Amabilidade urbana

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8 min readOct 7, 2017

por Adriana Sansão (*)

Da edição 21 do Astrolabio
http://astrolabio.org.br/edicoes/espaco-habitado

O espaço público submetido a uma intervenção temporária revela uma qualidade urbana específica, que aqui denominamos amabilidade urbana. Ela se manifesta através de conexões e interações entre pessoas e espaço, reagindo ao individualismo e às relações superficiais que por muitas vezes caracterizam as formas contemporâneas de convívio coletivo. A amabilidade urbana é uma qualidade possível e alcançável, e pode ser motivada pela presença das intervenções temporárias nos espaços públicos.

As intervenções temporárias, por sua vez, são as pequenas ações transitórias que evocam relações sociais, envolvem participação cidadã, ativação do espaço, interação com o usuário e subversão de uso, e que são motivadas por situações locais particulares, em contraposição ao grande evento projetado. Funcionam como motores de relações de proximidade e intimidade, tanto com o próprio espaço quanto na relação entre os indivíduos, atuando reativamente contra esse desfavorável estado de alienação contemporâneo.

A amabilidade urbana é uma qualidade dotada de uma dimensão física, que surge como marca das intervenções temporárias praticadas nos espaços coletivos de nossas cidades. Vamos entender como isso acontece.

O que é a amabilidade urbana e como se manifesta?

Amabilidade significa a ação ou a qualidade de amável, o ato ou estado de comportamento que pressupõe a generosidade, o afeto ou a cortesia com o outro. É um termo que evoca a proximidade e a abertura, seja em seu uso corrente, seja aplicada aos espaços urbanos, tal e qual aqui a definimos: amabilidade urbana. Nesse sentido, poderíamos considerá-la como uma qualidade do espaço amável, daquele que promove ou facilita o afeto e a proximidade. A possibilidade da amabilidade urbana se transforma em uma situação real quando ocorre sobre um espaço potencialmente atraente uma intervenção temporária bem sucedida, tornando-o um espaço amável. O espaço deixa de ser um “objeto” quando ocorre algo que o transforma em um espaço habitado, que passa a fazer parte da memória coletiva do lugar. Santos (2005) já diria que o lugar é a oportunidade do evento, e que este, ao se tornar espaço, ainda que não perca suas marcas de origem, ganha características locais. “É como se a flecha do tempo se entortasse no contato com o lugar. O evento é, ao mesmo tempo, deformante e deformado” (Santos, 2008:163). Quando o espaço físico se transforma em espaço social em decorrência da intervenção, surge a amabilidade urbana. Nota-se que o espaço, com suas características atraentes, é que está no comando, pois sem ele não se torna real a possibilidade da intervenção.

Cabe ressaltar que determinadas características físicas podem resultar tanto em um espaço hostil quanto em um espaço potencialmente atraente. A qualidade urbana se cria através da união dos atributos do lugar, e autores como Shaftoe (2008), White (1980) e Gehl (2004) já tiveram a oportunidade de abordar o sucesso do espaço público como um lugar de convivência, partindo da análise física e através de distintos métodos, e não vale a pena aqui aprofundarmos nesse tema.

Amabilidade urbana como articulação das dimensões física, temporal e social

Teria a amabilidade urbana relação com as características físicas do lugar, com as intervenções temporárias que ocorrem sobre esse espaço, ou com as pessoas que o utilizam? Em três tópicos trataremos da articulação entre essas três dimensões.

Amabilidade urbana como articulação das dimensões física, temporal e social Fonte: autora

A — Sobre as características físicas

Lynch (1981), ao eleger as condições de desempenho da boa forma urbana, buscou eliminar as variáveis onde fosse difícil medir o alcance ou cuja dependência da forma urbana não estava demonstrada, o que para ele significava um valor frágil. Quando abordamos a amabilidade urbana como qualidade espacial, preliminarmente poderíamos considerá-la inserida nesta categoria, já que sua experiência está mais relacionada, a priori, à dimensão social do que à forma física da cidade. Entretanto, a intenção aqui é demonstrar que este conceito não está fora do domínio da forma física. A amabilidade urbana refere-se tanto à criação de vínculos entre pessoa e espaço (intervenção temporária como intensificadora dos atributos físicos e potencial reformatadora do lugar), como às conexões entre pessoas, que podem se manifestar através de encontros e intercâmbios, reagindo ao individualismo na cidade. De certa maneira, lida com a expansão da intimidade para os espaços urbanos contemporâneos.

Versões cariocas do Park(ing) Day aconteceram na mesma praça em três edições. Em 2011, “Debate na vaga!” propôs uma conversa com personalidades ligadas ao governo e a ONGs, cujo tema foi a relação carro X espaço público. Fonte: Stefano Aguiar e Wagner Pinheiro

Trata-se, portanto, de uma qualidade física e social ao mesmo tempo. Poderíamos considerá-la como resultado da soma do contexto físico (espaço potencialmente atraente) com o contexto social (pessoas), que se unem pela intervenção temporária. Graficamente, poderia ser representada por um triângulo em cujos vértices estão o espaço/tempo (lugar/intervenção) e as pessoas. Apresentamos a amabilidade urbana como uma nova forma de compreender o espaço, demonstrando a sua dependência do contexto urbano.

