Uma história sobre mulheres devoradoras

Carolina Bataier
Piranhas
Published in
2 min readAug 10, 2021

Gosto da palavra piranha porque acompanha gerações. Julgávamos piranhas nos anos 90, Pabllo Vittar canta piranha também chora hoje. Além disso, sugere uma persona relacionada à palavra. Piranha é quase uma loira do banheiro, entidade mística pronta para assombrar casamentos. Gostosa, decotão, cabelão, bocão.

Gosto de piranha porque perdeu o propósito da ofensa. Acho delicioso quando nos apoderamos dos xingamentos. Hoje, não ofende mais ninguém. É elogio.

Acho sagaz o modo como podemos dominar a palavra, usá-la para perverter significados e dissolver amarras. A piranha, como diz aquela música, é um peixe voraz.

A piranha-mulher é a devoradora de homens. Ou seja, delícia.

Gosto, sobretudo, da apropriação do termo porque ele nos permite afirmar: devoro, sim. Tudo. E, piranhas devoradoras, reivindicamos o poder sobre nossas bocas. O que entra e o que sai dali.

O cerceamento da liberdade feminina é um cabresto — tem na boca o centro do controle. Naomi Wolf, em O mito da beleza, dedica um capítulo a nos mostrar como a ditadura da magreza nos deixa apáticas. A comida deveria ser fonte de prazer e energia, motivo de socialização e de festa. No entanto, por meio do ideal de beleza, as delícias e suculências se apresentam como inimigas, tentação, pecado.

Quantas vezes ouvimos nossas mães, amigas, tias, lamentando o deslize diante do bolo de chocolate? Quantas segundas-feiras não levantamos da cama prometendo começar a dieta para, enfim, caber no jeans 38?

A sociedade feita por homens imagina uma mulher obediente em cuja boca não entram pecados de açúcar ou de carne; de cuja boca não saem palavras de contestação. A mulher ideal se preocupa em fazer do corpo — e da existência — instrumento de satisfação do outro. Ela não pede aumento, não fala palavrão, não acusa o abusador, não reclama do salário, do cansaço da jornada dupla, do arrependimento pela maternidade imposta como única opção de existência.

Felizmente, essa mulher só existe naquelas ficções onde os homens, ocupados e conturbados, encontram no caminho as mocinhas sorridentes prontas a servir e ajudar.

Num curso de escrita, ouvi: se a história que você gostaria de ler ainda não existe, você pode tentar escrevê-la.

Eu conheço histórias deliciosas de mulheres fazendo coisas interessantes. Existem bons livros onde as personagens femininas têm vidas divertidas. Há personagens contestadoras, engraçadas, vorazes. Algumas histórias que eu gostaria de ler existem, mas precisamos de cada vez mais personagens que nos lembram dos múltiplos caminhos possíveis para as nossas vidas. Então, eu escrevi também.

O mundo é pequeno para quem é piranha é uma história sobre mulheres devorando o mundo — relaxadas e sem pressa alguma.

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Clique aqui para ler o primeiro capítulo.

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