Vai todo mundo no caminho de Mercadinho

Claudio Barría Mancilla
astrolábio
Published in
8 min readOct 9, 2017

Para florescer as memórias da infânciapor Thais Duarte
Da edição 21 — Espaço habitado, território de criação

Qual é o meu terreiro? Esta última sexta feira, dia 23 de Setembro, O Círculo da Infância, no Tear, nos convidou a pensar sobre o nosso território de brincar, nosso espaço de entrega e de conexão conosco. Terreiro para além de conotações religiosas como o lugar em nós onde encontramos a profundeza do que somos. Terreiro como o nosso lugar de memória, brincadeira, de afetamento e beleza. E meu terreiro? Enquanto assistia ao filme “Terreiros do Brincar”, de produção da Maria Farinha Filmes e Direção de David Reeks e Renata Meirelles, refletia sobre ele.

Em meu espírito: raízes — e meu infinito em Minas. Nasci em Patos de Minas, cidade no centro oeste do Estado de Minas Gerais, pra onde partia, em minha infância, durante as férias escolares de fim, início e meio de ano, onde a brincadeira era nos riachos, no mato, nas praças, na terra laranja-barro em todos os seus tons. Ali, meu terreiro era a calçada na porta da casa de meu pai, além do quintal de piso escuro. Era também o quintal de minha bisavó, quem pouco conheci, mas sua goiabeira me habita a memória. Meu terreiro era Minas.

Em julho de 2016, a BR040 tornou-se destino e rompi para o Vale do Jequitinhonha na primeira viagem em busca da brincadeira, do tempo, dos terreiros, da delicadeza e estética do sotaque mineiro. Esta estrada, divisor de águas em minha compreensão sobre mim, me inspirou e desaguou nestes versos:

Quando abri os olhos, os caminhos da vida haviam me trazido para a esquina de onde sempre estive. Não sabia, não via.Fazendo a curva, me deparei com uma figueira atravessando o Vale. (Diário de bordo, Vale do Jequitinhonha, MG, Inverno de 2016, p.1).

Aqui, todas as rotas de Minas me chamam e sigo“a pé, e de coração leve” (WHITMAN, 1855). Depois desta viagem ao Vale, mais três vezes voltei a Minas, todas elas em busca de conhecimento e inspirações mineiras sobre a vida na natureza, no brincar, na liberdade, na escuta, na beleza. Em Junho deste ano, em meio ao Alto Vale do Jequitinhonha, o destino foi a vila de Santo Antônio do Mercadinho, no distrito de Carbonita/MG, para a celebração da Festa de Santo Antônio. Na companhia de Patrícia Freitas, Ricardo Gonçalves e Bernard Carvalho, arte-educadores do Tear, embarquei numa expedição com a mediação de Antônio Roque (Roquinho é mineiro, brincante, pesquisador, e, hoje, um querido amigo que abriu novamente as porteiras de Minas em minha história) e o acolhimento do projeto Casa do Caju, e da Casa Cultural Atrás do Pano. Este mergulho em Minas foi afluente destas palavras e, em mim, um profundo suspiro de mudanças, aspirações e inspirações para meu caminhar na educação e na vida.

Mercadinho é uma comunidade de aproximadamente 300 pessoas, a 420 km de Belo Horizonte, na zona do Alto Vale Jequitinhonha, Nordeste de Minas Gerais. Durante o mês de Junho a programação do povoado está voltada para os preparos da Festa de Santo Antônio, padroeiro da vila. Desde 2014, a Casa Cultural Atrás do Pano (criada em 1982, como um grupo de teatro que, hoje, se instala em Nova Lima, no estado de Belo Horizonte e desenvolve pesquisas e ações em Arte Educação), em união com a comunidade, auxilia no resgate da festa do santo casamenteiro. Assim, trabalham juntos nos preparativos da festança por meio de oficinas de construção de bandeirolas, estandartes, birutas e toda a decoração da Praça da Igreja, onde acontecem o leilão, a quadrilha, a roda de trespassar, violadas e o show de talentos. Foi nesse show de talentos que as crianças de mercadinho convidaram a todos para ouvir a primeira parte da música que criaram com Roquinho:

Vai todo mundo no camin de Mercadin. Catando flores e ouvindo os passarin, flor amarela e galho de bambuzin. fazer o mastro, bandeira do meu barquim. O povo todo debaixo do céu azul, marcando o espaço, louvo a Casa do Caju. Seguindo em frente, logo a diante eu sei que acho, morada do meu barquinho: água limpa do riacho. (…) (Diário de bordo, Mercadinho, MG, final de outono de 2017, p.2)

Cantando Junto

No caminho de Mercadinho, o que nos recebe é a delicadeza nas portas abertas, café e biscoito fresco na mesa; a doçura das crianças que, depois do nome, dão logo a mão e saem terra a fora apresentando sua comunidade. Depois da curva, chegamos à porta da Igreja, onde todas as gerações constroem a festa, fazendo flores de papel crepom enfeitando balaios, estandartes e enormes buquês. Com um facão na mão, coberto em barro dos pés a cabeça e um largo sorriso no rosto, Roquinho nos recebe com a alegria das crianças que ali, e onde estiverem, serão seus pares.

Recebidos por Roquinho

Depois de 7 horas de viagem, vindo de Belo Horizonte, descemos do carro e em 10 minutos já conhecíamos a ‘Cadeia do amor’, já sabíamos que deveríamos nos preparar para o leilão mais tarde e que o casamento seria no dia seguinte, antes da quadrilha. A Festa de Santo Antônio já tinha começado no primeiro pudim de leite preparado pra ser leiloado, na primeira faísca dos enormes fornos a lenha. Nesta rota, Mercadinho tornou-se inspiração para a primeira experiência estética do olhar, o olhar que se alcança por entre as situações cotidianas, “também matéria de poesia” (DRUMMOND, 1986, p.9), inundadas do mundano, e tanto quanto, que transbordam a beleza da vida e seu grande poder.