Processo de manifestação da amabilidade urbana: a intervenção reformata o espaço e promove conexões Fonte: autora

B — Sobre as intervenções

Façamos uma analogia com as ideias de Alexander (1965) sobre a retícula, princípio ordenador das cidades do passado. Segundo o autor, o esquema da retícula oferece uma grande quantidade de conexões entre elementos, o que a opõe ao rígido esquema da árvore. Para exemplificar este argumento, utiliza como situação um cruzamento de ruas: a existência, em dado cruzamento, de uma reunião de elementos materiais que colaboram de algum modo uns com os outros — como uma banca de jornal, um semáforo e um grupo de pessoas que espera para atravessar a rua — possibilita a formação de um sistema onde as pessoas podem olhar os jornais pendurados enquanto esperam que o semáforo fique vermelho. Este sistema possui uma parte fisicamente invariável (semáforo, banca) com a qual podem colaborar as partes variáveis (pessoas). Desse modo, a forma urbana funciona como o suporte para que os elementos móveis possam conectar-se. Para comprovar sua hipótese, recorreu a diagramas matemáticos simples.

Esquema da amabilidade urbana Fonte: autora

C — Sobre as pessoas

O diagrama anterior tem correspondência com o conceito de White (1980) de triangulação, processo onde um estímulo externo faz com que duas pessoas estranhas iniciem uma conversação, promovendo a conexão entre elas como se fossem conhecidas. O estímulo pode ser outra pessoa, um grupo, um objeto, uma visada… Não é a excelência do ato o que importa, mas o fato de ele acontecer e reunir pessoas estranhas. Segundo o autor, a presença de personalidades urbanas em um espaço público, por exemplo, pode desencadear a triangulação, sendo uma forma de torná-los mais amigáveis.

Esquema da amabilidade urbana Fonte: autora

Em 2012, “CineVaga” criou um cinema dentro da vaga, com projeções de recortes de filmes com o tema dos conflitos gerados pelo excesso de carros nas ruas.
Fonte: Stefano Aguiar

Quando trata da experiência corporal urbana, Sennett (1997:17) chama atenção para os corpos passivos que povoam a cidade contemporânea, cuja insensibilidade ao mundo real é em muito causada pela experiência da velocidade. Em dado momento questiona (1997:303): “como escapar da passividade corporal? O que estimulará a maioria de nós a voltar-se para fora em direção ao próximo, para vivenciar o Outro?” Poderíamos responder à provocação defendendo que as intervenções temporárias são uma das formas de se despertar esta conexão, “ativando” os corpos passivos e reduzindo o espaço pessoal entre eles.

Redução do espaço pessoal no momento da intervenção temporária Fonte: autora

“O espaço pessoal refere-se a uma área com limites invisíveis que cercam o corpo da pessoa, e na qual os estranhos não podem entrar”. Trata-se de um “território portátil” do indivíduo, que, em certas condições, pode reduzir ou desaparecer (Sommer, 1973:33–35). Segundo Shaftoe (2008:53), o espaço pessoal será determinado pelas atividades nas quais as pessoas estão engajadas no espaço público, e no espaço cotidiano, onde pessoas se relacionam mais passivamente, este espaço tende a ser mais amplo do que na situação excepcional da intervenção.

Em 2014, “Joga na vaga!” transformou a vaga em um ambiente de jogos, onde a cada hora uma camada-jogo era retirada e usada para ocupar a praça. Todas as edições terminaram em uma festa na vaga. Fonte: Stefano Aguiar

Concluindo, para que a amabilidade urbana se manifeste, é necessária a existência de um espaço coletivo (potencialmente atraente para alguém), a intervenção temporária (deste alguém) sobre este espaço, e a consequente triangulação (lugar/intervenção+pessoas), esta última subentendendo a aproximação e a “intimidade” entre os envolvidos, reduzindo a distância pessoal cotidiana.
Poderíamos definir a amabilidade urbana, portanto, como a qualidade que surge da articulação entre as características físicas do lugar, as intervenções temporárias que ocorrem sobre este espaço e as pessoas que o utilizam e se conectam, demonstrando que a mesma surge da articulação entre as dimensões física, temporal e social.

Construção da amabilidade urbana Fonte: autora

Bibliografia

ALEXANDER, Christopher. La ciudad no es un árbol. Barcelona: ETSAB, 1968. (Ed. original 1965)
GEHL, Jan. La humanización del espacio urbano. La vida social entre los edificios. Barcelona: Editorial Reverté, 2006. (Ed. original 2004)
LYNCH, Kevin. A Boa Forma da Cidade. Lisboa: Edições 70, 1999. (Ed. original 1981)
SANTOS, Milton. Da Totalidade ao Lugar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. (Ed. original 2005)
SENNETT, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 1997. (Ed. original 1994)
SHAFTOE, Henry. Convivial Urban Spaces. Creating effective public places. London: Sterling, VA, 2008.
SOMMER, Robert. Espaço Pessoal. As bases comportamentais de Projetos e Planejamentos. São Paulo: EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.
WHYTE, William H. The Social Life of Small Urban Spaces. New York: Project for Public Spaces, 2001. (Ed. original 1980)

Adriana Sansão Fontes é Arquiteta e Urbanista, Doutora em Urbanismo e Professora Adjunta PROURB-FAU/UFRJ. Email: adrianasansao@gmail.com

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