Gente Pobre, de Dostoiévski

Os miseráveis de São Petersburgo em um romance social

Alex Mendes
Reticências
4 min readMay 24, 2020

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Photo by Felipe Simo on Unsplash

Quando eu paro pra pensar na Rússia sempre lembro desse castelão lindo e vermelho — a Catedral de São Basílio. Logo em seguida vem o Kremlin, Praça Vermelha e afins. Não conheço muito sobre a Rússia. Mas, para mim, o país se resumia a frio, muita vodka e a prédios vermelhos.

Enquanto eu via apenas isso, uma outra realidade se construía nos subúrbios das cidades russas. As histórias de pessoas pobres emergiam entre um beco e outro de São Petersburgo e Fiodor Dostoiévski as ilustrou em seu primeiro livro: Gente Pobre.

Esta foi a primeira obra da literatura russa que me arrisquei a ler. Já adianto: o título é mais que literal!

Sinopse:
Makar Dievuchkin é funcionário de uma repartição pública e troca cartas com Bárbara Alexeievna, uma garota órfã e injustiçada. Ambos moram na mesma vila em São Petersburgo e possuem grande afeição um pelo outro. Impossibilitados de viverem sua relação à luz da sociedade, Makar e Bárbara cultivam um forte carinho que se contrasta com a difícil realidade dos pobres em uma cidade mergulhada na miséria.

Não quero entrar no contexto histórico em que Gente Pobre foi escrito. Mas é importante destacar que este foi o primeiro romance do autor em uma Rússia até então czarista. Ao publicar Gente Pobre, aos 25 anos, Dostoiévski marca presença no cenário literário da Rússia com um romance urbanista.

À primeira vista, Gente Pobre não passava de um livro rápido e com personagens simples. Me enganei totalmente! Dostoiévski, além de transportar o leitor para uma realidade miserável, consegue trazer delicadeza e muito brilho para as histórias de pessoas à beira da sociedade. Makar e Bárbara são tão complexos quanto as condições em que estão inseridos.

Sem dúvida — pensei — , todos aqueles que levam uma vida de trabalhos e sofrimentos podem, com razão, invejar as avezinhas do céu, que não conhecem nada disto.

Makar é um funcionário de meia idade que trabalha em uma repartição pública. Seus calçados estão precários e quase não possui roupas. Isso gera um desconforto profundo nele: como posso trabalhar dessa maneira? Como se não fosse suficiente, Makar divide o pouco que ganha para duas coisas principais: pagar o aluguel de seu quarto (ao lado de uma cozinha) e agradar sua amada, a jovem Bárbara. As condições miseráveis de Makar não o tornam um homem rígido ou vingativo, pelo contrário, ele acredita que o amor e a esperança sobrevivem à falta de dignidade social.

Não muito longe dali — creio que do outro lado da rua — Bárbara se prende à gentileza e atenção de Makar na tentativa de superar seus medos e dificuldades. A jovem veio de uma família que possuía boas condições, mas, depois da morte do pai, sua história se tornou muito complicada. Sem a família, ela segue para São Petersburgo para morar com Fédora, uma mulher que inferniza sua vida. Sem dinheiro, sem pais e sem voz dentro da nova casa, a jovem costureira vê na conveniência do casamento sua única chance para “sair da lama”.

Embora o livro não evidencie, me arrisco a dizer que Makar e Bárbara viviam um amor platônico. Fiquei com a impressão de que eles se amavam, mas em função dos parâmetros sociais da época, viver isso além das cartas seria uma grande desonra.

Aos poucos vamos conhecendo o passado de cada um e compreendendo as tristezas, os desejos mais íntimos e esbarrando em suas aspirações para uma vida melhor.

Notamos também que Makar se sacrifica intensamente para tornar a vida da Bárbara um pouco menos sofrida. Ao enviar as cartas com a ajuda de serviçais, Makar separa bombons e até dinheiro para ajudá-la. Talvez tenha passado despercebido na minha leitura ou simplesmente me afeiçoei muito ao Makar, mas, considerando que se amam, não percebi o mesmo esforço vindo de Bárbara. A todo momento notei Bárbara procurando saídas para sua vida, mas sem pensar muito em possibilidades para ela e Makar. Senti que Bárbara precisava ser mais empática com a situação dele.

Dostoiévski construiu tipos quase impossíveis de não serem protegidos pelo leitor. Makar e Bárbara trazem à tona a realidade de milhões de pobres que, mesmo com toda a exploração e humilhação social, tentam, sempre que possível, dar a volta por cima.

Confesso que o desfecho da vida de Bárbara e Makar me fez refletir sobre alguns detalhes: Ela teria sido egoísta ao aproveitar o afeto de Makar e não ter lutado para viver ao seu lado? Casar por interesse teria sido a única saída para ela? Por outro lado, o pobre Makar seria a representação daqueles que, embora estejam mergulhados nas dificuldades, não flexibilizam seus valores e caráter? Ou, em uma visão mais pessimista, Makar é a história de uma parte da sociedade que sempre estará buscando melhores condições de vida, mas, no final, continuará na mesma situação?

Estas são possíveis interpretações para os personagens. Mas a grande mensagem se sobrepõe: a sociedade pode ser terrivelmente esmagadora, mas ainda assim é possível levantarmos com o corpo ferido, com a alma destruída, e, apesar das condições adversas, enfrentarmos o cotidiano sem abandonar nossos valores, dignidade e sonhos.

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Alex Mendes
Reticências

Publicitário, nortista e designer que trabalha com UX e adora livros.