exatamente isso que empresta à obra a sensação de que a história está sendo literalmente falada.

Minha opinião

A ambientação da narrativa dentro do feliz idade e os acontecimentos envolvendo os idosos são descritos de modo natural e poético. Além de destacar a ditadura salazariana na vida de silva, o autor cria diferentes dilemas para os pacientes do lar e os transforma em perfis fidedignos da velhice. Estes são os principais ganchos que prendem a atenção do leitor e o conduz gradativamente à uma Portugal cansada de remorsos e problemática. Em paralelo, Mãe descreve as consequências advindas da ditadura e a influência da repressão na personalidade de silva e de seus amigos.

A inevitabilidade da morte e a dificuldade em compreendê-la é de longe o foco da leitura. Mas temas como cidadania e a importância das memórias também ganham espaço no enredo de Mãe. silva, nosso personagem principal, vive um certo arrependimento por ter entregado à polícia um jovem contrário à ditadura de Portugal. Ele o tinha refugiado anos antes em sua barbearia, mas por medo de se envolver com opiniões políticas que pudessem complicar sua vida e colocar sua família em perigo, silva decide entregá-lo, achando que fez o correto. Tal memória irá se arrastar por toda a trajetória de silva levando-o a questionar se agiu de maneira correta.

Ao acompanharmos a vida dos internos no feliz idade, somos apresentados ao esteves sem metafísica. silva e seus amigos ficam maravilhados ao conhecerem o famoso esteves — agora com quase cem anos — que fora a fonte de inspiração para Fernando Pessoa. A partir daí, as reflexões filosóficas sobre a vida e a morte se tornam frequentes e irão desvendar os medos e anseios daqueles idosos.

“o rosto de um homem com mais de quinze anos do que eu, sorridente, aberto, limpo ao mesmo sol que nos cobria, e era como se o próprio maravilhoso genial lindo fernando pessoa ressuscitasse à minha frente, era como dar pele a um poema e traze-lo à luz do dia, a tocar-me no quotidiano afinal mágico que nos é dado levar.”

O autor não mede esforços para tornar real a rabugice comum da idade avançada, nem tão pouco errou a mão na construção da narrativa. Cada personagem é suficientemente profundo para que o leitor se perca nas reflexões e acabe se apegando a quem em breve morrerá. Aliás, o medo e a proximidade do fim da vida torna a morte quase um “interno” daquele local, pois é ela quem conduz as entradas e saídas do lar.

O livro descarrega sobre o leitor uma certa insegurança em relação a vida dos personagens. Constantemente o leitor sente aquele frio na barriga e se questiona se no próximo capítulo encontrará determinado personagem ainda vivo. O apego por aquelas pessoas e suas histórias transfere ao leitor o medo de não tê-los mais por perto brigando, reclamando, rindo e dando vida ao lar de idosos.

O nome do asilo, feliz idade, é ao mesmo tempo contraditório e ideal à narrativa. Se por um lado os internos se sentem sozinhos, angustiados e tristes ao assistirem os corpos de seus colegas ruírem nos quartos e terminarem no cemitério, por outro, a amizade entre eles pode render belas gargalhadas, conversas descontraídas e até momentos de travessuras, quase infantis não fosse os cabelos brancos e pernas fracas.

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Um ponto a ser destacado é o fato de todos os personagens serem silva. O sobrenome representa mais um traço do caráter popular do povo Português. Em a máquina de fazer espanhóis isso pode representar a similaridade das vidas daqueles internos, uma vez que todos vivenciaram a ditadura, carregam anos de memórias e precisam lidar com a morte de suas histórias.

“…somos todos silvas neste país, quase todos. crescemos por aí como mato, é o que é. como as silvas. somos silvestres…assim do mato, grassando pelo terreno fora com cara de gente, mas muito agrestes, sem educação nenhuma.”

O título do livro é explicado em alguns capítulos chaves e em diversas passagens que irão demostrar a perda e a procura de uma identidade nacional. Nas conversas ao sol, os personagens dão a entender que Portugal era uma máquina que fazia espanhóis.

“as mulheres portuguesas é que faziam os espanhóis. abriam as pernas e pariam-nos a todos…”

Em comparação à Espanha, onde se tinha “melhor casa, melhores salários, uma dignidade à grande”, para Portugal restou da ditadura um povo sofrido, pobre, dependente…comum; o país se tornou uma coisa “quase a tombar ao mar, como se cada vez pressionada contra a parede, a suicidar-se, cheias de saudades, remorsos, queixas e tristezas frustrantes.”

Certamente as passagens em que silva se refere à esposa são os mais ingênuos e sublimes momentos. silva se desmancha de tal forma sobre seus sentimentos que é impossível de o leitor não se emocionar e compreender a dor e tristeza daquele velho romântico que mesmo depois de tantos anos é leal à sua amada. Ao pensar na morte de laura, silva discorre penosamente sobre a maneira como se sente.

“foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante”

a máquina de fazer espanhóis é um livro profundo ao retratar o cotidiano de pessoas idosas no final de suas vidas. Valter Hugo Mãe consegue incutir na simplicidade da narrativa a importância das memórias e a beleza das emoções mais puras. Para o leitor que deseja mergulhar em uma prosa contemporânea, colorida pelos sentimentos humanos e marcada constantemente pela decrepitude da vida, a máquina de fazer espanhóis é uma obra certeira e cheia de atalhos para interpretações diversas sobre as memórias, a cidadania, o amor e a morte.

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Alex Mendes
Reticências

Publicitário, nortista e designer que trabalha com UX e adora livros.