O Imenso Azul entre Nós, Ayesha Harruna Attah

Alex Mendes
Reticências
Published in
4 min readAug 27, 2021

Para mim, nascer gêmeo de alguém sempre significou uma vida feliz e rodeada de olhares curiosos. Quando criança, conheci alguns amigos que tinham irmãos gêmeos. Eles recebiam muita atenção da vizinhança, dos colegas de escola e das professoras, além de terem brinquedos em dobro.

Porém, esse imaginário ganhou uma outra perspectiva, não tão boa assim, quando concluí a leitura de O Imenso Azul entre Nós, escrito pela ganense Ayesha Harruna Attah e publicado aqui no Brasil no início deste ano.

A história se passa nos anos 1800, em uma Gana que ainda respirava os resquícios do comércio de escravos. Na época, o país sofria com as constantes batalhas entre europeus e povos locais para dominar o território. O romance, que conecta Gana ao Brasil, abordará a resistência dos laços fraternos e a continuidade das expressões locais de um povo, destacando a divindade das águas, Iemanjá.

Conhecemos Hassana e Husseina, irmãs gêmeas que tiveram sua aldeia atacada por extremistas locais, perderam seus pais, tios e avós. Foram separadas uma da outra e vendidas como escravas para cidades diferentes.

Já é um sofrimento suficiente para meninas de 10 anos, certo? Sim, mas não acaba por aqui.

Hassana é levada para uma fazenda extrativista, junto à irmã mais velha, também sequestrada no ataque à aldeia. Elas são obrigadas a trabalharem intensamente na coleta de noz-de-cola. Não possuem descanso, local adequado para dormir, muito menos alimentação que as sustentem. Um ambiente propício à violência física e sexual.

A outra gêmea, Husseina, foi vendida para Baba Kasebo, um dono de escravos. Após alguns desmaios, ela é resgatada por Yaya Silvina, uma brasileira que se estabilizou em Gana através de seu trabalho como costureira. Baba Kasebo as ameaça com feitiços e Yaya decide levar Husseina para o Brasil. É aqui que Husseina troca de nome, conhece a Bahia e é iniciada no candomblé.

Como as irmãs poderiam manter contato?

Com um imenso oceano separando as gêmeas, Hassana e Husseina se conectam através de seus sonhos. Segundo a cultura local, gêmeos são quase seres mágicos. Estabelecem uma comunicação única entre si, ainda que distantes. Os sonhos ocorrem apenas em momentos angustiantes e ajudam a direcioná-las para o encontro uma da outra.

No Brasil, Husseina conhece Iemanjá e Ibeji, divindades da mitologia iorubá. Já em Gana, Hassana não perde o desejo de rever a irmã e mantém o otimismo, mesmo após tantos anos.

O livro alterna entre capítulos sobre Hassana e Husseina e segue assim até o final. Em 250 páginas conhecemos uma história curta e objetiva que exalta a cultura africana. Os tradicionais eventos religiosos, como homowo e a festa dos gêmeos, além do dia a dia no comércio e nos portos locais, ajudam a delinear as paisagens da Costa do Ouro e das cidades de Acra, Lagos e Cape Coast.

Alma Preta

Um dos núcleos mais interessantes da narrativa é o de Husseina.

Ao chegar no Brasil, a menina se aprofunda no candomblé e dá continuidade ao esforços de Yaya Silvina, personagem que luta para manter o terreiro aberto no bairro da Liberdade e, assim, possibilitar a prática religiosa dos recém saídos da escravidão. A corrupção e a intolerância religiosa vêm dos católicos, brancos e abastados que insistem em julgar e ofuscar a presença dos negros naquela região.

Em paralelo, acompanhamos seu amadurecimento e torcemos pelo amor que surge entre ela e Henrique. Em breve ela precisará se despedir dele e voltar à Gana em busca da irmã.

Contudo, após anos separadas, a vida modificou seu comportamento e gerou dúvidas: será que devo realmente procurar por Hassana? Será que Hassana ainda está viva?

O Imenso Azul entre Nós poderia ser um romance mais consistente que entregasse ao leitor um pouco mais do universo do candomblé, das expressões religiosas na Costa do Ouro e da intimidade fraternal entre as irmãs. O reencontro — previsível desde o início do livro — forçou a criação de um final fraco e até desesperado.

Porém, não se pode negar que O Imenso Azul entre Nós é um ótimo exemplo da mistura cultural entre os países africanos e o Brasil. Conhecer Hassana e Husseina é vivenciar um pouco de suas perdas, mas, acima de tudo, acreditar que a distância é incapaz de destruir os laços de amor entre irmãos.

Obrigado por ler 🙏 Se gostou, deixe seus aplausos 👏
Conheça o blog Reticências e siga no Instagram 📷

--

--

Alex Mendes
Reticências

Publicitário, nortista e designer que trabalha com UX e adora livros.