Cadeia do Amor

As experiências estéticas caminham lado a lado com os caminhos da vida. Essas experiências estão no passeio atento pela rua, que nota as árvores, os pássaros, as pessoas, que cumprimenta, que percebe e, com isso, que pertence. Está no reconhecimento da importância dos antigos para a sua própria história, a exemplo de Mercadinho: Dona Zezé, reconhecida como cantora do povoado, que canta lindamente histórias e memórias; Seu Quim, quem orienta as crianças a catarem no mato a cabacinha certa e fazer o furo do tamanho perfeito para a piorra (o pião) rodar cantando seu som.

O contato natural, orgânico e cotidiano com a natureza, que conecta a criança consigo, num movimento de reconhecimento e pertencimento são também experiências estéticas em toda sua leveza e complexidade. As conexões com a natureza, com a arte e com a sensibilidade deságuam, portanto, na estética da delicadeza (GUSMÃO, JOBIM E SOUZA, 2008), que, por sua vez, encontra-se com as rotas da vida.

A VILA DE SANTO ANTÔNIO DO MERCADINHO COMO UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

“Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar.
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar.
E depois dela bem dada,
Cavalheiro troca o par.”

(Verso popular, cantado pelos violeiros da Roda de Trespassar de Mercadinho)

A Associação da Prefeitura da comunidade de Santo Antônio do Mercadinho transformou-se em camarim e espaço para aquecer as vozes e as violas dos pares que vão brincar a Roda de Trespassar. Com movimentos de troca-troca de lugar, em roda, a brincadeira é também versar e, antes do verso livre, vem a ladainha, ou refrão, cantado pelos três violeiros. Alguém entoa um verso, qual for, como for, quem quiser. O aquecimento para a roda dura quase vinte minutos e nenhum verso se repete. A beleza está na roda, de mãos dadas, na escuta ativa à rima que brota do espontâneo. Segue a roda, que dura o tempo dos versos, o tempo do agora.

A experiência na vila de Mercadinho, durante os preparativos da festa, era de portas abertas e de cultivo às relações. As experiências estéticas estão, assim, transparentes nos significados de cada gesto cuidadoso que nota o mundo a seu redor, o compreende e, por isso, com ele se preocupa e por ele zela. A estética, portanto, não é apenas a arte concreta, a flor de papel crepom que enfeitava os balaios e os estandartes na Praça da Igreja, mas sim o espaço no imaginário, no subjetivo e no significado que todas essas “grandezas do ínfimo” (BARROS, 2001) ocupam. Para isso, o estar ativo, presente, vivo nos espaços é fundamental — estes espaços de infinitudes, invencionáticas e afetamento, são terreiros em Mercadinho.

Neste sentido e nestas palavras, a realidade é objeto e ferramenta, é território palpável e imagético; é na realidade, nos territórios em que habitamos, que frequentamos, e que, deste modo, conhecemos, que vamos compreendendo significados e criando novas elucubrações sobre a grandiosidade da vida, que não se encerra na lógica científica, comprovada, das coisas.

Novamente, a estética não se limita à arte plástica, palpável, visual, tampouco, apenas à delicadeza nas cantigas de roda, nas brincadeiras tradicionais e enfim. Ainda e além de todo esse precioso infinito, a estética é a beleza naquilo que nos afeta. A experiência estética, assim, está relacionada e preocupada com a subjetividade traduzida no cotidiano: na cantoria dos violeiros, sob o céu estrelado de Minas, os versos que falam sobre o cotidiano, sobre sensibilidade, que brincam, provocam.

Quanto à importância da estética, caso não seja suficiente a busca eterna e infinita pelo mistério da vida e o alimento do espírito, esta se dá, também, com a aproximação do outro, o que exige escuta e reconhecimento de seu modo de pensar. Respeito à diversidade, às experiências, à cultura do outro, tudo isso nasce da convivência com uma experiência estética de pertencimento e valorização de sua cultura. Se se vive em seu território com atenção às suas delicadezas e nuances, mais chances existem de se perceber, também, no outro, suas peculiaridades, diferenças e as entender tal como é o mundo: imenso, infinito. Manoel de Barros, nesta perspectiva, é leitura de espírito e leveza. Ele nos ensina, de forma doce e despreocupada, que “todas as coisas que podem ser disputadas no cuspe à distância servem para poesia” (BARROS, 2015, p. 45–46).

E de que importa a manifestação da arte, da subjetividade? Importa como uma abertura de caminhos outros, de soluções diversas, de assuntos mil, de reconhecimento da imensidão do mundo e suas questões. Saber e saber saber que o mundo é diverso como é, imponente como tanto, e que por todos os cantos existem culturas, histórias, pontos de vista, alegrias, tristezas profundas, saúde e miséria, pessoas, mais pessoas, nos coloca a par de onde estamos, de como vivemos e de como nos inserimos neste majestoso mundo.

Aqui, os convido a bordo desta viagem a Santo Antônio do Mercadinho. Nesta e nas próximas publicações, conto sobre esta intensa, apesar de breve, jornada por caminhos poéticos, de encantamento e festança em meio ao Vale do Jequitinhonha. Aqui, Mercadinho é experiência estética, terreiro da infância — terreiros de infâncias. Inté.

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Claudio Barría Mancilla
astrolábio

Educador, músico e pesquisador chileno residente no Brasil desde 1995. Doutor em Educação pela UFF, sócio fundador da Pluriverso e pesquisador do NIRA-FFP/UERJ