18 contra 1: direitos e representação política na PEC 181/2015

Ana Balbachevsky
aspolíticas
5 min readNov 9, 2017

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Como uma aparentemente bem intencionada política pública pode colocar em risco milhares de mulheres no Brasil? Essa é a primeira pergunta que vem a mente de muitas pessoas ao lerem sobre a PEC 181/2015 que foi aprovada ontem (8 de Novembro de 2017) pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados por 18 votos a 1.

A PEC 181/2015

A PEC proposta pelo Senador Aécio Neves (PSDB-MG) tinha o objetivo de ampliar a licença-maternidade para mães de prematuros: ela visa “alterar o inciso XVIII do art. 7º da Constituição Federal para dispor sobre a licença-maternidade em caso de parto prematuro”. A primeira vista, parece ser algo benéfico para as mulheres, ou ainda, uma ampliação de direitos pautados na desigualdade de gênero, certo? Errado.

A começar que a Comissão Especial responsável é formada por 28 deputados: 24 dos quais se posicionam publicamente contra o aborto, e conta ainda com apenas 3 mulheres, segundo a Carta Capital. Foi dentro deste contexto que o texto original foi modificado pelo relator Deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), que incluiu em seu relatório a alteração dos artigos 1o e 5o da Constituição Federal para que se estabeleça o direito a vida “desde a concepção”. Ou seja, em qualquer caso de interrupção da gravidez seria considerado uma “agressão a vida”.

O que se percebe é uma clara manobra política para tentar barrar qualquer tipo de possibilidade de avanço no debate acerca do aborto dentro do congresso. A proposta tinha outro objetivo e foi manipulada pela bancada evangélica, como bem afirma o próprio relator, Mudalen: “Essa PEC trata sobre a vida e eu já resolvi inserir para não deixar dúvida de que o direito à vida é desde a concepção. Quero deixar bem claro”, em entrevista ao HuffPost.

Flávia Piovesan, secretária nacional da cidadania, traz uma interessante reflexão: “Sabe-se que a vida termina com a morte cerebral, mas há muitas divergências quanto ao início dela. Cada religião tem a sua perspectiva, mas não se pode impôr um parâmetro moral e religioso a todas as mulheres brasileiras”. O Estado Brasileiro é — teoricamente — laico. Ou pelo menos, deveria ser.

Contexto Brasileiro

Quando falamos sobre a legalização ou descriminalização do aborto, não estamos falando sobre preferência pessoal. Estima-se que no Brasil entre 800 mil e 1 milhão de mulheres recorram ao aborto por ano. Segundo a TV Câmara o aborto é a quinta maior causa de morte entre gestantes no país, e uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto. Quem são as mulheres que abortam no Brasil? Segundo um estudo de 2008, elas tem 29 anos, estão em um relacionamento estável, trabalham e são católicas. Ou seja, a mulher que aborta pode ser você, sua mãe, sua irmã, sua amiga, sua chefe… somos todas nós.

Ninguém é a favor do aborto. O aborto é traumático. O aborto é com certeza uma experiência pela qual nenhuma mulher gostaria de passar. Porém, pelos mais diversos motivos, muitas mulheres recorrem a esse método. E o pior: muitas mulheres morrem justamente por ele ser ilegal: Em 2015 foram 1664 mortes relatadas em hospitais advindas de complicações por abortos mal feitos, desassistidos e em condições precárias. De acordo com dados divulgados pelo IBGE em 2015, 76% da população mais pobre do país é negra. Ou seja, essa política tem um claro viés de raça. Obviamente, todas as mulheres sofrem com essa lei, mas as que possuem meios conseguem pagar por um tratamento decente. As mulheres mais pobres não tem essa possibilidade. Ou seja, essas mulheres morrem, e são em sua maioria negras.

A legalização do aborto não vai fazer com que mais mulheres abortem. A OMS divulgou dados que mostram que o número de abortos em países que legalizaram o aborto são praticamente os mesmos daqueles que não o fizeram. A descriminalização do aborto vai, por outro lado, diminuir as mortes de mulheres que não podem pagar por uma clínica clandestina de qualidade.

Você não precisa ser a favor de interromper uma gravidez. Essa é uma decisão pessoal sua. Porém, o Estado não deve se pautar em questões pessoais quando lida com saúde pública. A PEC que foi aprovada hoje significa a impossibilidade de mulheres que foram estupradas de abortarem. Significa a continuidade da negligência e morte de milhares de mulheres no Brasil, a maioria pobre, a maioria negra. Nós como mulheres precisamos nos informar, precisamos ser solidárias. É necessário diálogo mas, acima de tudo, é preciso lutar para que tenhamos nossos direitos ampliados e não massacrados por uma bancada religiosa.

Representação

Não há representação política feminina no Brasil. O sufrágio feminino que deu direito ao voto para a mulher brasileira aconteceu em 1932, e hoje ainda somos apenas 9% do congresso. Não implica aqui dizer que ser mulher necessariamente significa entender questões de igualdade de gênero. Porém, quando não temos uma representação política efetiva também não temos espaço para mudar estruturas institucionais que afetam a realidade da mulher brasileira.

Quando não há representação, acontece o que vimos ontem: 18 homens decidem o destino de mais de 50% da população. 18 homens brancos decidem como todas as mulheres brasileiras devem lidar com seus corpos. 18 homens decidem sobre nossos direitos reprodutivos. Isso precisa mudar.

A questão de representação política é um tema que não se esgota aqui, porém, temos um momento decisivo na vida de milhões de mulheres que não passou pelo devido debate, não mereceu o real estudo e não teve a voz de suas principais protagonistas.

Ontem, Apenas uma mulher conseguiu vocalizar seu desgosto com as três simples palavras que tem o potencial de mudar a vida de milhares de vítimas de violência: a deputada Erika Kokay (PT-DF) votou contra o texto proposto pelo relator. É necessário mais mulheres na política, mais mulheres em comissões especiais. Precisamos de mais representação política se queremos que nossas pautas tenham o real cuidado, e que nossos direitos sejam ampliados de maneira a realmente criarmos uma sociedade realmente justa e democrática.

A PEC 181/2015 agora segue para o plenário da Câmara, caso aprovada irá para o plenário do Senado e então, se for aceita, passa para as mãos do Presidente Michel Temer.

Ana Balbachevsky é Mestranda no Instituto de Relações Internacionais da USP, membro-fundadora do maRIas — Grupo de Estudo em Gênero e Relações Internacionais da pós-IRI/USP e Editora da área de política internacional do As Políticas.

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